Mecanismos que o sistema já apresenta para aliviar sentimentos e conflitos internos nas pessoas, sem que haja uma ação posterior, algo que pudesse fugir do controle. Então a ideia de não comer carne – ponto de partida, apenas – nem demais produtos de origem animal, habitualmente recebe a resposta-a-vácuo de que é necessário comer isto ou aquilo. Não se toleram abuso, maus-tratos ou ‘maldades’, mas estaria o homem apenas batendo continência a uma ação-tradição que vem dos próprios animais, comendo-se uns aos outros, conforme o apetite. Ou orientações bíblicas, cabendo aos humanos a administração das plantas e ‘animais’, como quem vai, manhãzinha, buscar fruta no quintal. Cadeia alimentar, necessidade de proteínas, ‘ué, o leão come a zebra’ ou ‘a vaca nos comeria, se pudesse, então…’.
Em todo esse esperneio infantil, de quem não se permitiu ainda um insight – porque isso provavelmente o faria questionar a própria vida – soa como as trombetas anunciando a chegada de um rei-morto, ideia-cadáver que se instalou e é passada de geração junto com as pratarias da casa, polidas e no lugar certo. Os mecanismos de controle social abastecem de combustível toda moleza herdada, toda incapacidade de questionamento além dos tapumes erguidos pela geração anterior, e o eventual fiapo de remorso ou incômodo no pensamento pode ser resolvido com um aplacador raciocínio curto e clichê.
Some-se a isso um aprendizado confuso sobre amor e respeito, massinha de modelar amassada com todas as cores até ficar sem cor alguma, e crescem as pessoas separando em gavetas o que pode ser amado, o que deve ser amado, o que precisa ser amado escondido dos outros, o que se cabe respeitar ou jogar pedras e cuspir em cima, o que se deveria resepeitar mas entra no molho das fraquezas humanas – esses furos que a tudo se adaptam, e que rapidamente tiram o corpo fora na hora do aperto. Tadinhas das crianças na Etiópia, sinto muito pelos menores no sinal, que dó pelos velhinhos no asilo, pela Amazônia e pelo não humano que deu sua vida para que tenhamos esta saborosa refeição. Uff, que alívio rápido dos sintomas.
Bem, a resposta para um posicionamento tão subversivo como a revisão dos valores até então cantados em uníssono está vindo das formas mais atrapalhadas, talvez pela – ainda – perplexidade frente a quem viva, e viva bem, sem necessariamente ter um corte de cabelo estranho ou não pagar as próprias contas, mas se abstenha não passivamente de tomar seu assento no financiamento da escravidão animal. Já ouvi a expressao ‘terrorista doméstico’. Então sem se identificar com qualquer coisa que soe como errada ou antissocial, mas também sem tentar olhar um pouco por cima dos tapumes, o cidadão-médio já puxa, engatilhado, um revólver de respostas.
Deus, bíblia, família, tradição, educação, cadeia alimentar, necessidade de proteínas, ‘leão come zebra’, tudo se mistura na reação, na resposta automática. Muitas vezes, sem que nada seja perguntado, pois esse não-tomar-parte que os antiespecistas até silenciosamente fazem, perturba alguns. O diferente, e o medo de se ver refletido nele, algum dia. De permitir que o fiapo de inquietação tome proporções a ponto de mudar a vida, e ver-se pisando mais leve neste planeta. Uff, que alívio rápido dos sintomas.