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Chega de peso nas costas da mula do veganismo

18 de setembro de 2015
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Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Mula. Cruza de jumento com égua, nossa simpática quadrúpede foi muito usada ao longo da História da humanidade para carregar peso nas costas. Fazenda, mineração, guerra – você diz o seu ramo favorito de produção e desenvolvimento, e eu lhe respondo com ‘mula’. Cascos que puxaram os interesses de outros para frente, sem opção de escolha.
Então hoje o veganismo, tal como essa mula, está recebendo nas costas diferentes tipos de carga, de origens diversas e com valores questionáveis. Temo pelas pernas da mula, que mal se firma neste mundo de trilhas acidentadas, e já ganha peso-morto a cada curva, a cada nova ideia genial, a cada discussão & linchamento-amarrado-em-um-poste nas tais redes sociais. De cada um que se acha importante o suficiente para ter direito, ele sim!, de despejar uma nova bigorna no compartimento de carga do animal. Como se estivesse sobrando espaço ou como se isso facilitasse o caminhar.
Não, não está. Não, não facilita.
Então a mula do veganismo agora precisa carregar os entraves já existentes neste mundo de chão irregular, de subidas e descidas forçadas. As questões todas, espinhosas e de demorada solução – tal como a libertação animal é – são colocadas no lombo da nossa mula, com preferência. São contêineres pesados.
Do vegano é cobrado que use uma mochila com um kit pré-fabricado de escolhas e opiniões sobre assuntos outros, que não dos animais não-humanos e sua relação com a exploração e morte. Então eu ouço gente falando sobre a obrigatoriedade do vegano ser, por exemplo, um ‘natureba’. Claro que é melhor para uma pessoa, pontualmente, se alimentar ‘melhor’ – embora essa ‘melhor’ varie horrores de palpite a palpite.
E cada qual armado com um chicote de razões, justificativas e desdobramentos pronto a bater no traseiro daquela nossa pobre mulinha. Essa apanha de muita gente, mas agora sofre açoite de quem, …hã…, ‘defende a libertação animal’.
Além de toda a dificuldade que temos – nós, os ativistas de calçada – de propor algo às pessoas que, em primeira/última análise vai cortar de suas vidas este e aquele prazer gastronômico-familiar-social, ainda teríamos que exigir que tudo fosse necessariamente orgânico, sem glúten, sem artificiais, sem fritura, sem açúcar, e até sem soja, como me cobraram recentemente. Já ouvi de tudo, e muitas das recomendações me parecem ‘conselho de vó’. Nada contra alguns cuidados, mas não sou bom-moço.
Em voga, causas sociais têm sido empilhadas nas costas da mula do veganismo. Como se ela precisasse carregar peso. Então ‘não é vegano’, ‘não é abolicionista’ aquele que não priorizar, ora veja, os interesses humanos em pontos como sacrifício de animais em riturais religiosos ou carroças. De alguma forma, quem optar por defender os não-humanos do bombardeio diário que sofrem, é tachado de racista, preconceituoso, elitista, opressor e ‘de direita’.
E essas cusparadas-reação são tão rápidas que são destinadas, muitas vezes, a quem tem uma trajetória de ação e pensamento que difere dos adjetivos acima citados. Já levei cuspida e vi muita gente boa virando alvo, o que reforça minha tese.
Tive o desprazer de escutar, nessa guerra por hegemonia, que ‘vegano tem que ser a favor do aborto’ e ‘vegano tem que ser contra o aborto’. Uma discussão-abacaxi como essa não é ponto pacífico na sociedade e apenas traz desconforto se os defensores dos animais tiverem que lidar com mais esse debate. Porque se a opinião for A ou B, independente de fazer uso de termos acadêmicos ou da Bíblia ou nenhuma-das-alternativas-acima, vai cair em desgraça para determinado segmento, vai virar um ‘não-vegano’, pois é contra, ou é a favor, do aborto. Faz sentido para nossa amiga mula?
Me espanta que auto-intitulados libertários arremessem torta na cara das pessoas com os sabores ‘certo’ ou ‘errado’. E nisso, friso, não estou passando a mão na cabeça de quem erra em prejuízo dos animais – ao contrário, penso e ajo para que essa situação se modifique, mas sem jogar para a torcida do time pobre ou do time rico.
O especismo ganha forças e coloca tentáculos boca a fora dessa gente – como em um filme de horror – quando o problema humano passa na frente de todos que estavam na fila. Ditam, assim, que os não-humanos valem menos. Que esperem na fila da História um pouco mais.
Uma coisa é termos critérios mínimos para o veganismo abolicionista, com saudáveis discussões que os levem um pouco para cá, um pouco para lá. Outra coisa é apenas dificultar, colocar peso nas costas da mula. Somente os perfeitos podem ser veganos, somente os que pensam-como-eu-penso podem ser abolicionistas de verdade? Sinto cheiro daquela vontadezinha totalitária que tanto estrago e sofrimento causou – em humanos especialmente, friso – ao longo da História, travestida de revolucionário-de-mesa-de-bar-da-faculdade.
E vejo o suor da mula, tentando andar neste mundo não-vegano com uma carga do tipo ‘humanos têm preferência até na causa animal’. Temo por suas pernas.

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