Cada vez mais comuns nos tribunais de todo o país, as causas judiciais movidas em nome de animais é uma conquista para o direito animalista.
Na última sexta-feira (26), a cidade de Porto Alegre foi palco de uma ação judicial pioneira. Sequela, um cão comunitário sem raça definida, foi objeto de discussão em uma assembleia ordinária. O animal, que costuma circular livremente pelas áreas comuns do residencial Ravena II, começou a incomodar alguns moradores.
A conferência iria decidir se o cachorro poderia frequentar os espaços do condomínio ou se ele seria impedido de conviver com seus amigos de longa data. O resultado do pleito foi de 32 a 26 votos favoráveis para o cãozinho, que tem uma casinha fixada na rua, mas que prefere percorrer os espaços entre os moradores do residencial, onde é acolhido desde que era filhote.
Sequela tem 15 anos e é originário de uma ninhada de oito irmãos. Por ser o menor de todos, ganhou esse nome, apesar de ter a saúde 100% em dia. Abandonado pela família, o animal que é considerado dócil por quem o conhece, cresceu na vizinhança sob os cuidados de moradores.
Ele foi crescendo e ampliando seus espaços, até que conquistou o direito de pernoitar em alguns apartamentos. Só que a frequência de suas visitas foram incomodando novos residentes, que não conheciam a história do animal.
Em entrevista para GZH Porto Alegre, Andréia Alves Silva, 53 anos, uma das guardiãs do cachorro, relatou momentos difíceis na tutela do cão. “Fomos notificados ano passado, com prazo para o Sequela não andar mais por aqui. O prazo acabou e fomos novamente notificados e multados, em R$ 550. Foi então que recorri. Foi feita assembleia em que a multa foi perdoada, mas a notificação ficou valendo”.
Andreia é ativista da causa animal e há cerca de cinco anos, em conjunto com outros moradores, cumpriu os requisitos junto à Secretaria Especial dos Direitos Animais (Seda), para dar a Sequela o título de cão comunitário. Ademais, os apoiadores mantêm outros três cachorros em um lar temporário pago, além de alimentação, vacinas e demais cuidados, que juntos chegam a R$ 1 mil em despesas por mês.
Com o futuro incerto, Sequela passou os dias desfrutando de liberdade e fazendo o que todo cachorro faz: latir, pular nas pessoas e disparar correndo atrás dos motoqueiros. Porém, as reclamações que chegavam até o síndico Jezoni Almeida, 41 anos, foram se acumulando.
Foi quando a guardiã do cão, Andreia Alves, buscou auxílio jurídico para lutar pelos direitos de Sequela, que já é idoso e sofreria muito se fosse proibido de ter acesso ao condomínio.
Coordenados pelo advogado animalista Rogério Rammê, os condôminos então organizaram um abaixo-assinado solicitando uma assembleia. “Requeremos a juntada e análise do abaixo-assinado em anexo para apreciação e deliberação em uma assembleia condominial para a manutenção da condição de vida do cão comunitário Sequela para que possa viver os últimos momentos de sua velhice livre, com dignidade e harmonia nas dependências do condomínio que ‘escolheu’ para viver e proteger”, declarava o documento.
A luta pelos direitos do Sequela, teve até declaração da médica veterinária que o atende, apontando que o cão tem “temperamento dócil e não possui zoonose”. Também é assinalado o fato de que o animal desenvolveu “laços de dependência afetiva com os moradores do condomínio”.
Sequela venceu o pleito com duas abstenções de voto, do síndico e do subsíndico. “Quem faz as regras é a assembleia. A administração cumpre. Fizemos questão de ficar isentos. Sabemos que ocorrerá queixas, que se aparecer fezes na grama, por exemplo, vão dizer que é do Sequela”, diz Jezoni, que também é advogado.
Apesar de continuar livre, quem responderá pelo cãozinho em caso de incidentes, será sua tutora responsável, Andréia Alves. “Ele é dócil, amigo das crianças. Passeia com outros cães. Nunca aconteceu nada grave”, expõe a técnica de enfermagem.
O advogado Rammê comemorou a solução do caso. “Muito embora Sequela seja um cão comunitário, protegido pela Lei Estadual 15.254/19, o caso em questão é no mínimo raro, se não for inédito. A relação socioafetiva, de dependência e de manutenção do Sequela com a comunidade do condomínio foi debatida pelos moradores. O condomínio está de parabéns pelo exemplo dado, pois o rompimento desse vínculo que o Sequela criou há anos com os moradores implicaria danos emocionais ao animal, caracterizando uma situação de maus-tratos. O síndico também está de parabéns pois oportunizou o debate democrático, prevalecendo a vontade da maioria de reconhecer no Sequela um sujeito de direito, vulnerável, com dignidade própria e protegido por lei”, finaliza o jurista.
Agora Sequela pode passear sossegado pelo Ravena II, com a certeza de ser um cachorro que tem seus direitos reconhecidos e respeitados.