Por George Guimarães
em colaboração para a ANDA
Aqueles que lutam ativamente pelo veganismo e pelos direitos animais sabem que raramente temos uma conquista a comemorar. Elas existem, mas a uma razão inferior a uma conquista para cada cem lutas. Algumas levam anos, outras levam décadas. Dia 20 de janeiro de 2012 é uma dessas datas em que podemos comemorar uma conquista que exigiu quase duas décadas de trabalho.
O Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª região (CRN-3), que orienta e fiscaliza a profissão dos nutricionistas nos estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo, acaba de divulgar o seu parecer referente às dietas vegetarianas [1], ou “Vegetarianismo”, como eles preferiram intitular o documento. Nele, o CRN-3 admite e recomenda que 1) a natureza biológica do ser humano o permite escolher o que comer; 2) é possível atingir a adequação nutricional com dietas vegetarianas desde que observados alguns cuidados; 3) as dietas vegetarianas podem ser adotadas em qualquer ciclo da vida e; 4) cabe ao nutricionista orientar o indivíduo visando a promoção da sua saúde. Note que o papel do nutricionista é orientar, e não julgar, a opção do indivíduo. A recomendação é apenas para que seja dada atenção a aspectos psicológicos e socioculturais no processo de atenção dietética.
Mas isso não é nada mais do que o óbvio, certo? Afinal, o que há para comemorar? Enquanto essas recomendações do CRN-3 possam parecer (e deveriam parecer) nada mais do que senso comum até mesmo para o público leigo, nem sempre foi assim entre os profissionais nutricionistas e especialmente entre os membros desse órgão que regulamenta a profissão, que já impôs algumas barreiras ao exercício profissional daqueles que optaram por orientar os seus pacientes com base em uma dieta vegetariana. Ilustrarei essa dificuldade contando a minha trajetória de relacionamento com esse órgão e as instituições acadêmicas que formam os profissionais da área da nutrição.
Foi em 1994, quando ingressei na faculdade de nutrição, que dei início aos meus estudos “oficiais” sobre nutrição vegetariana. Antes disso, eu já estudava o tema de maneira informal e faça experiências pessoais com algumas de suas vertentes, como a macrobiótica e o higienismo. Diferentemente dos estudos particulares, onde as fontes de pesquisa eram favoráveis ao que se buscava, durante os o primeiro ano de faculdade tudo o que encontrei foi resistência na discussão da nutrição vegetariana e logo compreendi que a expectativa não poderia ser diferente já que o tema era tão desconhecido por parte dos professores e dos alunos que chegava a ganhar status de tabu dietético. A solução imediata para continuar os meus estudos foi ir buscar informação no exterior, onde tanto a pesquisa quanto os órgãos reguladores da profissão já haviam atingido um patamar mais avançado do que esse que agora, 18 anos depois, estamos apenas adentrando.
Já no segundo ano da faculdade (1995) dei início à publicação de um periódico intitulado Segunda Opinião, que trazia uma visão diferente sobre a nutrição, discutindo o tema da nutrição vegetariana e dos direitos animais. Foi a partir dessa publicação, baseada em pesquisas científicas em uma era pré-internet, que passei a ganhar alguma atenção com seriedade, podendo debater o tema diante de certo respeito por parte do corpo docente, que alternava entre pedir mais referências bibliográficas sobre o assunto e me alertar que o CRN não permitiria que, depois de formado, a minha atuação fosse voltada para as dietas vegetarianas, esse “modismo da vez” que não combinaria com a postura de um profissional de saúde.
Sobrevivi a todos os percalços caracteristicamente enfrentados por um aluno que vai contra o conhecimento estabelecido pela academia, que são justamente aqueles que no futuro contribuem para o avanço da mesma. Por ser vegano desde o início da faculdade, recebi nota zero nas aulas práticas por me recusar a degustar os pratos que continham produtos de origem animal (o que não resultava em um impedimento de fato porque a nota era facilmente compensada pelas notas máximas nas provas teóricas). Infelizmente, eu desconhecia o conceito de Objeção de Consciência naquela época, ou teria recorrido ao meu direito de não participar das aulas práticas. Escutei com bom humor às recomendavam para que eu formasse a minha própria seita para conseguir atuar profissionalmente (recomendação essa que acatei fielmente) e sobrevivi à recusa do tema do meu trabalho de conclusão de curso (TCC), que ra sobre “a adequação nutricional das dietas vegetarianas”, recusado sob o pretexto de que não haviam fontes bibliográficas suficientes, apesar de o projeto do trabalho conter mais de uma centena delas. Com a cooperação de uma das professoras, o trabalho acabou sendo levado como trabalho de estágio, e por fim foi tão apreciado que fui convidado a apresentá-lo no auditório juntamente com os TCCs dos outros alunos.
Devidamente contrabandeando para o local onde deveria ter estado desde o princípio, tanto o trabalho quanto eu fomos devidamente achincalhados pela banca examinadora, com direito a uma intervenção por parte do professor de anatomia e patologia, que sequer fazia parte da banca examinadora e quebrando totalmente o protocolo tomou o microfone (e o palco) para apresentar a sua própria versão sobre o tema. No momento, isso não fez a menor diferença no resultado já que o meu TCC “oficial”, sobre algum tema qualquer sem a menor relevância para o conhecimento científico, já havia sido apresentado e aprovado. Mas a reação da banca e do professor tiveram um valor já que, observando tão exclusiva e explosiva reação por parte do corpo docente, tive a certeza de que essa apresentação seria um sucesso, ou uma polêmica, em outras faculdades e por isso a mantive e a aprimorei, levando-a para outras faculdades e congressos de nutrição por muitos anos seguintes.
Liberto da forma mais enrijecida de preconceito acadêmico que é aquele que predomina na graduação, onde os alunos são moldados para aprender o que devem e não devem pensar, encontrei uma maior (mas não grande) abertura no campo da pesquisa científica.
Fui co-autor de trabalhos de pesquisa científica acerca do tema da nutrição vegetariana em instituições respeitadas como o Instituto do Coração (InCor) com direito a publicação em revistas científicas internacionais de medicina. Esses trabalhos sempre tiveram mais aceitação nos congressos no exterior. No Brasil a aceitação se mostrou mais fácil em congressos médicos do que em congressos de nutrição. Já no exterior, onde são realizados congressos científicos de alguns dias de duração com temática dedicada integralmente à nutrição vegetariana, a aceitação é maior. Afinal, em alguns países os órgãos equivalentes ao nosso Conselho Federal de Nutrição (CFN) já têm publicado há mais de duas décadas pareceres favoráveis à adequação nutricional das dietas vegetarianas.
Nos últimos anos, os congressos de nutrição no Brasil passaram a dar mais abertura para palestras sobre o tema, mas nem tanto para publicações científicas. A explicação para isso é que as palestras têm menor peso científico nos anais do congresso e por isso são mais bem aceitas para a apresentação de temas “polêmicos”. Elas trazem público ao congresso, de certa forma informam, mas não exatamente agregam ao conhecimento científico. Ou seja, do ponto de vista científico, têm menor significado, pendendo para a curiosidade ou opinião individual com menos efeito para sedimentar um conceito, por isso a maior aceitação por parte da academia quando o tema são as dietas vegetarianas, pois essa forma de apresentação oferece um risco menor.
É fundamentada em publicações científicas e não em palestras, por exemplo, que uma comissão dentro de um conselho profissional como é o caso do CRN-3 pode emitir um parecer como o atual. Felizmente, nesse ano assim o fizeram, mas essa conquista é fruto de muitos anos de trabalho e perseverança já que nem sempre foi assim. Mais adiante voltarei a falar do CRN-3 de mais de uma década atrás.
Com mais publicações científicas, e maior atenção da mídia, também fruto de um trabalho intenso de muitos anos levando informação aos veículos de comunicação e quebrando preconceitos também nessa área, as faculdades de nutrição passaram a olhar com melhores olhos para o tema da nutrição vegetariana, levando a discussão aos alunos que, percebendo em seu próprio convívio o crescimento no número de vegetarianos, sempre se mostraram muito receptivos às apresentações. Em 2006 surgiu na UNASP o primeiro (e até essa data o único) curso de pós-graduação a dedicar uma disciplina inteira, ou mais de uma, ao tema da nutrição vegetariana. Juntamente com a colega nutricionista Dra. Márcia Martins, criadora do curso e também autora de diversas publicações científicas relacionadas ao tema, tenho a honra de fazer parte do corpo docente do referido curso, que até hoje continua sendo ministrado na universidade.
Havendo certa autonomia na comunidade científica, também outorgada enquanto professor, essa mesma autonomia não é gozada em todas as áreas da atuação profissional do nutricionista. Tendo encerrado o período da faculdade em 1997, dessa forma não tendo mais que prestar satisfação aos professores; tendo conquistado aceitação das palestras em faculdades e para o público em geral e; inserido nas instituições de pesquisa com aceitação dos trabalhos científicos no Brasil (em menor grau) e no exterior (em maior grau), agora seria a vez do CRN-3 (esse mesmo que hoje reconhece a viabilidade das dietas vegetarianas) buscar tolher a minha atuação profissional aparentemente “subversiva”. Por meio de processos disciplinares, sabatinas e convocações intimidatórias para dar explicações sobre a minha atuação profissional na qual recomendo dietas vegetarianas, sempre sob a pressão de penalidades que variam de uma simples advertência até a suspensão permanente do direito de exercer a profissão, eu mantive a posição que sempre defendi e na qual me especializei desde o início da faculdade, que é a da viabilidade e superioridade nutricional de uma dieta vegetariana.
O primeiro processo foi iniciado pelo CRN-3 em 2003 e culminou na proibição do uso da assinatura que acompanhava os meus comunicados e impressos: “Dr George Guimarães, nutricionista especialista em dietas vegetarianas”. O argumento do CRN-3 foi o de que não havia tal especialidade dentro da nutrição, que além do mais não aceitava as dietas vegetarianas como sendo adequadas à nutrição humana. Não tendo outra opção se não a de acatar ao pé da letra a determinação do Conselho Regional de Nutricionistas, assim o fiz, ao pé da letra, exatamente como constava no documento e desde então passei a assinar como “nutricionista especializado em dietas vegetarianas”, que se analisarmos de maneira minuciosa podemos concluir tratar-se de um termo (quase) diferente daquele que constava no documento com a determinação do CRN-3. Por algum motivo, a provocação não foi aceita e assim tenho mantido a nova assinatura.
Mas não faltaram motivos para novas denúncias, novos inquéritos e novos pedidos de explicações, sempre sob a ameaça das punições disciplinares cabíveis. O último processo disciplinar foi aberto em 2011, poucos meses antes de ser admitido pelo mesmo órgão, na data de hoje, a viabilidade nutricional das dietas vegetarianas desde que observados alguns cuidados especiais, melhor ainda, desde que orientadas por um nutricionista que seja “especializado” no assunto (com perdão do uso do termo subversivo), que na data da publicação do documento de absolvição só existem porque conseguiram sobreviver à caça às bruxas da nutrição vegetariana no país.
Portanto, vamos comemorar! Mas comemorar o que? O que muda, afinal? Naturalmente, não é só porque o CRN-3 finalmente admite a viabilidade das dietas vegetarianas que os nutricionistas que estão formados ou em formação ganharão uma consciência imediata sobre o respeito devido aos pacientes vegetarianos ou um conhecimento suficiente para prestar uma boa orientação nutricional. Mas a publicação desse parecer impulsionará as faculdades a incluírem o tema em seus currículos e, sobretudo, deixará claro para os profissionais nutricionistas que eles não mais poderão desencorajar um paciente que chega ao seu consultório com a opção de uma dieta vegetariana sob o pretexto de essa ser inviável do ponto de vista nutricional. Todos os meus pacientes, sem exceção, são vegetarianos, protovegetarianos [2] ou estão em transição para uma dessas modalidades e cito como exemplo da desinformação e preconceito por parte de outros profissionais o fato de que cerca de 50% deles chegam ao meu consultório depois de já terem passado por outros nutricionistas. Eles decidem procurar uma orientação especializada depois da péssima experiência que tiveram com os seus nutricionistas convencionais, que em geral os desestimulam a adotar uma dieta vegetariana, chegando ao ponto de amedrontá-los em relação aos supostos riscos “irremediáveis” aos quais estarão sujeitos caso decidam insistir continuar com a sua opção alimentar. Ora, salvo em caso de distúrbio alimentar com causa psicológica, o papel do nutricionista é o de orientar o paciente de modo a obter uma dieta balanceada dentro da sua opção de estilo alimentar, não sendo o seu papel desencorajá-lo quando essa opção é viável do ponto de vista nutricional somente porque essa opção não está de acordo com as crenças filosóficas do nutricionista, ou ainda porque lhe falta o conhecimento necessário. Esse é o caso na maioria das vezes e a responsabilidade é da faculdade de nutrição, que dá pouca ou nenhuma importância ao tema na formação dos profissionais que em poucos anos estarão frente a frente com um paciente vegetariano que o procurará em busca de orientação.
Na prática, ao menos no meu entendimento, agora com a publicação desse parecer os nutricionistas (ao menos por hora aqueles que atuam nos estados de abrangência do CRN-3), estariam vedados a desencorajar um paciente em sua opção por uma dieta vegetariana. Chego a essa conclusão por mera reciprocidade, uma vez que antes desse novo entendimento sobre a viabilidade das dietas vegetarianas os nutricionistas que optavam por orientar os seus pacientes com base em uma dieta vegetariana eram questionados. Se agora o entendimento é o de que as dietas vegetarianas são viáveis, seria uma infração desestimular um paciente a adotá-las sob a justificativa da sua “inviabilidade” nutricional? Esse entendimento não cabe a mim, mas sim ao CRN-3, mas trago esse arrazoado apenas para apontar que essa inversão deverá motivar os nutricionistas a estarem mais atentos e respeitosos diante da opção de seus pacientes vegetarianos, e possivelmente permitirá a alguns pacientes recorrerem ao CRN-3 para denunciar os nutricionistas que desrespeitarem a sua opção alimentar.
Por fim, devo dizer que estou tendo dificuldade de escrever esse texto sem me vir à mente a letra de uma música da banda IRA!, que diz: “Eu tentei fugir / Não queria me alistar / Eu quero lutar / Mas não com essa farda”. Não desertei a profissão nos últimos 18 anos por estar convicto de que a minha atuação (apesar de na sua forma especializada não ser ampla e oficialmente aceita pelos órgãos reguladores da profissão) sempre serviu ao real propósito que guia essa nobre profissão, que é o de levar conhecimento e orientação para a promoção da saúde independentemente da opção filosófica do indivíduo. Enquanto eu vista muitas fardas diferentes no meu dia-a-dia, agora posso dizer que me orgulho dessa nova farda, reformada graças à clareza e boa vontade do Colegiado 2011-2014 do CRN-3, ao qual parabenizo. Estendo minhas congratulações a todos os colegas nutricionistas vegetarianos, que há duas décadas não passávamos de uma dezena e hoje já somos mais de uma centena, perseverando em nossa postura a despeito das intempéries que possamos ter enfrentado em nossa caminhada profissional. Estejam certos de que essa conquista é fruto também do trabalho de vocês.
Continuemos lutando hoje para que possamos comemorar as conquistas da próxima década!
Notas
[1] Leia a íntegra do parecer divulgado pelo Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª região em 20 de janeiro de 2012 no endereço http://www.nutriveg.com.br/parecer-do-crn-3-sobre-dietas-vegetarianas-2012.html
[2] O CRN-3 errou ao utilizar o termo “dieta vegana”. Por ser o veganismo um estilo de vida e não um estilo alimentar, não existe uma “dieta vegana”, e sim uma dieta vegetariana, que é a dieta adotada pelo vegano. Apesar de serem comumente usados os termos “dieta vegana”, “dieta ovolactovegetariana” etc, inclusive em textos de minha autoria anteriores a 2010 ( http://nutriveg.com.br ), essa terminologia foi recentemente revisada. De acordo com o termo original criado no século XIX, revisado e resgatado em 2010 pela Sociedade Vegana ( http://sociedadevegana.org ), uma dieta vegetariana é aquela que é composta em sua totalidade por alimentos vegetais. As dietas que mantêm algum derivado animal como os ovos ou laticínios são chamadas “dietas protovegetarianas”. Com isso, os termos usados em alguns trechos do texto com o parecer do CRN-3 estão incorretos, pois de acordo com essa revisão da terminologia o termo “dieta vegana” é inexistente e o termo “dieta vegetariana estrita” é redundante haja vista que o termo “dieta vegetariana” já é restritivo ao excluir todos os alimentos de origem animal. Já o veganismo é a expansão do vegetarianismo (estilo dietético livre de quaisquer produtos de origem animal) para abranger outros aspectos do estilo de vida, como o vestuário, por exemplo.