Era para ser uma modesta oferta pública inicial de ações. A empresa chinesa estava interessada em ampliar a produção do ingrediente-chave empregado em remédios tradicionais que supostamente fazem encolher cálculos biliares, são antipiréticos e curam ressacas.
Mas a Guizhentang Pharmaceutical, a maior produtora chinesa de extrato de bile de ursos, deixou de levar em conta o crescente movimento chinês em defesa dos direitos dos animais quando encaminhou seu pedido à Bolsa de Valores de Shenzhen.
A proposta da Guizhentang de triplicar seu estoque de ursos cativos, de 400 para 1.200, provocou ultraje nos setores que se opõem à criação de ursos em cativeiro para a extração de sua bile, um processo que envolve a inserção de tubos em seus abdomes e que é realizado em alguns casos ao longo dos anos.
Manifestantes trajando fantasias de urso fizeram piquetes em farmácias, hackers derrubaram o website da Guizhentang e mais de 70 celebridades chinesas circularam um abaixo-assinado pedindo que a Bolsa de Valores rejeitasse a oferta de ações da farmacêutica.
Em abril, depois de alguns dos maiores veículos noticiosos da China terem mostrado imagens obtidas clandestinamente, exibindo jaulas tão apertadas que os ursos mal conseguiam se mexer, a Guizhentang revogou seu pedido.
Para os defensores do bem-estar dos animais na China, a vitória assinalou a influência crescente de um movimento que é tratado com pouco-caso e tachado de burguês e fútil. Seus adversários mais declarados retratam os defensores dos animais como traidores financiados pelo exterior que querem acabar com tradições como o guisado de carne de cachorro, os entalhes de marfim e o pênis desidratado de veado, consumido para intensificar a virilidade.
A advogada Deborah Cao, que escreve sobre direitos dos animais na China, disse que campanhas como a que derrotou a Guizhentang mostram como as mídias sociais uniram a geração de chineses urbanos e bem instruídos. “Trata-se de um movimento de base que contribui para uma sociedade civil emergente que tem consciência dos direitos e das obrigações individuais em relação aos humanos e aos animais.”
Mesmo assim, o governo chinês não está disposto a acabar com o comércio de ácido ursodesoxicólico, o ingrediente ativo encontrado nas vesículas biliares dos ursos. Embora cientistas tenham criado um produto sintético alternativo, os tradicionalistas afirmam que este não possui a mesma força que a bile crua, que é vendida por até US$ 24 mil o quilo -aproximadamente a metade do preço do ouro.
Yang Tingying, vendedora na feira atacadista de medicina chinesa, insistiu que a bile de urso cura problemas hepáticos de todos os tipos, incluindo a hepatite. “É o melhor, porque vem da natureza”, disse, mostrando duas vesículas biliares secas, cuja venda é ilegal.
O comércio de bile de urso aumentou nos últimos 13 anos desde que as autoridades chinesas assumiram o compromisso de reduzir o número de ursos cativos de 7.000 para 1.500. Hoje em dia, há estimados 20 mil ursos em cativeiro em quase cem criações domésticas. Há estabelecimentos do mesmo tipo também no Vietnã, no Laos, em Mianmar e na Coreia do Norte.
Além de circular vídeos mostrando a prática da extração da bile, organizações como a Animals Asia lançam mão de várias armas, incluindo Sun Li, Caesar e Buddha. Estes são alguns dos 158 ursos resgatados que perambulam pelo santuário animal do grupo, nos arredores de Chengdu.
Nicola Field,veterinária do santuário, disse que, em muitos casos, os ursos chegaram magérrimos, com seus abdomes cheios de infecções, hérnias e tumores, sinais típicos de um processo de extração que exige a manutenção de feridas abertas para possibilitar a extração da bile três vezes por dia.
Os dentes dos ursos invariavelmente estão desgastados, de tanto roer as barras de suas jaulas, e seus pés frequentemente se encontram em estado lastimável, porque poucos dos animais algum dia chegaram a andar.
Fonte: Folha de S. Paulo