Qualquer tema contra-hegemônico suscita críticas e questionamentos, especialmente por parte daqueles que querem manter a supremacia e não abrir mão de seus privilégios. Assim acontece com feminismos, ambientalismos e quaisquer movimentos que denunciem sistemas de opressão por raça/etnia, gênero, orientação sexual, classe e assim por diante.
Quando compreendemos os direitos humanos como conquistas históricas, já nos parece mais visível a necessidade de um olhar atento às especificidades: não podemos mais afirmar direitos para sujeitos abstratos, pois, em realidade, eles representam um sujeito muito bem definido: ele é branco, heterossexual, classe média. Mas diferentes correntes feministas já nos mostraram também que tampouco se pode falar de uma mulher abstrata: temos cores, crenças, idades e desejos diversos. Uma mulher negra, lésbica e pobre sofre desproporcionalmente a opressão e as injustiças, se comparada a uma mulher branca, cis, hetero e rica.
Hoje, embora se tenha essa visão das especificidades que afastam uma concepção universalista, ao longo dos últimos séculos, o pensamento feminista tem se expressado de diversas maneiras, por isso falamos em feminismos, no plural e não no singular. Cada uma dessas ondas, ou correntes, apresentam diferentes argumentos e fazem diferentes propostas, mas o comprometimento de todas é com a abolição do sexismo, ou seja, de um sistema de opressão baseado no sexo.
Nesse sentido, muitas dessas correntes usam duas categorias fundamentais para o paradigma feminista: gênero e patriarcado. Mesmo que exista um longo debate sobre ambas, parto da ideia de que o patriarcado pode ser entendido como dominação masculina. Desse ponto de vista, se reconhece que a forma pela qual essa dominação ocorre depende do contexto, mas continua sendo a partir da alegada superioridade dos homens em relação às mulheres, gerando discriminações e injustiças.
Gênero, por sua vez, passa a ser uma categoria de análise a partir da qual é possível compreender essa sociedade. Os papeis dos homens e das mulheres são construídos socialmente – e em oposição – a partir do sexo, determinando que o espaço público é deles e o privado é nosso. Nessa lógica, nossa voz é silenciada e a própria legitimidade de reivindicarmos nossos direitos é questionada pelo machismo, de forma misógina. Por trás desse pensamento funciona uma lógica dualista que associa os homens ao público e as mulheres ao privado, de forma também assimétrica, na medida em que os primeiros são mais valorizados em detrimento das mulheres e da esfera privada.
Mas, afinal, qual é a relação entre a opressão das mulheres pelo machismo, e os animais e a natureza? As correntes ecofeministas apresentam diferentes respostas para essa pergunta, por isso podemos novamente chamar de ecofeminismos, no plural. Aliás, é importante ressaltar que nem todas elas incluem a consideração ética de animais, como indivíduos. Justamente por isso me posiciono a favor de um ecofeminismo animalista, a partir de uma argumentação filosófica, isto é, argumentativa e conceitual ¹.
Na literatura ecofeminista, podem ser identificadas diversas interconexões entre a dominação das mulheres, dos animais e da natureza: histórica, conceitual, empírica, socioeconômica, linguística, simbólica e literária, espiritual e religiosa, epistemológica, política e ética². Todas essas interconexões reforçam a necessidade de analisar criticamente os dualismos a partir dos quais nossa sociedade está estruturada, especialmente rompendo a barreira da espécie e, a partir da ampliação do círculo de moralidade, considerar também moralmente os animais e a natureza.
Embora todas sejam importantes para corroborar a necessidade de um olhar atento às relações entre diferentes formas de opressão, a conexão empírica evidencia de maneira explícita essa necessidade: são as mulheres, ao lado de outros grupos em situação de vulnerabilidade, que sofrem mais com os problemas ambientais. Embora todas as pessoas possam estar sujeitas a eles, são as mulheres e crianças, por exemplo, que precisam caminhar longas distâncias para buscar água; a pobreza e a vulnerabilidade também têm gênero e leva as mulheres, muitas vezes líderes das suas famílias, a viverem em locais com problemas ambientais, como ocupações.
Assim, podemos afirmar que os papeis de gênero femininos se justapõem com a questão ambiental, o que justifica uma ampliação da agenda feminista, a fim de que incorpore também uma visão não antropocêntrica e antiespecista. Ao reconhecer o nexo (a partir das diferentes formas de interconexão) entre os sistemas de opressão (racismo, classimo, heterossexismo, machismo, especismo etc.), o ecofeminismo animalista permite uma visão ampla das diferentes formas de opressão, dando sentido ao olhar direcionado tanto às mulheres quanto aos animais e a natureza.
[1] Pela importância que a conexão conceitual apresenta para a filosofia ecofeminista, ela será tratada especificamente no próximo texto da série.
[1] Essas são as interconexões identificadas pela filósofa Karen J. Warren, no livro Ecofeminist Philosophy. Uma análise do alcance e dos limites da obra de Warren pode ser encontrada em ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: Uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Prismas, 2015.