Por que devemos manter um aumento da temperatura global abaixo de 1,5°C? Quais são as implicações disso para a nossa Floresta Amazônica e por que os cientistas do clima falam em “pontos de inflexão” se atingirmos graus mais elevados de aquecimento global?
Enquanto o Brasil bate recorde sob recorde em termos de desmatamento e incêndios na maior floresta tropical do mundo, essas perguntas vêm cada vez mais se somando à lista de preocupações com o bioma amazônico.
Mas de que forma as mudanças climáticas podem afetar a região? E qual o impacto disso para o Brasil e o mundo já que as transformações na floresta influenciam o clima global (e vice-versa)?
Abaixo, nesta reportagem, você vai entender quais são essas principais questões. Antes, veja um resumo em 8 tópicos:
- Há muito tempo cientistas do clima observam uma perturbação significativa na Amazônia, causada principalmente pelo desmatamento, queimadas e mudanças climáticas. Com isso, secas se tornaram mais longas e frequentes na região;
- Essa retirada da cobertura floresta também vem enfraquecendo os “rios voadores” do bioma, os fluxos de água que distribuem umidade por toda a América do Sul;
- Se nada for feito para conter o desmatamento e as queimadas, uma perda de, no mínimo, 50% da floresta no sul, leste e centro da Amazônia é esperada; os cientistas chamam isso de “ponto de não retorno”, algo que pode acontecer entre 30 e 50 anos;
- Isso acarretaria um aumento de cerca de 4ºC na temperatura do bioma e levaria a uma savanização da Amazônia. O bioma ficaria parecido com um Cerrado degradado;
- Por causa disso, períodos de seca seriam ainda mais frequentes e longos na região;
- Com consequência do enfraquecimento dos rios voadores, menos chuvas ocorreriam na bacia do rio Paraná e em grande parte do centro-oeste do Brasil;
- Interferências também seriam vistas em outros países da América Latina, com menos neve nos Andes e menos chuvas na Amazônia colombiana, no Uruguai, Paraguai e centro-leste da Argentina;
- Por outro lado, muita coisa ainda pode ser feita para reverter isso. Além de um reflorestamento ambicioso, e uma política efetiva contra o desmatamento e as queimadas, especialistas ressaltam que precisamos limitar o aquecimento global bem abaixo de 2°C.
O que são os pontos de não retorno?
A teoria dos pontos de inflexão climáticos (como também são chamados os pontos de não retorno) surgiu pela primeira vez em 2008 com um estudo de Tim Lenton, quando o climatologista britânico descreveu 9 cenários pelo mundo que devemos evitar.
Evitar porque esses seriam cenários irreversíveis e com consequências drásticas para o nosso planeta que dependem das mudanças climáticas. Ou seja, se não controlarmos o aumento global da temperatura em 1,5ºC acima da linha pré-industrial, eventos como a savanização da Amazônia (entenda mais abaixo), o degelo do permafrost e o derretimento de grandes porções de gelo no Ártico e na Antártida se tornariam cada vez mais prováveis.
De lá pra cá, é importante ressaltar que essa teoria foi revisada algumas vezes e os cientistas consideram agora que existem pelo menos 16 desses pontos espalhados pelo mundo.
E diversas evidências já apontam que alguns desses pontos de inflexão estão se aproximando, como as seguintes:
- Na Amazônia, as secas estão mais frequentes e longas;
- Na Austrália, branqueamentos generalizados de recifes de coral estão ocorrendo cada vez mais;
- Tanto na Antártida como na Groelândia, a perda de volume das plataformas de gelo está acelerando;
- No Mar Ártico, medições de satélite indicam que a área coberta por gelo marinho também vem diminuindo;
- Já na Rússia e no Canadá, a preocupação é com o permafrost, uma camada de rocha e matéria orgânica debaixo do solo que vem derretendo.
O que é o ponto de não retorno da floresta?
No caso da Amazônia, o biólogo Mairon Bastos Lima, que estuda o tema há décadas, ressalta que não sabemos ao certo onde está esse limiar, justamente por causa das mudanças climáticas.
“Com a temperatura média do planeta se elevando, a verdade é que esse ponto de não-retorno fica menos distante, e o desmatamento fica ainda mais ameaçador. E é o tipo de ameaça silenciosa ao menos para quem não atenta para os sinais, o que alguns chamam de desastre de início lento, mas que depois que se consolida, ganha tração e aí não tem mais volta”, ressalta Bastos.
Por outro lado, o climatologista Carlos Nobre, reconhecido internacionalmente pelo seu trabalho sobre a Amazônia e as mudanças climáticas, explica que, na prática já estamos vendo alguns resultados do aquecimento global na Amazônia.
Nos últimos anos, a temperatura de todo o bioma aumentou cerca de 1ºC a 1,5ºC mesmo em áreas de floresta, principalmente por causa da inclinada nas emissões globais de gases de efeito estufa.
E isso teve consequências para o aumento de eventos extremos na região. Se antes as secas aconteciam normalmente uma vez a cada 15 ou 20 anos, agora, somente as últimas duas décadas registraram cerca de 4.
Este ano, como mostrou o g1, apenas no estado do Amazonas, a seca já afeta rios de todos seus 62 municípios. “Isso é uma resposta do aquecimento global, que aumenta os extremos climáticos em todo o planeta”, ressalta Nobre.
Aliado a isso, em alguns lugares, a floresta amazônica agora está emitindo mais dióxido de carbono do que é capaz de absorver. Se antes o bioma era considerado um importante “sumidouro” do CO2, a preocupação agora é em reverter as altas taxas desse gás causador efeito estufa em regiões onde o desmatamento impera na Amazônia.
Segundo um projeto do Observatório do Clima que mede emissões desses gases, entre os 10 municípios brasileiros que mais emitem esses gases, 8 estão na Amazônia, e todas essas campeãs de desmatamento.
Nobre, que também contribuiu com vários relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ressalta que é essa a combinação “perversa” das mudanças dos usos da terra e do aquecimento global que está levando o nosso bioma “a beira do precipício”, ou seja, a um chamado ponto de não retorno onde os danos ao ecossistema seriam irreversíveis.
Nessas regiões com uma alta taxa de desmatamento e de degradação, a floresta é substituída por pastagens para pecuária. Como consequência disso, a área de pastagem recicla muito menos água, principalmente na estação seca. Além disso, o desmatamento e os incêndios devolvem o carbono que a floresta absorveu para a atmosfera.
“A transpiração e evaporação da pastagem é um terço da evaporação e transpiração da floresta durante a estação seca”, ressalta o climatologista, que introduziu o conceito do ponto de não retorno para descrever as possíveis mudanças na região.
Em setembro, o projeto MapBiomas, uma organização que monitora a cobertura e uso da terra no país, divulgou um estudo mostrando que entre 1985 e 2021 a Amazônia perdeu 12% de suas florestas, uma área equivalente a dez vezes o estado do Rio de Janeiro.
Com mais de 44,5 milhões de hectares convertidos para agropecuária nesses 37 anos em todo o bioma, não é difícil imaginar porque o sul da Amazônia já tem uma estação seca que aumentou aproximadamente de 4 a 5 semanas desde 1979, segundo os estudos de Nobre.
“Cada uma árvore que é cortada significa menos evapotranspiração, isto é, menos água se evaporando das folhas para a atmosfera. Com menos água na atmosfera, há menos chuva. Havendo menos chuvas, as próprias plantas sofrem mais com as secas. O desmatamento, basicamente, interrompe o ciclo da água que é vital para a região amazônica, o Brasil, e o planeta”, acrescenta Bastos.
E o que pode acontecer com o bioma?
Se cruzarmos esse ponto de não retorno a floresta começará a se auto degradar.
Isso quer dizer que a Amazônia vai, aos poucos, se transformando num ecossistema caracterizado principalmente pelo o que os cientistas chamam de dossel aberto, algo que não chega a ser uma clareira, mas sim um ambiente com poucas árvores e muitas gramíneas e arbustos, bastante diferente do que vemos hoje.
E isso parece, embora muito mais degradado, com o nosso Cerrado, um bioma que se espalha por 11 estados na região central do país.
O problema é que essa não é uma comparação muito justa porque o cerrado é uma savana tropical muito rica em biodiversidade, que armazena uma quantidade enorme de carbono. Já esse ecossistema degradado que a Amazônia pode se tornar, não.
Pelas estimativas do climatologista, com cerca de 20% da destruição da floresta, poderemos chegar nesse fatídico ponto de não retorno, com a Amazônia savanizada ou dessertificada. E isso seria suficiente para causar um efeito dominó pelo Brasil e o mundo.
Além das secas mais frequentes e duradouras, os modelos apontam para um enfraquecimento dos chamados “rios voadores” do bioma, os fluxos de água que distribuem umidade por toda a América do Sul, afetando os volumes de chuvas.
No Sudeste do país, como os rios voadores influenciam apenas de 15% do volume de chuvas, Nobre explica que não teríamos diferenças muito significativas.
Por outro lado, como consequência desse impacto, menos chuvas ocorreriam na bacia do rio Paraná e em grande parte do centro-oeste do Brasil. Um impacto importante também seria observado na Cordilheira dos Andes, que ainda teria uma estação seca curta, embora com menos ocorrências de neve.
Pela porção sul da América do Sul, menos volumes de chuva também seriam registrados no Uruguai, Paraguai e centro-leste da Argentina.
“E a nossa previsão é que entre 30 e 50 anos essa auto degradação coma pelo menos 50% de toda a floresta e aí só vai restar a floresta lá perto dos Andes, porque lá chove muito mesmo com essa diminuição da chuva”, explica Nobre.
Assim como em outras partes do mundo, um cenário de retrocesso desencadeado pela mudança climática é bem provável se o aquecimento global exceder 1,5°C e as tendências atuais de secas mais severas sobre a floresta piorarem.
“Em regiões mais secas, poderemos ver até pontos de inflexão regionais de perda florestal que se autopropulsionam”, diz Lenton ao g1, que também é professor de mudança climática na Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Um plano ambicioso para a Amazônia?
Para piorar todo esse quadro, quando florestas tropicais como a Amazônia são queimadas, isso pode representar um risco para o clima por décadas a fio.
Um estudo recente coordenado pela pesquisadora brasileira na Universidade de Lancaster, Camila Silva, mostrou que depois que a floresta é destruída por um incêndio, as emissões de CO2 atingem seu pico num período de quatro anos por causa da decomposição das árvores, durando mais de três décadas.
Por isso, embora alguns estudos sugiram que a Floresta Amazônica possa ser mais resistente e consiga aguentar firme toda essa pressão, há um consenso entre respeitados cientistas do clima de que uma resposta rápida ao aquecimento global pode ajudar a evitar as consequências devastadoras das mudanças climáticas.
“O desmatamento da Amazônia precisa parar, e precisamos fazer tudo ao nosso alcance para limitar o aquecimento global bem abaixo de 2°C”, afirma Lenton.
O pesquisador, um dos mais respeitados cientistas no estudo dos “pontos de não retorno” pelo mundo, ressalta que embora a Amazônia venha perdendo sua estabilidade nos últimos 20 anos, ela ainda não atingiu seu ponto de inflexão.
Na COP 26, o governo brasileiro assumiu o compromisso de zerar o desmatamento ilegal em 2028, reduzindo progressivamente a prática: 15% ao ano até 2024; 40% ao ano em 2025 e em 2026; 50% em 2027; até finalmente, em 2028, desmatamento ilegal zero.
Lenton lembra que essa meta é ambiciosa, mas importante porque o desmatamento contribui para desestabilizar a floresta tropical remanescente. Apesar do comprometimento do governo Brasileiro, o Brasil vem caminhando na contramão do combate à devastação do bioma.
Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o desmatamento na Amazônia em 2022 foi o pior em 15 anos.
“Nós temos que buscar salvar a Amazônia. Precisamos de um megaprojeto de restauração florestal. Se a gente replantar áreas muitos desmatadas, a floresta secundária do bioma cresce muito rápido. E na hora que a floresta começa a crescer ela retoma seu papel”, diz o climatologista Carlos Nobre.
“Zerar o desmatamento, zerar a degradação e zerar o fogo é mandatório”, alerta.
Fonte: G1