O bioma do Cerrado é um dos hotspots de biodiversidade do mundo e fonte vital para grande parte da água no Brasil. Apesar da sua importância, tudo indica que esse bioma pode entrar em colapso em menos de 30 anos se o agronegócio continuar avançando no ritmo atual. Essa descoberta é o escopo de um artigo baseado em pesquisas primárias apresentado por 12 cientistas brasileiros e publicado recentemente na revista Global Change Biology.
“Estamos falando de linhagens inteiras de vida que desaparecerão, sem mencionar vários insetos que existem apenas no Cerrado”, alerta Gabriel Hofmann, doutor em Ecologia e pós-graduando em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Hofmann é o autor principal de um novo estudo que analisa como a transformação da vegetação nativa em lavouras está acelerando as mudanças climáticas em um bioma que já teve quase metade de sua área convertida em plantações de soja, milho e algodão e pastos para gado. O aumento perceptível do desmatamento aconteceu após os anos 1990, quando produtores do agronegócio se concentraram numa parte do bioma que apelidaram de Matopiba – acrônimo que reúne as sílabas iniciais de quatro estados: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Hoje a região é o coração da nova fronteira agrícola brasileira.
O Cerrado de hoje é perceptivelmente mais quente e seco do que era no passado, conclui o artigo a partir de análises de temperatura e mudanças na precipitação ao longo de seis décadas. Aumentos de 2,24 °C em média nas temperaturas máximas mensais foram observados entre 1961 e 2019, com picos de 4 °C no mês de outubro. Se esta tendência persistir, a temperatura será 6 °C mais alta em 2050 em comparação com 1961, afirma o artigo. “As mudanças climáticas por si só já têm este efeito [quente e seco] sobre a região. O que estamos fazendo é ampliar este efeito expandindo as áreas de plantações, como a soja, e reduzindo a cobertura de vegetação nativa”, diz Francisco Aquino, professor de Geografia da UFRGS e um dos autores do estudo.
No artigo, os pesquisadores argumentam que a interferência humana está perturbando uma estratégia eficiente da natureza, em que, durante os meses de pouca ou nenhuma chuva, as árvores do Cerrado usam suas raízes profundas para buscar água em aquíferos a até 15 metros de profundidade no subsolo. Isso permite que as plantas continuem realizando fotossíntese e soltando água na atmosfera através da transpiração e da evaporação mesmo na estação seca. Esse mecanismo, explica Hofmann, desaparece com o avanço do agronegócio e a substituição da vegetação por grandes lavouras: “Na estação seca, os fazendeiros não plantam nada no Cerrado. Eles deixam o solo nu ou [coberto] com matéria orgânica morta. Como não há plantas para absorver a energia do sol e fazer fotossíntese, toda essa energia é usada para aquecer o ar, e a temperatura aumenta”.
Esse processo de esquentar e secar desencadeia um efeito cascata que pode acabar com a maior parte da biodiversidade do Cerrado. Plantas menores, que não têm raízes longas, dependem do orvalho como sua única fonte de água na estação seca. O orvalho costuma se formar à noite, quando as temperaturas mais baixas condensam a umidade atmosférica (que passa para o ar através da transpiração e evaporação das árvores de raízes profundas). Porém, com menos árvores e menos vapor de água no ar, além de temperaturas mais altas durante o dia e a noite, o orvalho é um fenômeno cada vez mais raro. “Essas plantas vão simplesmente torrar ao sol”, diz Hofmann.
Insetos, incluindo abelhas e formigas, e aranhas também são muito dependentes do orvalho como fonte de água. “Se tirarmos os insetos polinizadores, o ecossistema entra em colapso”, conclui Hofmann, que prevê grandes impactos na biodiversidade do Cerrado nos próximos 30 anos.
“Poderemos ver o Cerrado se transformar em algo muito parecido com um deserto”, alerta Tércio Ambrizzi, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo, que não esteve envolvido no estudo. Ambrizzi, que estuda as mudanças climáticas na América do Sul, diz que as descobertas da equipe de pesquisadores de Hofmann confirmam as previsões que ele e outros pesquisadores fizeram oito anos atrás para o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. “Essas descobertas mostram que teremos menos chuvas no Norte e no Nordeste, portanto o Cerrado será mais quente e seco e mais vulnerável a incêndios”, diz Ambrizzi. Em 2019, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registrou 63.874 focos de incêndio no Cerrado – um aumento de 61,92% em relação ao ano anterior. O número de incêndios permaneceu alto em 2020.
Em 2017, Bernardo Strassburg, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, alertou para o efeito do que denominou de “tempestade perfeita”: o encontro dos impactos da expansão do agronegócio, o desenvolvimento de infraestrutura, a fraca proteção legal da terra e incentivos limitados à conservação. De acordo com o artigo que publicou na época, as áreas públicas protegidas cobriam apenas 7,5% do bioma (em comparação com 46% na Amazônia). Além disso, a moratória da soja, acordo segundo o qual as companhias de commodities se comprometem a não comprar soja de terras recentemente desmatadas na Amazônia Legal, não se aplica ao Cerrado. Tentativas de fazer com que as empresas concordem com uma moratória semelhante para a savana, conhecida como o Manifesto do Cerrado, fracassaram.
“O quadro que vemos é bem pior”, escreveu Strassburg. Se nada mudar, ele estima que mais de 30% da vegetação nativa remanescente do Cerrado seja removida para dar lugar à agricultura até 2050, resultando possivelmente na extinção de 480 espécies endêmicas de plantas; isso equivale a mais de três vezes todas as extinções de plantas documentadas desde o ano 1500.
No fim de junho de 2021, o ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque pediu, em rede nacional de televisão, o uso “consciente e responsável” de água e energia no país, que enfrenta a pior seca em quase um século. Essa seca é uma péssima notícia para um país que gera 65% de sua eletricidade a partir de hidrelétricas. No nível individual, ela já significa um aumento nas contas de energia e até o risco de blecautes. A seca e os danos que ela traz à agricultura também representam uma ameaça à economia do país, que luta para se recuperar da pandemia de Covid-19.
De acordo com cientistas, os maiores problemas da crise atual se devem à interferência humana. Em primeiro lugar, existem as mudanças climáticas causadas pelo homem, que tornam o país bem mais quente e seco. Além disso, outra parte importante do problema é que o Brasil está ameaçando gravemente suas duas principais fontes de recursos hídricos. “Se preservarmos a Amazônia e o Cerrado, preservaremos as fontes de água em geral. Estamos falando de duas áreas extremamente importantes, e ambas têm sido desmatadas, queimadas ou alteradas”, explica Aquino. A Amazônia é onde os denominados “rios aéreos” da América do Sul se originam: correntes atmosféricas de umidade que partem das florestas tropicais e se dirigem ao sul e sudeste do país, onde se transformam em precipitação. Essas regiões, por sua vez, abrigam até um terço da população do país, e são as maiores vítimas da seca recorde de 2021. Assim como o Cerrado, a Amazônia também vê sua vegetação nativa encolher ano após ano com o desmatamento, que reduz o fluxo dos rios aéreos. Entre janeiro e julho de 2021, um total de 5.100 quilômetros quadrados de floresta foram perdidos, de acordo com o Inpe – uma área maior que três vezes a extensão do município de São Paulo. O desmatamento tem crescido em velocidade acelerada sob o governo do presidente Jair Bolsonaro.
Os problemas hidrológicos do Cerrado também pressagiam tempos difíceis para o agronegócio brasileiro, e também para o fornecimento de alimento para humanos e animais do planeta. O Brasil é hoje o maior produtor de soja do mundo, ultrapassando recentemente os Estados Unidos. O país fornece soja para países do mundo inteiro, como China, Ásia e a União Europeia. De acordo com um estudo publicado recentemente na revista científica World Development e assinado por cientistas do Brasil, Estados Unidos e Áustria, o aumento das temperaturas no Cerrado pode reduzir a produtividade da soja a um custo de US$ 4,5 bilhões por ano.
Os impactos mais devastadores, dizem os especialistas, podem não ser sentidos pelo agronegócio, mas por aqueles que não têm dinheiro para se adaptar às mudanças climáticas. “Os grandes produtores de soja podem reduzir o ciclo de suas plantações para evitar a estação seca, ou podem investir em caros sistemas de irrigação. Os mais afetados, contudo, serão as comunidades tradicionais e agricultores familiares, que são aqueles que produzem alimentos para a sociedade”, diz Hofmann.