A chimpanzé Suíça tinha dez anos quando morreu em 2005 no Jardim Zoológico de Salvador, na Bahia, aguardando uma posição da Justiça sobre sua transferência para uma reserva ecológica. A decisão não veio a tempo, mas estabeleceu um paradigma importante para a causa animal: A chimpanzé foi reconhecida como sujeito jurídico no processo.
O debate sobre a categorização dos animais no Direito brasileiro ainda é um desafio. No Código Civil, por exemplo, seu status passou de “coisa” para “bem” — o que na prática continua atraindo para eles o regime jurídico de objeto.
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“Em outros países, a legislação vem sendo atualizada para dizer que o animal, apesar de não ser um sujeito de direitos, não é uma coisa, que se alguém maltrata um animal comete crime”, explica o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Daniel Dias.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconhece, desde 1978, os animais como “seres sencientes”. Isso significa que, se eles são capazes de sentir, não podem ser tratados como objetos.
Embora nosso Código Civil esteja desatualizado, o Brasil tem outras leis que caminham para formar um sistema mais robusto de proteção aos animais. A lei dos crimes ambientais, de 1998, por exemplo, estabelece punições para maus-tratos contra animais silvestres, domésticos ou domesticados.
“Estamos em uma fase de transição e, conforme nós venhamos a evoluir na própria proteção dos nossos direitos fundamentais, talvez a gente consiga alcançar esse patamar mais avançado civilizatório que é entender os animais como detentores de direitos à proteção. Não o direito especificamente de exercer direitos, porque eles não têm personalidade jurídica para isso, mas de ser objeto dessa atenção. Há obrigações que podem ser colocadas para a própria sociedade”, defende o advogado Cássio Faeddo, que é mestre em Direitos Fundamentais.
A Constituição de 1988, no artigo 225, também estabelece a obrigação de proteção da fauna. O texto autoriza, no entanto, “práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro”.
“A nossa Constituição tem uma visão mais holística do meio ambiente, entendendo o ser humano como parte dele e os animais não só como utilidades. Essa visão é até meio conflitante com o Código Civil, que entende os animais como coisas. O Código de 2002 reproduz ainda um antropocentrismo, as coisas em função do homem”, explica Faeddo.
A exploração de animais em atividades “culturais” foi pano de fundo do julgamento das vaquejadas no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2016. Popular na região Nordeste, a vaquejada é uma atividade recreativa em que dois vaqueiros, montados em cavalos distintos, buscam derrubar um boi, puxando-o pelo rabo. Os ministros proibiram a prática por verem “crueldade intrínseca”.
O STF também criou um precedente importante ao validar, no ano passado, uma lei do Rio de Janeiro que proibiu testes de cosméticos e perfumes e de produtos de higiene pessoal e limpeza em animais.
Animais domésticos
A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou, no ano passado, a Lei 17.497, que endureceu as penas para maus-tratos de animais domésticos e criou um programa de proteção e bem-estar para eles. O texto é um dos mais protetivos do País.
“Para o animal doméstico acaba tendo uma atenção mais diferenciada, digamos, do que se você for mexer em uma farra do boi, por exemplo, que é um assunto que chegou ao Supremo Tribunal Federal e se tornou um leading case sobre proteção de animais nessa parte de jogos, de rodeio. Aí entra um choque cultural”, avalia Faeddo.
O advogado defende que há questões para além dos maus-tratos de animais domésticos que precisam ser melhor regulamentadas, como o tratamento humanizado para os animais criados para a matança e a proteção dos animais em situação de rua.
“Sendo um país que não lida muito com precedente, nós teremos que legislar de uma forma mais completa”, defende.
Jurisprudência
A advogada Letícia Yumi Marques, especialista em Direito Ambiental e coordenadora do curso de extensão em Direito Animal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) caminham para reconhecer o direito dos animais.
“O Poder Judiciário começou a perceber que a tutela do animal como coisa ou bem não é mais suficiente para dar resposta jurídica para os casos nos tempos atuais”, afirma. “O que mudou de 1988 para cá é a percepção de que os animais têm valor intrínseco, independente da utilidade que eles tenham para o ser humano.”
A especialista lembra que as primeiras decisões nesse sentido começaram no Direito de Família, quando juízes precisaram decidir sobre a tutela do gato ou cachorro em processos de divórcio.
“Quando começaram a tutelar, no caso da separação de casais, quem ficava com animal, começaram a perceber que não é só o direito das partes A e B, do casal que está se separando, de ficar com o animal, mas também é um direito do animal, já que existe ali um laço, um vínculo de afeto, de convivência”, explica.
“Passou-se até a usar o instituto da guarda desse animal, entendendo também já aí o que hoje se chama de família multiespécie.”
Outro debate recente gira em torno da possibilidade de admitir os animais no polo ativo dos processos, ou seja, como parte da ação judicial. Esse movimento vem crescendo desde pelo menos 2020. Em setembro do ano passado, a Justiça do Ceará deu ganho de causa em ação indenizatória “movida” por um cachorro.
“Tem vários casos de ações que os autores, os seres humanos vinculados a esses animais, tentam promover a ação em nome do animalzinho. Já houve uma protetora que colocou todos os animais que viviam no terreno abandonado no polo da ação, os bichinhos demandando seus direitos”, explica Letícia.
“Aqui em São Paulo, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado tem uma jurisprudência tendente a não aceitar os animais no polo ativo das ações, mas já tem tribunais que aceitam. Na minha opinião, esse movimento tem muito mais importância para o ativismo da causa animal do que efeito prático, porque na prática a lei vai ter que ser cumprida da mesma forma.”
Fonte: Uol