Ao fim dos quatro anos da guerra que começou em 1914, o mundo contabilizava suas vítimas: 15 milhões de mortos e mais 20 milhões de feridos. Agora, no centenário da I Guerra Mundial, os pesquisadores voltam os olhos para as vítimas esquecidas do conflito. Além da carnificina humana, as batalhas que se espalharam pela Europa dizimaram cerca de 8 milhões de cavalos, a principal força animal usada na agricultura na época. A cada dois homens atingidos por tiros, bombas e gases letais, um cavalo morreu.
Só os exércitos franceses utilizaram entre 1,5 milhão e 1,8 milhão de equinos, enquanto a Inglaterra levou para os campos de batalha outros 1,2 milhões e a Alemanha, 1 milhão. Os demais países, estimam historiadores, somavam 4 milhões de animais. Oitenta por cento dos cavalos franceses morreram em campo, 35% deles por tiros inimigos, destino parecido com os das demais tropas. A maior parte morria de fome e exaustão, sacrificada ou abandonada nas longas travessias entre os campos de batalha.
Os cavalos começaram a ser recrutados no início da guerra, junto com os soldados. Na França, uma lei de 1877 permitia que o governo tomasse os animais para servir em conflitos. Assim, em agosto de 1914, 730 mil cavalos franceses, um em cada quatro no país, marcharam para as trincheiras. A França contou ainda com 20 mil animais vindos da Argélia e mais 30 mil importados de outros lugares. “No campo, desapareceram, ao mesmo tempo, homens e cavalos”, afirma a historiadora Gene Tempest, pesquisadora da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
Gene conduziu um estudo de quatro anos sobre a presença dos cavalos nos exércitos britânicos e franceses na I Guerra Mundial. Vasculhou arquivos dos dois países e descobriu que os bichos eram muito mais numerosos nas batalhas do que se imaginava.
No início dos combates, os equinos retirados das fazendas, indústrias e pequenos sítios eram colocados nas linhas de frente — uma herança das guerras do século 19, apoiadas em colunas poderosas de cavaleiros. Com o desenvolvimento de armamentos mais precisos, os generais perceberam que os cavalos pouco ajudavam no front. Por serem grandes demais, tornavam-se alvos fáceis para tiros e bombas.
A cavalaria seria importante até o fim do conflito em batalhas no Oriente Médio e no leste da Europa. Mas, no oeste do continente, seu papel essencial era o de meio de transporte. Noventa por cento dos animais eram usados para carregar os canhões até a linha de tiro, transportar soldados, alimentos, armas, munições e correspondências. Eles carregavam os mortos após as batalhas e serviam como veículo silencioso para espionar tropas inimigas. Registros de combates, como fotos e diários, mostram que são poucos os acampamentos sem a presença de cavalos. Segundo Gene, é um mito imaginar que, como a cavalaria desapareceu, os cavalos também estiveram ausente das guerras. Eles permaneceram em todas as batalhas da primeira metade do século XX.
A razão da larga utilização desses animais é que eles se davam muito melhor em ambientes frios e lamacentos — como as trincheiras — do que carros e caminhões. Na década de 1910, os cavalos eram mais disponíveis e baratos do que os motores. Além disso, a maior parte dos homens que lutaram na guerra estava acostumada a conduzir cavalos, enquanto eram raros os que sabiam dirigir caminhões e tanques.
Estar longe das balas e minas, entretanto, não evitou o massacre dos animais. Como os soldados, eles morreram aos milhões. O serviço veterinário de guerra francês contabilizou, durante os quatro anos de guerra, 6,5 milhões de atendimentos aos cavalos — o que significa que cada um entrou nas enfermarias em torno de sete vezes. Para substituir essa força de trabalho tirada de circulação, os exércitos organizavam missões para a compra de animais ao redor do mundo. Os britânicos importaram 700 mil dos americanos e 5 mil dos uruguaios. A França comprou 500 mil dos Estados Unidos e outros 70 mil da Argentina. “No início do conflito, França e Inglaterra esperavam adquirir ainda mais dos países da América do Sul. No entanto, a biologia dos animais interveio a seu favor. Eles não suportavam muito bem a mudança de estação e a viagem era mais longa que dos Estados Unidos para a Europa”, explica Gene.
A França gastou 139 milhões de dólares no comércio equino com os Estados Unidos, enquanto os ingleses pagaram 337,5 milhões de dólares. Comparado ao preço dos animais europeus, os americanos eram bem mais baratos. “Era politicamente menos custoso comprar animais de fora do que pedir à população europeia que sacrificasse os seus”, diz a historiadora.
O número poderia ter sido maior, se os cavalos importados não fossem, em sua maioria, considerados selvagens pelos europeus. Relatos de soldados franceses mostram que era preciso domar os animais e ensiná-los a enfrentar os horrores da guerra antes de serem explorados.
Além do número de bichos que diminuía, as tropas precisaram lidar ainda com outro problema: a alimentação. Em 1917, eram necessárias 3.750 toneladas de aveia diárias para suprir as necessidades dos animais. Desse total, 70% vinham dos Estados Unidos, que diminuíram as exportações devido ao alto preço do frete. Ver os cavalos famintos, sem forças para os combates e, muitas vezes, morrendo de inanição, significava um forte abalo emocional para os soldados. Para alguns, a perda dos animais inocentes era um trauma a mais, somado à morte inútil de milhões de companheiros entre balas, minas e o arame farpado que cobria as trincheiras.
Homens e cavalos são recrutados conjuntamente e sua presença no front contribui ainda mais para sua humanização — os bichos eram vistos como soldados de outra categoria. Durante as batalhas, são as sociedades de apoio animal que cuidam dos cavalos. Elas levantam recursos para os serviços veterinários nos acampamentos e instituições constroem seus próprios hospitais no front. Durante os quatro anos do conflito, 250 mil libras são enviadas pela RSPCA para o tratamento de animais. Em 1916, o secretário de guerra dos Estados Unidos solicitou à American Humaine Association ajuda para os bichos feridos. Foi o embrião da Red Star Animal Emergency Service americana que, até hoje, cuida de animais vítimas de desastres.
Para os soldados, a visão dos cadáveres dos cavalos, grandes e malcheirosos, causava um impacto profundo. Afinal, esses bichos acompanhavam a maior parte dos homens em tempos de paz, nas cidades ou no campo.
Relatos de psiquiatras militares mostram que ver um companheiro morrer — mesmo de quatro patas — era uma agressão para o equilíbrio psíquico dos combatentes, que podia levar à revolta, ao horror e à indignação. Além do sentimento de dor, a morte dos cavalos se tornou, para muitos soldados, um meio de exprimir o sofrimento vivenciado nas trincheiras. “Nos testemunhos de combatentes, descrever a dor da perda de um animal era uma forma indireta de expor a angústia pelas mortes humanas”, explica Baldin. “Há sempre uma transposição entre bichos e humanos.”
Fonte: Veja