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As planilhas de Excel da humanidade ou 'Animais de barriga cheia, animais de barriga vazia'

15 de julho de 2011
3 min. de leitura
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Queria eu escrever coisas bonitas e fofas sobre os animais. Mas estaria escrevendo sobre uma parte, menor parte, de uma totalidade de seres que estão na Terra já para sofrer, criados e vindos com objetivos pré-definidos, e nada favorável a eles. Nada que os poupa da dor, da opressão e da vida de escravo, barriga cheia ou não.

Queria eu descrever cenas como as que correm pela Internet, de porquinhos se esfregando os focinhos, de porquinhos rosados dormindo entre flores ou em um cesto, bebê de quatro patas e com a mesma inocência, provocando um ‘ai que fófoi’ das pessoas. Mas esse não é o mundo lá fora, de criações em divisórias de concreto, merda sólida, líquida ou gasosa no ambiente, confinamento, retirada de dentes, castração, engorda e ‘vida’ como uma torturante sala-de-espera-de-dentista até o banho gelado final – para concentrar a circulação sangüínea junto ao petio – e a sangria obrigatória. Uma vida de pré-lombinho assado, pré-salame, pré-lingüiça, que nada tem a ver com o Gaguinho ou outros procos antropomorfizados que, quando criança, aprendemos a amar. Eu mesmo passei a minha infância apaixonado pela Miss Piggy, dos Muppets. Enfim.

Queria eu relatar como os pintinhos se protegem sob as asas da mãe, zelosa, imagem clássica que tanto ilustrou livros infantis. Mas o sistema, ajoelhado aos ditames do Dr Moreau, criou o frango, um zumbi-clone-mutação, que vive aos milhares durante poucos dias, para então alimentar – de forma especial, digamos – todo aquele que bate no peito para dizer ‘sou contra os transgênicos’. Aí pede pastel de frango, pois ‘é vegetariano’. Claro, todo mundo aqui tem um tio, e esse tio tem um sítio, e nesse sítio as galinhas vivem soltas e felizes e com pintinhos e não são mutantes. Acredito piamente que há um Sítio da Vovó Donalda na fé de cada um. Enfim.

Queria eu pintar quadros onde os cavalos correm livres o dia todo – “mordendo o vento na cara, bebe horizonte nos olhos, empurra a terra pra trás”, diz a canção ‘Potro Sem Dono’. Quadros como aquelas fotos decorativas onde há cavalos graúdos, longas crinas, gramados guardando sua presença, cavalinhos ainda aprendendo o potencial das próprias pernas. Mas – sempre tem o mas – basta abrir a janela para ver um cavalo miúdo, seco, na sede e Sol na cabeça, puxando a miséria humana sobre carroças. Se não puxa, apanha – essa regra é clara, e só não percebe a relação de poder quem romantiza, sempre, a figura humana, especialmente quanto mais pobre for. Mas o não-miserável cria cavalos, bota para correr no Jockey, faz montaria – acrho bizarro puxar um animal pela boca estando montado nele, e dizer ‘adoro cavalos’ ao mesmo tempo – e se diverte com rodeios, e bota o cavalo para ser veículo de transporte humano em desfile, forças armadas ou passeio. Escravos de barriga cheia, escravos de barriga vazia.

Queria eu escrever uma poesia sobre animais fofos e peludos, mas… não dá para ignorar o que acontece na indústria de peles, nos laboratórios de pesquisa.

Queria eu chamar ao palco todos os demais, submetidos a uma tirania humana que, tal seu poder, até eventualemnte vai se compadecer de tanto sofrimento, mas não abre as algemas. Separa bem o que vai sofrer do que vai ser afagado, o que será alvo separado do que vai ser bibelô, o que é praga afastado do que foi comprado para ser companhia e preencher vazios da vida, o que é ingrediente abundante e vai morrer dentro em breve, do que merece todos os esforços, captação de recursos e projetos governamentais para não morrer. Essa é uma escolha ditatorial humana, um exercício de poder que determina – tal como as barrigas cheias e barrigas vazias de sua própria espécie – quem é ‘polegar para cima’ ou para baixo, conforme o azar que teve na hora de nascer, e o respectivo encaixe nas planilhas de Excel da humanidade.

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