Dentro da causa animal é comum vermos as ações de ativistas como os da A.L.F (Animal Liberation Front) como um ato de coragem. É preciso muita coragem para invadir, resgatar os animais ali presos e danificar os equipamentos de pesquisa, diante de todo o perigo de serem presos e de terem seus nomes e rostos expostos pelas mídias como terroristas domésticos e vândalos. Seja adepto ou não da causa animal, todos reconhecem que as ações dos ativistas da A.L.F são ações corajosas.
Por outro lado, quando alguns jovens universitários se deparam com a realidade bárbara que os animais passam dentro das salas de aula e fazem o que é ético e de direito, a objeção de consciência; não são vistos como corajosos. Enfrentar toda a estrutura medieval das universidades em nome do respeito à vida dos animais ali torturados e assassinados para manutenção de uma falácia pedagógica e científica, não é tido como coragem, pois professores, colegas e familiares, tendem a classificar os objetores de consciência de sentimentalistas, de inconsequentes e pueris inimigos do avanço científico. Não reconhecer a coragem na objeção de consciência é uma forma de desmerecer e desqualificar a atitude ética dos objetores.
E quanto aos educadores veganos formais que introduzem a teoria dos direitos animais e o modo de vida vegano em sala de aula, são corajosos? Não me referirei aos docentes universitários, pois, eles são agraciados pela tal liberdade de cátedra e, podem ministrar seus cursos de direitos animais sem muitos problemas. Meu foco será os educadores veganos dos ensinos fundamental e médio. Enfrentar o corpo burocrático e professores da unidade escolar onde leciona em nome da causa animal é um ato de coragem? Enfrentar alunos e seus respectivos pais para manter um currículo mínimo de ética animal é um ato de coragem? Mesmo quando está diante de ameaças que ultrapassam em muito as verbais?
A coragem aqui apresentada é aquela virtude muito apreciada do ponto de vista moral como a ação de se colocar a serviço de outrem ou de uma causa, permeada de uma leve sensibilidade ao medo. Sensibilidade ora pouco sentida, ora bem suportada. É impossível defender a vulnerabilidade dos outros sendo medroso. De modo idêntico, e no lado oposto, em nada ajuda o animais não-humanos aquele educador vegano que nada teme. O vício, seja pela falta ou pelo excesso, em nada beneficia o individuo e aquele a quem ele deseja ajudar, pois é movido pela imprudência, pela falta de medida. Tanto ações/omissões por medo quanto por covardia são egoístas.
A coragem como virtude aparece como uma forma de altruísmo, de generosidade. Ela carrega uma dose de insensibilidade ao medo, ou uma sensibilidade mediada, e até mesmo, um certo prazer com ele. Coragem não é ausência de medo (como a aphobia do sábio epicurista) é a capacidade de superá-lo movida por uma vontade mais forte e mais generosa de fazer o bem ao incapaz de se livrar de seus próprios grilhões.
Assim como a prudência, a coragem é condição para realização de todas as outras virtudes. Sem a prudência, as outras virtudes seriam deficientes; mas, sem a coragem seriam inúteis. Sem a prudência, o justo, não saberia como combater a injustiça; mas, sem a coragem, não ousaria engajar-se nesse combate. Sem a primeira não saberia que meios utilizar para alcançar o fim almejado; sem a segunda, recuaria diante dos riscos que aparecem pelo caminho.
Aristóteles dizia que a coragem é a força da alma, é “condição de qualquer virtude”, já que as suporta como um alicerce e requer delas “agir de maneira firme e inabalável”. É necessário coragem para enfrentar, resistir e suportar dificuldades impostas à libertação animal pela sociedade hegemonicamente especista. Porque a coragem, é bom ressaltar, é o oposto da covardia, e também da preguiça e da frouxidão.
Num mundo especista a covardia reina num território sem fronteiras. Os que assaltam, sequestram, confinam, torturam e matam os bilhões de animais não-humanos anualmente são covardes no sentido pleno da palavra. Mas são covardes também, os que cientes de toda barbárie cometida covardemente aos animais, nada fazem. Silenciar-se diante das injustiças é apoiá-las e perpetuá-las, é tornar banal o mal.
Isso nos leva a pensar na relação da coragem com a verdade, com o saber. Platão tentou fazer da coragem uma “ciência das coisas temíveis e das que não o são”, ou pelo menos a “salvaguarda constante de uma opinião reta e legitimamente acreditada sobre as coisas que são ou não são temíveis”. Em se tratando da luta pelo reconhecimento dos direitos morais dos animais não-humanos, o conhecimento, as ciências, em especial a etologia cognitiva e a neurociência, são indispensáveis. Se é a coragem essa capacidade de enfrentamento, domínio e superação dos medos, são as ciências e a filosofia que ajudam a dissipá-los, dispersando seus objetos. A coragem é uma decisão, um ato, movido por um saber. Podemos chamar, também, de coragem intelectual, que é a recusa, no pensamento, de ceder ao medo, a recusa de se submeter a outra coisa que não a verdade.
Tornar-se vegano num mundo especista é um ato de coragem. Educar veganamente na perspectiva abolicionista é expressão máxima de coragem. Pois diante de todos os obstáculos e ameaças socioculturais e institucionais o educador vegano precisa de coragem para durar e aguentar, para suportar, para combater, para enfrentar, para resistir e perseverar. A coragem é feita de desejo, de vontade. Desejo mediado pela prudência e pela temperança.
É verdade que na maioria das vezes é exigido mais coragem para continuar e manter que para começar a lutar. Manter-se vegano, continuar na luta diária pela libertação dos animais humanos e não-humanos exige força da alma. Manter-se firme na coerência de propósito deve ser a marca do educador vegano e de todo ativista dos direitos animais.
Muitos veganofóbicos não veem nas atitudes dos veganos abolicionistas algo de corajoso, pelo contrário, os classificam de utópicos, sonhadores, desprovidos de senso de realidade. Alguns veganofóbicos, travestidos de “defensores dos animais” acreditam que a solução para a barbárie é o bem-estarismo, ou seja, não precisa abolir a tortura, mas torturar ao som de Mozart; não precisa abolir o confinamento, mas aumentar o tamanho das jaulas; não precisa abolir o assassinato em série, mas matar após anestesiar. Coragem, como toda virtude, só existe no presente. Pedir e lutar pela abolição do uso dos animais para qualquer fim é um ato de coragem e é exigido agora. Lutar por reformas bem-estaristas para uma suposta melhoria na situação dos animais num futuro longínquo, não se assemelha a nada próximo a coragem, pois é essencialmente um ato de covardia.
É necessário avisar os veganofóbicos que querer dar amanha ou outro dia não é ser generoso. Querer ser corajoso no mês que vem ou daqui há cinco anos não é coragem. Para os ditos “defensores dos animais”, mas que não têm coragem de adotar o veganismo, que segundo eles, é somente para os iluminados, Aristóteles, em sua Grande Moral, diz: “se fazem de corajosos porque o risco é para ser corrido daqui há dois anos, e morre de medo quando estão cara a cara com o perigo”.
Por que combater o especismo? Perguntam os veganofóbicos, já que vivemos num mundo especista, “e tudo sempre foi assim”. Porque é preciso lutar por justiça. Porque o contrário seria indigno. Ou pela beleza do gesto, ficando entendido que essa beleza é de cunho ético e não estético. “As pessoas verdadeiramente corajosas só agem pela beleza do gesto corajoso”, disse Aristóteles, só “pelo amor ao bem”, ou também, “impelidos pelo sentimento da honra”.
É senso comum o corpo burocrático e os pais dos alunos de escolas onde tem um educador vegano engajado, fazer as mais diversas ameaças, da perda do emprego a de agressão física. Como se não bastasse todo desespero e angustia do educador vegano por saber de todo sofrimento vivido pelos animais todos os dias, ele tem que conviver com a pressão e repressão no ambiente “profissional”. Isso nos leva a uma velha sabedoria popular, a de que a vida nos ensina que é preciso ter coragem para superar o desespero, mas que também, o desespero pode nos dar coragem.
Nem sempre somos bem sucedidos em nossos propósitos, diante disso é preciso coragem para continuar de pé. Sobre isso a Grande Moral nos diz que “se privando alguém de alguma coisa sua coragem não permanece, já não é um homem corajoso”. Se o educador vegano estiver munido de uma forte fundamentação teórica, ele não recuará no seu propósito, apenas mudará a estratégia de combate. É preciso estar munido de coragem para o combate presente, para o sofrimento presente, para a ação presente.
Devemos aprender com Aristóteles, que mostrou nitidamente, que a coragem é inseparável da medida. É necessário medir os riscos que se correm ao fim que se tem em vista: é belo arriscar a vida por uma causa nobre, mas insensatez, imprudência fazê-lo por ninharias, ou por puro encanto pelo perigo.
Sabemos que rebeldia sem causa é estupidez. Por isso o veganismo é uma causa justa pela qual se rebelar. Seja um ativista da A.L.F, seja um objetor de consciência, ou um educador vegano abolicionista, a coragem perpassa-os por inteiro.
Concluindo com Aristóteles, assim como toda virtude, a coragem é o meio entre dois extremos, de um lado o covarde que é submisso demais aos seus medos, do outro, o temerário, despreocupado demais com sua vida ou com o perigo que o ronda. A ousadia que perpassa o ato corajoso só é virtuosa se temperada pela prudência – a leve sensibilidade ao medo contribui para ela, e a razão a abastece.
Referências
ARISTÓTELES (1999). Ética a Nicómaco. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. (Edición bilingue: griego/castellano).
_____________ (1977). Magna Moralia. Cambridge: Loeb Classical Library. (edição bilíngue: grego/inglês).
PLATÂO (1924). Laches. Cambridge: Loeb Classical Library. (edição bilíngue: grego/inglês).