Por Tagore Trajano
A possibilidade de animais não humanos irem a juízo reivindicar seus direitos perante os Tribunais não é ideia nova. Ao contrário, data de períodos distantes. Porém, estes casos desencadeavam uma sensação de estranheza e até mesmo de comicidade por parte dos operadores do direito, que não sabiam lidar com esse tipo de lide.
O objetivo deste texto é uma mudança de concepção jurídica por parte destes operadores. Ocorre que por não entender os animais como sujeitos de direitos dentro do ordenamento jurídico, juízes, promotores e advogados desprezavam ações envolvendo animais, não concedendo adequado acompanhamento a estes casos.
Em 1999, Cass R. Sunstein escreve um texto pioneiro a fim de discutir a possibilidade de animais irem a juízo defender seus interesses. Sunstein inicialmente publica Standing for Animals (with notes on animal rights) – capacidade para estar em juízo para os animais –, publicado na UCLA Law Review, e logo depois Can animals sue? (Animais podem estar em juízo?) publicado em coletânea junto com Martha Nussbaum.
Para Sunstein, duas seriam as formas estratégicas de concessão de direitos no mundo jurídico que poderiam ser utilizadas em favor dos animais: 1) para aumentar a categoria dos direitos além do que já é reconhecido pelo sistema legal; 2) para garantir que os direitos que agora estão nos livros se tornem efetivos na prática. Dessa maneira, nada impediria que animais fossem a juízo defender seus direitos perante os Tribunais.
De fundamental importância será o conceito de standing, que para o Direito Constitucional dos Estados Unidos será a legitimação dada a uma específica pessoa de ir a juízo defender seus interesses. Para a Suprema Corte Estadunidense seria a possibilidade de um litigante obter uma decisão de mérito em disputas judiciais.
Erwin Chemerinsky, professor de Direito Constitucional da Universidade da Califórnia/Irvine, ensina que ao decidir, os Tribunais irão identificar os valores nos quais definirão quem poderá ir a juízo ou não. A doutrina do standing busca delinear o determinado local do Judiciário no sistema de governo democrático. Isto faz com que este mecanismo sirva como um eficiente freio para uma inundação de processos dentro dos Tribunais.
A teoria do standing funciona como uma forma de desenvolvimento das decisões do poder judiciário no qual questões controversas fazem com que os Tribunais firmem decisões sobre este ou aquele caso, ajudando as outras instâncias no processo de decisão. Um exemplo a ser ilustrado é o caso do Animal Legal Defense Fund v. Glickman, em que um empregado e também voluntário da associação protetora de animais foi ao Judiciário, pois entendia ser ilegal o tratamento desumano imposto aos diversos animais do Long Island Game Park and Zoo. O empregado afirmou em juízo que tinha visitado o parque algumas vezes e que o tratamento desumano e ilegal dado aos animais lhe causou um dano ao seu interesse estético (de ver os animais da melhor forma no parque). O tribunal decidiu que aquele interesse estético do visitante do zoológico valia como dano de fato (injury in fact).
Uma das preocupações da teoria do standing é a de servir como um valor de justiça. Uma forma de assegurar o direito do cidadão de buscar diretamente os seus próprios direitos. Como no Brasil, o acesso à justiça nos Estados Unidos deriva de normas constitucionais. A Suprema Corte vem decidindo que questões relacionadas à possibilidade de estar em juízo derivariam da interpretação do artigo terceiro da constituição americana e não poderia sofrer restrições de normas infraconstitucionais.
No sistema americano três são os requisitos constitucionais para se ter standing: 1) o autor deve alegar que sofreu um dano ou que irá sofrer um dano iminente (injury in fact); 2) o autor deve demonstrar que existiu um nexo de causalidade entre o dano e a conduta do acusado (cause in fact); 3) o autor deve alegar que o dano é possível de ser reparado por uma conduta do acusado, evidenciando para isso uma decisão favorável para aquele caso nos tribunais federais dos Estados Unidos, ou seja, o dano deve ser concreto e individualizado.
Somam-se aos requisitos constitucionais outros que a Corte Americana afirma ser de base discricionária, podendo ser mudado pelo legislador. Estes são igualmente três: a) é direito da parte reclamar seus próprios direitos perante a corte, mas não direito de terceiros, salvo exceções; b) em questões relacionadas ao pagamento de tributos, o autor não poderá ir a juízo sozinho se dividir o dano com outros contribuintes; e c) a parte deve reivindicar seus direitos dentro da zona de interesse protegida pela legislação em questão.
Com fundamento nesses requisitos, o papel da teoria do standing é o de definir a cobertura judicial dos direitos constitucionais , ou seja, será a principal maneira de explicar quando os Tribunais Americanos (cortes federais) poderão aceitar um caso ou não. Juízes apenas aceitarão uma demanda no momento em que o autor tiver standing para reivindicar e suportar seus interesses perante o Tribunal.
Uma analogia com o sistema brasileiro poderia ser feita com a personalidade processual ou capacidade para estar em juízo. Este é o atributo de todas as pessoas naturais e jurídicas, entes despersonalizados, movimentos sociais, órgãos das pessoas jurídicas de direito público para estar em juízo, a fim de promover ou defender seus direitos. Este conceito corresponderia à aptidão genérica e abstrata para figurar em qualquer processo como parte.
De fato, por muito tempo os interesses dos animais não foram defendidos em juízo porque partíamos do raciocínio de que não havia uma pessoa legitimada para tanto. Consideravam-se os animais, como uma parte de toda fauna brasileira, ou seja, todos eram prejudicados e por isso ninguém detinha legitimidade específica para representá-los. É preciso reconhecer que reformas judiciais e processuais serão fundamentais para o processo de mudança de paradigma jurídico, a fim de desenvolver um ordenamento jurídico mais justo e solidário para todas as espécies, humanas e não humanas.