Há dez anos causou-me indignação a maneira pela qual uma matéria do programa de televisão “Fantástico” (Rede Globo) tratou uma população de búfalos asselvajados que vivem na Reserva Biológica do Guaporé, em Rondônia. Como forma de desabafo, escrevi um curtíssimo texto, intitulado “Farra do búfalo?”, que foi publicado no jornal AN Capital em 06/09/2005 (o texto encontra-se disponível no site “Simplicidade Voluntária”.
Dez anos se passaram e eis que me deparo com a notícia de um projeto do governo de Rondônia que pretende abater cerca de cinco mil búfalos que habitam a Reserva Biológica do Guaporé e a Reserva Florestal Pedras Negras, na região do Vale do Guaporé. A proposta deve ser analisada pela Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO) no primeiro semestre de 2016.
Búfalos em Rondônia?
O problema teria começado quando cerca de trinta animais provenientes da ilha de Marajó foram introduzidos em Rondônia na década de 1950, pelo governo, com o objetivo de se tornarem fornecedores (sic) de carne e laticínios. Entretanto, por conta de uma má gestão, o projeto fracassou e os búfalos se dispersaram para as reservas mencionadas, onde se reproduziram ao longo dos anos e se tornaram asselvajados.
Para capturar os animais pretende-se instalar grandes currais com cochos contendo sal grosso – substância que atrai esses e outros mamíferos – e aqueles que atenderem às exigências previstas pela Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril (Idaron) e Ministério do Meio Ambiente serão enviados para abate e comercialização da carne. O objetivo é acabar com todos os animais em cinco anos.
Matar sob que alegação?
Os animais são acusados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sedam) de causar degradação ambiental e risco a moradores, além de constituírem um potencial problema sanitário uma vez que não são objetos de inspeção para controle de doenças (como brucelose e aftosa). Uma veterinária da Sedam afirma que os búfalos têm causado muitos danos nessas áreas protegidas. Devido à compactação dos solos, resultante do pisoteio das trilhas por meio das quais se deslocam, formam-se valas cujos sedimentos assoreiam os rios da região. Além disso, enxotam e destroem o habitat de animais nativos. Nas praias, os ovos de tartarugas estariam sendo pisoteados pelas manadas, diz ela. Eles são também acusados de derrubar árvores ao usarem seus troncos como escoras para se coçarem.
A veterinária, que acredita no sucesso do comércio da carne (mais rica em ferro e com menos colesterol; portanto adequada para idosos e crianças), argumenta ainda que os búfalos são animais exóticos que não pertencem à fauna brasileira. Ela destaca que “a ideia de trazê-los para Rondônia foi boa, mas fracassou”.
Especismo e ganância
Neste momento é preciso tecer algumas considerações. Primeiro, os responsáveis pela inserção dos búfalos em Rondônia deveriam estar cientes dos riscos inerentes à introdução de espécies exóticas. Mesmo naquela época já existia uma razoável diversidade de relatos sobre o assunto e, hoje, a literatura internacional contém, às fartas, exemplos de casos mal sucedidos. Essa não foi, portanto, uma boa ideia. Apenas pensando nos animais como fontes de divisas é possível ofuscar a ótica da prudência no que tange às inúmeras externalidades que podem advir de práticas assim.
Segundo: é necessário salientar que o fato de os animais não pertencerem à fauna brasileira não os destitui da capacidade de sofrer. Acusam os animais de destruírem o “meio ambiente” como se eles tivessem discernimento para distinguir entre uso sensato e destrutivo dos recursos naturais. Dessa forma, o covarde abate de famílias inteiras de búfalos é totalmente naturalizado. A situação que se apresenta nesse e noutros casos, como o dos javalis, teria sido evitada, primeiro, não criando tais animais como produtos; segundo, responsabilizando de imediato os culpados pelo problema criado. A única solução eticamente correta é capturar e castrar os animais. O expediente proposto é o pior possível porque transforma vítimas da ganância humana em meros “contraventores do meio ambiente”.
Enquanto isso, o gado bovino comercial brasileiro – duzentas e doze milhões de cabeças! – continua sendo a causa dos maiores desastres ambientais, aqui e no mundo, sem que haja nenhuma política pública consistente para tratar da questão. Estabelece-se uma falsa dicotomia: os animais “ilegais”, destruidores do meio ambiente, e os “legais”, também causando destruição ambiental, porém sob a vista grossa de instituições e da sociedade. Ecologia rasa, cega e surda, mas não muda. Sua voz é bem audível: é um grito de guerra contra os inocentes. Dois pesos, duas medidas, embora no final todos sejam mortos!
Mas, e o “Búfalo Bill”?
Para quem nunca ouviu falar, William Frederick Cody (1846-1917) – mais conhecido como Buffalo Bill – foi um dos mais famosos personagens do chamado “Velho Oeste” norte americano. Ganhou notoriedade por ter matado milhares de búfalos num curtíssimo espaço de tempo. Segundo duas fontes consultadas, teria abatido cerca de cinco mil búfalos num período inferior a dois anos. A carne era destinada ao exército americano e aos operários que construíam uma estrada de ferro, a Kansas Pacific Railroad. Bill também era caçador de animais de pele, cowboy e “showman”.
Em pleno século XXI desponta no horizonte um cenário de matança de búfalos à altura do feito de Buffalo Bill. Interessante é que, quase cem anos após a sua morte, ainda tenhamos tanto a aprender. A chacina desses animais hoje é, no mínimo, um ato extemporâneo porque, na época de Bill, não existiam os questionamentos de ordem ética, ou o conhecimento acerca da senciência animal que temos hoje.
Custo da matança
Ainda segundo a matéria citada na nota 2, a Sedam estima que nos primeiros doze meses de funcionamento serão necessários R$ 1,6 milhões para custear a construção de área para quarentena, adestramento, currais, cocho, incinerador, barcos, alojamento, materiais de consumo e despesas com funcionários. De acordo com estimativas, nos anos seguintes o custo fica em torno de 15% do inicial, R$ 600 mil por ano, perfazendo um total de R$ 4 milhões em cinco anos. Mas o custo pode ser bem maior.
Outro olhar sobre os animais
Na matéria do Fantástico de 2005, citada antes, o rebanho bubalino selvagem de Rondônia já aparecia como um problema. Quais providências foram tomadas durante esses dez anos (ou anteriormente) para controlar essas populações? Estão sendo apreciadas alternativas que levem em conta os interesses desses animais – em contraposição ao atual projeto de matança – considerando a mesma ordem de grandeza de custos? Estarão de fato computadas no procedimento proposto todas as externalidades decorrentes do processo, considerando suas diversas etapas? Nesse e noutros contextos argumenta-se que a prática é legal e necessária, como se isso a isentasse de ser moralmente abominável. É também possível que outras questões de ordem econômica (além do valor da carne) possam estar agindo como o fiel da balança na decisão de exterminar esses animais. Rondônia possui um título concedido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) de “área livre da aftosa” desde 2002.
Sem entrar no mérito da sua origem, termino citando um trecho da célebre “Carta do Chefe Seattle” (1854) – da mesma época e “terra” de Bill – onde há uma menção à matança de búfalos:
Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos somente para permanecermos vivos.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.