Evidente que a crueldade não se transforma em beneficência por força de lei, ainda que constitucional. Também é inadmissível a relativização da crueldade de modo a positivá-la no ordenamento jurídico pátrio, afinal, felizmente ainda vivemos num Estado de Direito, vale lembrar.
Crueldade é crueldade e como tal deve ser repelida, aconteça antes, durante ou depois de atividades humanas, seja por esporte, cultura, lazer ou qualquer outro eufemismo que se prefira chamar. No Brasil, crueldade contra animais é crime contra a fauna tipificado na Lei Federal 9.605/98, em seu artigo 32 que não admite nenhuma exceção para abusos, maus-tratos, ferimentos e mutilações de animais e assim o faz por razões óbvias: a crueldade não é objeto de barganha. Numa sociedade sã e minimamente civilizada jamais poderá ser admitida ou tolerada.
Do ponto de vista supraconstitucional, isto é, acima da nossa Constituição, num espaço onde acordos internacionais são realizados, a Emenda Constitucional 96 vai na contramão de valores estabelecidos na Carta da Terra, que é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção do século XXI, com a participação do Brasil. A elaboração de uma Carta da Terra inicialmente foi proposta durante a Rio-92 e anos mais tarde foi criada, tendo sido aprovada pela UNESCO no ano 2000.
Conforme nos explica o preâmbulo da Carta da Terra, a humanidade está diante de um momento crítico na história da Terra, onde é chegada a hora de escolha do futuro, havendo a iminência de se somar forças para que consigamos efetivamente gerar uma sociedade global justa, baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais e numa cultura da paz.
Práticas como a vaquejada, rodeios, provas de laço, touradas, farras do boi e congêneres estão no caminho inverso do trajeto histórico em que nos encontramos, do caminho que queremos e devemos trilhar, sendo um dos princípios da Carta da Terra o compromisso de tratar todos os seres vivos com respeito e consideração, impedindo crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de sofrimentos.
No Brasil, não só ainda não fomos capazes de impedir crueldades de todo tipo para com os animais, como somos ávidos por impingir-lhes sofrimento por simples prazer, diversão, “cultura” ou “esporte”.
O artigo 225 da Constituição Federal é cláusula pétrea vez que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito essencial à vida digna e, portanto, além de tutelar interesse difuso e coletivo é ainda um direito individual, de todo ser humano, também estando presente o consagrado princípio da vedação ao retrocesso socioambiental, isto é, uma garantia constitucional do cidadão contra o arbítrio dos Poderes de Estado que venham provocar a supressão ou restrição de conquistas jurídico-ambientais, na esteira do que se observa no terreno dos direitos humanos.
O § 1º do referido artigo 225 elenca os deveres do Poder Público para a efetivação desses direitos elementares ao desenvolvimento digno da vida, dentre eles, o inciso VII que conserva essa concepção biocêntrica segundo a qual todas as formas de vida são igualmente importantes (vida humana, fauna e flora, ou seja, natureza em equilíbrio) havendo EXPRESSA PROIBIÇÃO DA SUBMISSÃO DOS ANIMAIS À CRUELDADE, independentemente de regulamentação (chamada de norma constitucional de eficácia plena, de aplicabilidade imediata, não sendo passível de ter seus efeitos restringidos posteriormente).
Contudo, o novo § 7º introduzido pela Emenda Constitucional 96 colide frontalmente com esse dispositivo pétreo ao criar uma “regulamentação”, uma espécie de “exceção da crueldade” ao permiti-la para práticas desportivas que usem animais, evidenciando-se o jogo sujo de interesses escusos (ou não) tidos por grande parte de membros do Congresso Nacional como superiores aos interesses ligados à proteção animal e ambiental.(1)
Além desse choque provocado pela Emenda Constitucional 96 (que, aliás, sequer deveria ter sido objeto de deliberação nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV da Constituição Federal) cujo teor apresenta explícito conflito com a vedação da crueldade com os animais (art. 225, § 1º, inciso VII parte final), vale dizer que também vai de encontro ao que já foi amplamente discutido e reconhecido pelo STF por ocasião do julgamento da ADIn 4983/CE, onde se comprovou que a CRUELDADE É INTRÍNSECA À VAQUEJADA, provocando grande sofrimento aos animais, sofrimento esse que também está presente em práticas similares que se utilizam de animais (a exemplo da farra do boi – RE 153.531/SC).
Mesmo presente manifestação cultural, no âmbito de conflito entre normas de direitos fundamentais, a jurisprudência do STF tem decidido de forma mais favorável à proteção ao meio ambiente e não foi diferente na ADIn 4983/CE decidiu que não há a mínima possibilidade de se assegurar o bem estar animal nas vaquejadas, vez que os touros e cavalos são usados nessas práticas. Sem os animais, essa prática (e portanto, as crueldades) não acontece. Nem mesmo “mediante lei específica” como alude a Emenda Constitucional 96, o que seria de uma estupidez e inadequação descomunal, pois a lei não dita o sentir e o sofrer. A crueldade com os animais ocorre antes, durante e depois da prática, em virtude de prolongado sofrimento(2).
A EC 96 simplesmente não se sustenta em nosso ordenamento jurídico, devendo ser terminantemente rechaçada do cotidiano, onde o papel do cidadão que denuncia às autoridades é fundamental, bem como devendo ser arguida a sua inconstitucionalidade junto ao STF por órgãos, entidades ou associações legitimadas, na medida em que deturpa os princípios constitucionais e civilizatórios mais basilares, bem como valores democráticos em flagrante teratologia e insegurança jurídica.
O artigo 216, § 1º da Constituição Federal, por sua vez, atribui ao poder público a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro e a EC 96 cita que manifestações “culturais” que usam animais também devem ser registradas como bem de natureza imaterial. Pois bem. Acontece que o reconhecimento de patrimônio cultural compete ao IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Cultural), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura e cujo registro até o momento não aconteceu. Contudo, o IPHAN já demonstrou mediante parecer a sua discordância ao então projeto de emenda constitucional que se converteu na aludida EC 96 promulgada.
Também vale lembrar que o mesmo raciocínio de inconstitucionalidade se aplica a Lei Federal 13.364/16, sendo flagrante as manobras do Executivo e Legislativo Federal na tentativa de fraudar a aplicação das regras constitucionais-ambientais de interesse difuso e coletivo. Eventuais leis estaduais ou municipais que autorizem vaquejadas, rodeios, touradas e provas similares também devem ser desprezadas, ao passo que continuam válidas aquelas que as proíbem. Somos defensores do artigo 225 da Constituição Federal em sua redação original. Não aceitaremos retrocessos. Ademais, seguimos amparados pelas decisões do STF supracitadas.
Concluindo, o § 7º acrescido ao artigo 225 da CF/88 mediante a Emenda Constitucional 96/17 afronta gravemente o sistema jurídico vigente, cuja inconstitucionalidade deverá ser arguida, o que significa dizer que NÃO ESTÃO AUTORIZADAS, NÃO ESTÃO LIBERADAS E NÃO ESTÃO LEGALIZADAS as vaquejadas, os rodeios, as provas de laço, as touradas, as farras do boi e todas as outras provas similares ou chamadas por alguns de “práticas esportivas” que se utilizem de animais, ao contrário do que vem sendo amplamente comemorado pela classe política, divulgado pela imprensa e alguns juristas. Continuam sendo práticas criminosas proibidas por lei estando os maus-tratos associados a muitas (quiçá todas) elas. E, nestas condições, é muito importante que a coletividade continue fazendo uso do seu dever constitucional de cidadania em proteger os animais encaminhando denúncias, se o caso, para os órgãos competentes (delegacia de polícia militar ou ambiental e Ministério Público). Autorizar crueldade animal e cravá-la na Constituição Federal é pura barbárie e selvageria. Estamos caminhando para a segunda década do século XXI. Não podemos admitir!
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(1) A vaquejada consiste em uma competição onde uma dupla de vaqueiros, montados em cavalos distintos, busca derrubar um touro, puxando-o pelo rabo, de forma a dominar o animal em uma área demarcada. Segundo a ação da PGR, era “uma necessidade antiga de fazendeiros daquela região para reunir o gado” quando as fazendas não eram cercadas e era preciso reunir os animais. Depois, passou a ser profissionalizada. Argumenta a PGR, “a prática inicialmente associada a atividades necessárias à produção agrícola passou a ser explorada como esporte e vendida como espetáculo, movimentando hoje cerca de R$ 14 milhões por ano”. (Fonte: Portal STF)
(2) trecho do voto do rel. Min. Marco Aurélio, no julgamento da ADIn 4983/CE: “Inicialmente, o animal é enclausurado, açoitado e instigado a sair em disparada quando da abertura do portão do brete. Conduzido pela dupla de vaqueiros competidores vem a ser agarrado pela cauda, a qual é torcida até que caia com as quatro patas para cima e, assim, fique finalmente dominado. O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências
nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental. Apresentou estudos no sentido de também sofrerem lesões e danos irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica. Ante os dados empíricos evidenciados pelas pesquisas, tem-se como indiscutível o tratamento cruel dispensado às espécies animais envolvidas. O ato repentino e violento de tracionar o boi pelo rabo, assim como a verdadeira tortura prévia – inclusive por meio de estocadas de choques elétricos – à qual é submetido o animal, para que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição, consubstanciam atuação a implicar descompasso com o que preconizado no artigo 225, § 1º, inciso VII, da Carta da República”. E continua: “Tendo em vista a forma como desenvolvida, a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o boi não sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento. A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos.