Há quase dois mil anos, em Roma Antiga, as diversões mais populares ocorriam dentro do Coliseu. Esta grandiosa arena de espetáculos, cuja estrutura sobreviveu ao tempo e ainda hoje pode ser vista, quase inteira, foi um local de crueldade explicita. Historiadores contam que ali se promovia luta entre gladiadores, martírio de cristãos, execução pública de prisioneiros e desertores, da mesma forma que se protagonizavam caçadas a animais trazidos da África e contendas mortais entre bichos exóticos de espécies diferentes. Centenas de touros, ursos, leões, tigres, cavalos, girafas, rinocerontes, javalis, camelos e crocodilos perderam a vida, barbaramente, nesses eventos registrados em alguns bestiários. Tudo com muito sangue e areia, bem ao gosto da política imperial do pão e circo. O aspecto mais curioso a mover o povo daquele tempo era o inegável grau de sadismo que atraía multidões aos estádios.
Os herdeiros das arenas romanas, na atualidade, são os estádios de futebol, sem esquecer das praças de touradas e de rodeios. Não que aconteçam matanças generalizadas nos campos esportivos, até porque as torcidas adversárias costumam ser divididas por setores e cordões de isolamento, com relativa supervisão policial. Coincidência ou não ao estilo de vida dos nossos antepassados europeus, o fato é que em território brasileiro, apenas nas duas últimas décadas, numerosos casos de violência a torcedores foram registrados pelas câmeras de TV, algumas deles com desfechos trágicos. Se ninguém intercedesse, se deixassem o quebra-quebra rolar, se liberassem os rojões, os foguetes lança-chamas ou os enfrentamentos humanos nas arquibancadas, aí sim as estatísticas da violência subiriam ainda mais.
E vem a pergunta que não quer calar: para que construir tantas novas arenas? Talvez porque vivemos na chamada sociedade do espetáculo. Sem querer desqualificar o festejado “padrão Fifa” nos nossos estádios, ouso dizer que São Paulo,por exemplo, é uma cidade que já possuía bons campos de futebol. Recusaram o maior estádio particular do mundo (o Morumbi) para sediar jogos da Copa 2014, puseram abaixo o simpático reduto alviverde (o Palestra Itália) e fizeram pouco caso da mais legítima casa do povo (o Pacaembu), para então construir monstros de ostentação e consumo de dinheiro público como são a Arena Corinthians (que, por justiça, deveria se chamar Estádio Vicente Matheus) e a Arena Palmeiras (que representa a última pá de cal à harmonia arquitetônica que um dia existiu no bairro da Água Branca). E o Rio de Janeiro, então? Foi um crime o que fizeram com o clássico Maracanã de tantas glórias, ao edificarem em seu lugar uma abóbada calorenta, artificial e sem alma.
Volto aos animais vítimas da intolerância humana. Na impossibilidade de se matarem uns aos outros, os torcedores mais fanáticos e alucinados costumam fazer de tudo para hostilizar o time rival, tanto na vitória como na derrota. Quantas vezes já ouvi dos vencedores que, sendo Palmeiras o derrotado, o churrasco com carne de porco rolaria noite afora. Se fosse o Santos a perder o título, uma imensa fritada de peixe era suficiente para a alegria dos campeões. Em Belo Horizonte, por sorte, a conquista da Copa do Brasil fez com que o galo símbolo do Atlético Mineiro se safasse da vingança de seus predadores. Ainda bem que entre nós, por enquanto, não se come raposa, nem urubu e muito menos gavião, caso contrário diversos outros animais mascotes de célebres times estariam com os dias contados.
E assim o mundo segue seu curso, aqui ou acolá, no presente vivido ou no passado relembrado. A simples observação antropológica revela que os homens, quando se juntam em bando, são capazes das mais inusitadas e maldosas ações. Xingam, batem e até matam, fazendo-o por nada, às vezes só por adoração irracional a um clube de futebol. Ora, por que se deve querer todo ano ser campeão? Por que a taça do mundo toda vez precisa ser nossa? Por que há de estar “você na frente, sempre?”. A pensar assim, de modo egoístico, quem mais sofre na pele as conseqüências de tanta insanidade é o próximo, seja um ser humano, seja um animal. Do jeito que as coisas vão o melhor a fazer é esperar o apito final.