Esta é parte da versão online da newsletter Crise Climática de quinta-feira (8). A versão completa, apenas para assinantes, mostra ainda como a seca sem precedentes na Europa está levando a Alemanha à beira da recessão, enquanto o país aposta em reação econômica com medidas climáticas e cortes de emissão.
No dia 5 de setembro, quando se comemora o Dia da Amazônia, a floresta amanheceu coberta de fumaça. O fogo na região nos primeiros três dias deste mês já supera metade das ocorrências de setembro de 2021. O desmatamento seguido por incêndios em um planeta mais quente está empurrando a Amazônia para o seu limite, com as regiões mais ao sul da floresta já em processo avançado de reversão para um ecossistema seco.
Quem afirma é Carlos Nobre, pesquisador sênior da USP que há quase 40 anos investiga a floresta e sua relação com o clima do mundo. Ele foi eleito este ano para a Royal Society, uma das organizações científicas mais antigas no mundo, com sede no Reino Unido.
Nesta entrevista, ele explica como a floresta está secando e se tornando emissora de carbono, descreve os desafios de seu projeto de bioeconomia para a Amazônia e lamenta que políticos brasileiros tentem associar a floresta à pobreza.
Cínthia Leone – No começo do século, os cientistas temiam que a temporada seca na Amazônia aumentasse em quatro semanas. Isso já aconteceu, e o temor agora é de que o período de estiagem cresça ainda mais. Por que a duração da estação seca é um indicador importante para avaliar o estágio de degradação da floresta?
Carlos Nobre – De 1979 até 2021, em praticamente todo o sul da Amazônia, a estação seca já aumentou de 4 a 5 semanas, sendo 5 semanas nas áreas mais desmatadas. Isso se deve a dois fenômenos que atuam em sinergia. O primeiro é o aquecimento global, que está induzindo uma maior frequência de secas extremas na Amazônia, ocorrendo agora mais de duas vezes a cada década, como em 2005, 2010, 2015, 2016 e 2020. Essa seca mais intensa contribui para uma duração maior do período de estiagem.
Junto com isso, nessa área enorme de quase 2 mil quilômetros quadrados ao sul da Amazônia o desmatamento está bastante avançado, e as pastagens que hoje substituem a floresta reciclam muito menos água. Como a floresta recicla muita água na estação seca, isto é, joga muito vapor de água na atmosfera, a própria floresta criava as condições de umidade para o início da temporada de chuvas. A soma do desmatamento e maior frequência de secas extremas é a explicação para o atraso da estação chuvosa na Amazônia.
O atraso da estação chuvosa está aumentando em média uma semana por década. A temporada de estiagem amazônica que durava de 3 a 4 meses, e hoje é de 4 a 5 meses, será de 5 a 6 meses em algumas décadas. Uma seca que dura de 5 a 6 meses é exatamente o clima do Cerrado. É impossível manter uma floresta tropical, um ecossistema de dossel fechado [com copas de árvores densas e altas que mantém o solo molhado e protegido da luz] se a estiagem é tão longa. A formação de um novo ecossistema degradado de dossel aberto, com poucas árvores, muitas gramíneas e arbustos é para onde estamos caminhando.
Muitos pesquisadores estão chamando atenção também para outro indicador: a mortalidade precoce de árvores grandes. Como os cientistas detectam esse fenômeno e com qual confiança?
Há um grupo de cientistas, muitos deles da área de botânica, que criou nos anos de 1980 o projeto Rainfor. Essa iniciativa seleciona uma área de 1 hectare e meio na floresta e mapeia todas as árvores que existem ali. Há mais de 100 pontos como este em todas as regiões da Amazônia, e eles medem também todas as árvores com mais de 15 cm de diâmetro. A cada dois anos, eles conferem tudo o que aconteceu – se uma árvore está retirando carbono da atmosfera, ou seja, se está crescendo aumentando sua biomassa, todas as árvores que mudaram de porte e também todas as que morreram nesse período. Todas as florestas do mundo passam por medições como estas atualmente.
O que eles viram nessas últimas décadas em toda a Amazônia, mas principalmente na parte sul da floresta e onde as estiagem já está mais longa: mortalidade maior de árvores típicas do clima amazônico, enquanto espécies que ocorrem tanto na Amazônia, como no Cerrado sobrevivem. Isso está acontecendo porque as árvores do Cerrado evoluíram para serem resilientes a secas prolongadas e queimadas, e as da Amazônia não.
É este o processo que faz com que a Amazônia esteja emitindo mais carbono do que absorvendo, como indicam estudos recentes?
É exatamente isso. Um artigo da pesquisadora Luciana Gatti do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], publicado no ano passado pela Nature e do qual eu fui co-autor, mostra que no sul do Pará e norte do Mato Grosso, a floresta já virou uma fonte de carbono. Não estou me referindo às emissões de carbono por fogo, desmatamento e degradação, falo da floresta em si. Isso acontece porque a mortalidade das árvores aumentou muito e a estação seca está agora até 30% mais seca e de 2°C a 3°C mais quente. A soma desses três fatores faz com que a floresta esteja perdendo mais carbono do que consegue absorver naquelas regiões analisadas, que estão mesmo na véspera do ponto de não retorno.
Uma das formas que o senhor tem indicado para reverter este quadro é um plano de desenvolvimento para a floresta, batizado de Amazônia 4.0. O que já é concreto neste projeto?
Este projeto é uma ideia muito disruptiva, então não é muito fácil conseguir financiamento. Mesmo assim, nós conseguimos alguns investidores iniciais, e um dos resultados foi a criação de um laboratório em São José dos Campos (SP) para industrialização da cadeia produtiva do cupuaçu e do cacau. Este conceito agora está pronto e nós vamos levar para quatro comunidades amazônidas, para as quais nós também estamos buscando financiamento das biofábricas para criação de vários produtos com essas matérias-primas.
Nós estamos desenhando laboratórios semelhantes para aplicar às cadeias da castanha-do-pará, de óleos vegetais de qualidade gourmet e do açaí. Nós também estamos projetando um laboratório de sequenciamento genômico, voltado inclusive para identificação de microrganismos com risco de gerar pandemia. Em todos esses casos, faltam recursos para construir os laboratórios. Esperamos que a aplicação no caso do cacau e do cupuaçu permita provar a viabilidade desses investimentos, atraindo financiamento para o que estamos chamando de bioeconomia da floresta em pé. Ela seria uma industrialização baseada na imensa biodiversidade da floresta para melhorar as condições de vida das pessoas que vivem nela.
O outro componente do projeto Amazônia 4.0 é a Escola de Negócios para a Amazônia, implantada pela Universidade do Estado do Amazonas em parceria com várias instituições e que já oferece capacitação para esta nova bioeconomia. Mas além disso, também estamos desenhando o que será o instituto de tecnologia da Amazônia com padrão MIT [Massachusetts Institute of Technology], que inclusive é nosso parceiro.
Ainda é muito forte no Brasil uma ideia oposta a essa da Amazônia 4.0 e que vê na floresta uma oposição ao desenvolvimento econômico. O ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, disse na COP26 que “onde há muita floresta há muita pobreza”. O senhor é otimista sobre o país superar essa mentalidade?
A afirmação desse ministro é totalmente mentirosa. Quando você vê todos os indicadores de desenvolvimento humano, os piores municípios da Amazônia são os mais desmatados. São dados oficiais do IBGE. É exatamente o contrário do que ele disse: as populações que foram por um caminho de trabalhar com a floresta, desenvolver sistemas agroflorestais, cooperativas de açaí, por exemplo, estão em condições bem melhores do que aqueles trabalhadores que estão atuando em áreas desmatadas.
Um exemplo vem do cacau. Grupos que trabalham com a cadeia deste fruto, e que antes estavam dedicados à pecuária, viram seu ganho aumentar em sete vezes. No caso do açaí, essa diferença de rendimento é de dez vezes. É claro que o número de produtores que migraram para sistemas agroflorestais ainda é pequeno, mas mesmo sem grande industrialização, eles já passaram a ganhar mais do que quando estavam dedicados a trabalhar em grandes monoculturas e criação de gado.
A tentativa de atrelar a pobreza à floresta em pé vem de políticos que representam a expansão do agronegócio atrasado. E muitos deles, infelizmente, também estão por trás do crime ambiental, da grilagem de terras e do fogo na Amazônia.
E o que mais você precisa saber
PETRÓLEO NA FOZ DO AMAZONAS
O Ministério Público Federal nos estados do Pará e Amapá emitiram recomendação conjunta à Petrobras para que suspenda a perfuração marítima na foz do Amazonas.
Segundo o órgão, a atividade vai impactar comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas que não foram consultadas. Ainda segundo o MPF, o estudo oferecido pela empresa é falho “e não considera nem a morfologia costeira amazônica nem a hidrodinâmica local.” Os procuradores alertam ainda que o dano potencial sobre a costa da Amazônia Atlântica pode atingir o mar territorial da Guiana Francesa. A petroleira nega que não tenha feito a consulta aos atingidos, defende seu estudo e diz que prestará esclarecimentos. A região de interesse da empresa abriga um dos principais berçários de vida marinha do planeta.
BRASIL E BOLÍVIA
Um estudo divulgado na segunda (5) em Lima, no Peru, afirma que Brasil e Bolívia respondem atualmente por 90% de todo o desmatamento e a degradação da Amazônia. Segundo a pesquisa, 34% da parte brasileira da floresta entrou num processo de transformação, 24% da parte boliviana, seguida pelo Equador com 16%, 14% na Colômbia e 10% no Peru. O El País na Espanha traz detalhes.
CORRIDA PELA DESTRUIÇÃO
Com as pesquisas indicando que Bolsonaro pode não se reeleger nas eleições de outubro, a destruição da floresta amazônica avança ainda mais rapidamente, reportou o site Diálogo Chino. Publicada em português, inglês e espanhol, a reportagem ouviu de especialistas que a incerteza de apoio em um próximo governo está fazendo com que desmatadores corram contra o tempo para queimar tudo o que conseguem até o fim da estação seca.
VOCÊ CONHECE?
No Brasil, além do português, falam-se mais de 200 línguas. Uma boa parte delas são indígenas, mas apenas 11 têm mais de 5 mil falantes. Nesta semana dedicada à Amazônia, a página Gabinete do Bichos publicou o Hino Nacional cantado nas línguas tikuna e kambeba.
Fonte: Uol