A falta de recursos é uma das justificativas mais recorrentes para a falta de implementação de políticas públicas relacionadas à melhoria das condições da vida não humana. As verbas porventura existentes são prioritariamente alocadas em projetos que contemplam finalidades humanas. A justificativa para tal vinculação centra-se, no mais das vezes, na interpretação exclusivista que se confere à proteção da dignidade da pessoa humana, tida como único norte interpretativo de todo o ordenamento jurídico pátrio.
O setor privado, constituído em sua maior parte pelas associações civis que têm por objeto a defesa e proteção dos animais, também se ressente grandemente da carência de recursos e de apoio efetivo do poder público para ampliar ou melhorar os seus projetos.
Recentemente, preocupado com essas questões, comecei a imaginar alternativas criativas e viáveis no sentido de propiciar um aumento de recursos a serem alocados em atividades que tenham por finalidade a melhoria da vida dos animais não humanos.
No início de dezembro do corrente, em uma das palestras do III Seminário sobre Direito dos Animais, realizado na Universidade de São Paulo – USP, intitulada “O tanku, o pet e o ciborgue: uma perspectiva antropológica da relação humano-animal e dos direitos animais”, de Guilherme Antunes – graduado em ciências sociais pela Unesp, mestrando em antropologia social pela UFSCar – mencionou-se a relação simbiótica entre humanos e não humanos, realçando-se, dentre elas, a manifestação do totemismo (entendido basicamente como o conjunto de ideias e práticas baseadas na crença de uma relação de proximidade mística entre homens e animais, plantas, objetos ou fenômenos naturais, que constituem o totem). No caso do totem animal, um determinado grupo de indivíduos define um laço de identificação conjunta com uma determinada espécie, que simbolicamente representa um elemento de conexão com o plano espiritual.
Ouvindo a brilhante exposição, tracei, imediatamente, um paralelo com os ditos “mascotes” das nossas agremiações desportivas. Em recente reportagem publicada na Revista Superinteressante (edição de dez/09), intitulada “Mascote F.C.”, afirma-se que “no futebol brasileiro, aves, felinos e humanos dominam as arquibancadas”. De fato, a maior parte dos times nacionais possui símbolos animais como elemento identificador entre os quais podemos citar mamíferos, aves e répteis. Veja-se o exemplo de clubes como Palmeiras (porco), Cruzeiro (raposa), Flamengo (urubu), Atlético Mineiro (galo), Sport (leão), Criciúma (tigre), Sampaio Corrêa – MA (tubarão), América –MG (coelho), Náutico (timbu – que é uma espécie de gambá), Gama (periquito), Santos (conhecido como “peixe”, mas que tem como representante oficial uma baleia orca, que tecnicamente é um mamífero e não um peixe), entre tantos outros.
Esta curiosa associação, de origens praticamente totêmicas (identificadoras de grupos) é também feita abertamente por inúmeras empresas, que utilizam a imagem, o nome e outros elementos gráficos representativos das mais variadas espécies animais com finalidade lucrativa.
O exemplo mais paradoxal e mais assustador desta associação mercadológica provém da indústria de gêneros alimentícios, que vincula às suas respectivas marcas a figuras de aves, bovinos, suínos, entre outros animais. Os “cadáveres que sorriem”, feliz expressão cunhada por Ana Maria Aboglio, são explorados de ponta a ponta na cadeia produtiva e a exploração se inicia justamente na perversa linguagem simbólica existente na promoção da própria morte como produto a ser ofertado no mercado de consumo.
Diversos outros segmentos empresariais, de instituições financeiras a empresas automotivas, do setor de vestuário ao de serviços em geral, utilizam a mesma tática promocional, fazendo uso aberto da imagem de diversas espécies de animais.
Ainda que possamos eventualmente encontrar barreiras para a construção e caracterização de um direito de imagem individualizado para cada animal, fato é que seria perfeitamente factível pensarmos ao menos em um conceito de imagem coletiva associada à espécie à qual pertença o animal em questão. Associada a esta ideia está a própria fundamentação jurídica da proteção do direito de imagem, que reside justamente na necessidade de prévia autorização para a exploração do uso e consequente cessão de tal direito.
Diante dessa ideia inicial, levando em consideração que o uso de imagem acima referido é usualmente feito para finalidades lucrativas, cogitei na possibilidade de construirmos uma forma de cobrarmos pelo uso do direito de imagem dos animais. Como mencionado, inúmeras empresas fazem uso extensivo de imagens de animais às quais vinculam diretamente seus produtos no mercado de consumo, seja na própria marca, na embalagem de suas mercadorias, no nome de produtos e serviços ou em suas campanhas publicitárias.
Os animais são usados com finalidade eminentemente lucrativa por essas empresas porque sua imagem agrega valor a seus produtos [e serviços] e esta conexão, de modo geral, tem se mostrado altamente eficaz junto ao público consumidor. Há a configuração de uma relação de maximização de resultados a custo praticamente zero, algo impensável com relação ao regime de utilização de imagem de pessoas ou mesmo da proteção aos direitos de autor de determinados bens [como é o caso clássico de utilização de imagens de obras de arte].
Por que então a utilização da imagem dos animais ficaria sem uma justa compensação ou ressarcimento? Os animais são utilizados e coisificados em todos os níveis da cadeia produtiva e ainda fornecem sua imagem para adornar mercadorias e serviços sem qualquer contrapartida.
Nesse sentido, deveríamos pensar em um meio efetivo de compelir as empresas que exploram a imagem de animais em seus produtos e serviços a remunerar os animais e, reflexamente, a própria sociedade por este uso, haja vista que, mesmo dentro de uma visão estritamente conservadora, com a qual não concordamos, os animais, como “macrobem”, possuiriam natureza jurídica de bem de uso comum do povo, de acordo com o art. 225, caput, da Constituição Federal.
Uma primeira solução seria a de construirmos um arcabouço normativo que desse acolhida a esta ideia com a determinação legal no sentido de que as sociedades com fins lucrativos que explorem ou vinculem a imagem de animais à sua marca ou a seus produtos e serviços devessem contribuir, a título de compensação pelo uso desta imagem, com um percentual “x” incidente sobre a sua rentabilidade. O montante arrecadado seria então destinado a um fundo governamental que direcionaria os recursos à implementação de políticas públicas vinculadas diretamente à questão animal (poderia se pensar também num critério de repasse de verbas para as entidades de defesa e proteção animal, que, em sua maior parte, desenvolvem um serviço social não remunerado e sem qualquer apoio governamental).
A ideia, apesar de ousada, me parece bastante razoável em termos teóricos. Estimulado, passei a investigá-la e constatei que ela já havia sido cogitada anteriormente pelo cineasta canadense Gregory Colbert. O referido conservacionista parte do pressuposto segundo o qual dificilmente conseguiríamos aprovar legislação específica que impusesse tal compensação aos que utilizam a imagem de animais. Para ele, a alternativa mais interessante seria a de criarmos uma espécie de Animal Copyright Foundation (algo como “Fundação de Direitos Autorais para Animais” – embora o copyright não seja exatamente instituto correlato aos nossos direitos de autor) que certificaria os produtos e serviços que contribuem para a este fundo. Assim sendo, com o tempo, criar-se-ia uma mentalidade social no sentido de consumo de produtos politicamente “menos incorretos” de empresas que apoiassem com o referido fundo.
Confesso que possuo certas restrições quanto à alternativa proposta da certificação, pois acredito que ela possa induzir, na mentalidade do público consumidor, uma falsa sensação de “acerto ou correção ética” destas empresas, quando, na verdade, o produto comercializado ou o serviço prestado traz, em si (embutida), toda uma cadeia aviltante de exploração dos animais.
Neste sentido, embora admitindo que a solução da criação de legislação impositiva no sentido da cobrança pelo uso de imagem não seja propriamente abolicionista em seu conteúdo, seja superior à da mera certificação, tal qual proposta por Colbert. A ideia ainda necessita de desenvolvimento, mas sinaliza um caminho real de melhoria de captação de recursos a serem disponibilizados e alocados em projetos sérios que contemplem a melhoria da dignidade da vida dos animais, mediante a imposição de uma contrapartida àqueles que fazem uso comercial/empresarial de suas imagens.