Em uma pequena propriedade fora de Bloemfontein, uma cidade no interior da África do Sul, 70 burros vasculhavam pilhas de lixo para encontrar alimento ou estavam caídos e muito frágeis para ficar de pé.
De acordo com um trabalhador que cuidava da propriedade, eles haviam passado uma semana sem alimento. O chefe estava preocupado apenas com suas peles e nem havia lhes fornecido água, disse o homem. Foi revelado que 10 animais já tinham morrido. Atrás da casa, esticadas em um telhado, as peles dos burros secavam sob o sol. Dois animais foram esfolados naquela manhã.
As peles de burros são a base de um remédio tradicional chinês chamado ejiao, que é utilizado para o tratamento de uma série de condições sanguíneas e, cada vez mais, visto como um produto para o bem-estar. Na última década, as peles eram vendidas por até US$ 400 cada, uma vez que a população de burros da China diminuiu. O resultado é um comércio global sem precedentes, em grande parte ilícito.
Meyer não sabia sobre essa indústria quando examinou os animais em Junho de 2016. Ela havia sido procurada por membros da Highveld Horse Care Unit, um grupo de proteção de equinos. Os burros começaram a comer papelão e a fazer barulhos de desespero, segundo ela. “Muitos tinham os cascos deformados e foram infectados com herpes. Inúmeras mães abortaram devido ao estresse. Encontramos pelo menos 19 fetos, mas a contagem foi difícil, eles eram pequenos e começaram a se decompor”, explicou.
Os animais tiveram a morte induzida no dia seguinte, depois que um veterinário os declarou fracos demais para conseguirem sobreviver. Até então, este caso de crueldade animal era uma investigação sobre o tráfico de animais selvagens. Um equipamento, que Meyer descobriu ser usado para cozinhar carne de burro, processava abalone, um marisco marinho traficado da África do Sul para a China todos os anos.
As redes de fornecimento ilícitas atravessam as fronteiras e envolvem produtos diversos, impulsionados pelo mercado negro. Com a crescente demanda por peles de burro na China, os traficantes de animais selvagens começaram a ingressar nesse comércio.
Os produtores chineses de ejiao, que estão concentrados na remota província oriental de Shandong, consumem mais de quatro milhões de peles de burro por ano, extraindo gelatina com base em receitas que existem há 2.500 anos.
Tradicionalmente considerado um tônico sanguíneo para tratar doenças como a anemia, a ejiao foi visto como um item de consumo na década de 1990, o que gerou um aumento nos preços e nas vendas. Atualmente, os produtos derivados dele incluem cremes faciais, licores e doces.
Durante o mesmo período, a população de burros da China foi reduzida de 11 milhões para menos de seis milhões. Diante da escassez, os fabricantes ficaram cada vez mais dependentes das peles do exterior.
A maior parte das importações origina-se de países em desenvolvimento onde os burros historicamente são considerados baratos, o que os transforma em “produtos” cobiçados. No Níger, o preço médio de um burro subiu de US$ 34 para US$ 145 entre 2012 e 2016. No Quênia, os preços mais do que duplicaram desde Fevereiro de 2017.
Para prevenir a extinção dos animais, desde 2016, seis governos africanos proibiram as exportações de suas peles e outros seis fecharam os matadouros de burros. Mas essas medidas não conseguiram diminuir o número de peles e, em vez disso, alimentaram o comércio subterrâneo.
“Todos esses países que adotaram um posicionamento ainda enfrentam exportações maciças ilegais ou não regulamentadas”, diz Alex Mayers, do Donkey Sanctuary, um grupo de assistência social do Reino Unido que informou sobre o comércio no início deste ano.
Um novo alvo para traficantes de animais silvestres
Embora sejam destinadas a diferentes mercados, as remessas de peles de burro apresentam desafios logísticos similares a outras mercadorias traficadas e seu manuseio e transporte para a Ásia é realizado por traficantes de animais selvagens e outros grupos acostumados a infringir a lei.
“Observamos atentamente o elemento do crime contra animais selvagens. Há muitos rumores, mas provar a conexão é difícil”, diz Mayers.
Casos como o ataque de Bloemfontein ajudam a conectar os pontos. O abalone seco, um alimento que pode ser comercializado por mais de US$ 90 por libra na China, é o núcleo de uma economia criminal que lucra milhões de dólares anualmente na África do Sul e que possui relações com a lavagem de dinheiro e o tráfico de drogas.
A polícia localizou menos de duas dúzias de abalone seco da propriedade de Bloemfontein, uma pequena quantidade, considerando que as exportações ilícitas do país ultrapassam duas mil toneladas por ano, o equivalente a cerca de 500 mil mariscos. Porém, a descoberta aumentou as suspeitas de que as peles estão indo para o mercado negro.
Uma corroboração adicional ocorreu em Maio deste ano, quando oficiais encontraram mais de 800 peles de burro em uma fazenda fora de Joanesburgo. Além disso, também havia sete peles de tigres, considerados um símbolo de status na China. “As peles ainda estavam sangrando, como se tivessem sido processadas alguns dias antes”, declarou Grace de Lange, inspetora da SPCA.
A África do Sul não possui tigres nativos, embora centenas deles sejam mantidas em cativeiro e o comércio das partes de seus corpos seja mal regulado. Atualmente, a exportação de até 7.300 peles de burro por ano da África do Sul é legalizada. Os regulamentos exigem que os burros sejam mortos em matadouros aprovados, sendo que há um matadouro em operação e que possui licença para processar 20 burros diariamente.
Porém, uma única empresa de exportação, a Anatic Trading,que foi investigada pela polícia em Joanesburgo neste ano, negociou mais de 15 mil peles de burro em um período de oito meses, de Julho de 2016 a Maio de 2017, excedendo o limite anual de todo o país de cerca de cinco mil peles na época.
“Além das questões de crueldade animal, receamos que estas peles possam ser usadas para esconder outros bens”, diz Ockie Fourie, um capitão da Unidade de Roubo de Estoque do Serviço Policial da África do Sul.
Isso já foi documentado em outros países: a polícia recentemente descobriu criminosos utilizando peles de burro para traficar cocaína na Bolívia e na Colômbia. Acredita-se que os talibãs usaram as peles para esconder minas terrestres no Afeganistão.
Os lucros da indústria da ejiao, além da utilidade das peles para disfarçar mercadorias ilícitas, parecem atrair traficantes de animais selvagens na África, especialmente quando os governos restringem o comércio legalizado dos animais.
De acordo com um exportador do Quênia, entrevistado sob a condição de permanecer no anonimato, os compradores chineses pagam US$ 48 por pele. Isso equivale a cerca de US$ 130 mil por um contêiner de transporte padrão de 40 pés de comprimento repleto de peles e sem as despesas do envio, revelou a National Geographic.
“Os parceiros chineses que me apresentaram às peles de burros em 2015 me disseram que estavam vendendo como bolos quentes. O negócio está indo muito bem”, disse o exportador, um congolês que morou na China durante seis anos.
O Donkey Sanctuary identificou empresas na Nigéria, no Chade e nos Camarões que anunciam as peles dos animais ao lado de pangolins ameaçados e cujo comércio internacional foi proibido pela CITES.
“Para mover qualquer produto ilegal, você precisa de redes sociais e comerciais fortes. É essencial que os traficantes tenham relacionamentos de confiança com mais pessoas da rede de abastecimentos ou escondam o status ilegal de seus produtos”, diz Annette Hübschle, pesquisadora do Institute for Safety Governance and Criminology da Universidade da Cidade do Cabo.
Diversas empresas de pele de burro na África já foram associadas ao sequestro e ao assassinato dos animais. Uma companhia do Zimbábue foi recentemente usada para comprar milhares de peles em Botswana e enviá-las para a China através de Moçambique. Uma investigação revelou que os matadouros do Quênia estavam comprando burros de várias nações vizinhas, com o “tráfico transfronteiriço”.
Os traficantes têm observado esses relatórios, que indicam oportunidades inexploradas no setor do ejiao. “Um comprador de abalones que conheço começou a comprar peles de burro no ano passado. Ele se envolveu em tudo antes, da prostituição à venda de peles de leopardo e patas de leão. No entanto, as peles de burro são basicamente legalizadas. Realmente, é dinheiro fácil”, conclui um antigo membro da máfia chinesa da África do Sul, um grupo que controla o comércio de abalones.