Os seguintes argumentos são muito comuns:
“Na natureza, cada um privilegia a sua espécie. É natural privilegiar os da própria espécie. Logo, o especismo está justificado”.
“É natural para o ser humanos usar os animais (comer carne, escravizá-los, etc.). É por isso que estamos justificados a fazer tais coisas”.
“Comer animais está correto porque somos naturalmente onívoros”.
“Se não devemos comer os animais, para que servem os dentes caninos então?”
“Estamos justificados a comer animais porque os humanos estão no topo da cadeia alimentar”.
“Está correto favorecer os humanos porque na natureza os animais favorecem os da própria espécie, o que mostra que tal favorecimento é natural”.
“É justificado comer os animais de outras espécies porque na natureza, os animais não comem os da sua espécie, e sim, de outras”.
“Somos naturalmente especistas; por que o especismo haveria de estar errado então?
“Humanos são o ápice da evolução natural; isso nos dá o direito de subjugar membros de outras espécies”.
“A seleção natural está operando no mundo; o mais forte subjuga o mais fraco; por que eu deveria me importar com os outros então?”
“Sou uma pessoa que se baseia na ciência. A seleção natural está operando no mundo através da matança contínua. Assim sendo, estamos justificados a sermos egoístas”.
“Devemos ser veganos porque isso é o mais natural para o ser humano”.
“Devemos ser veganos porque não conseguimos cortar carne com nossos dentes caninos, o que mostra que comer carne não é natural para os humanos”
Há toda uma série de argumentos que assumem que, se um determinado comportamento é natural, então ele é correto, justificado. Mas, como veremos, não há nenhuma boa razão para se pensar que haja alguma conexão entre “natural” e “correto”, “justificado”. Quando investigamos se algo é correto, justificado, estamos a pedir razões contrárias e favoráveis a esse algo. Por exemplo, o fato de o sofrimento ser uma experiência ruim é uma razão para não causar sofrimento. O fato de o prazer ser uma experiência boa é uma razão para causar prazer. Todos nós aceitamos essas razões quando somos nós aqueles que experimentarão tais sensações. O fato de alguém ser desfavorecido com base em uma característica que não é relevante para o que está em discussão é uma razão para se rejeitar tal desfavorecimento. Por exemplo, nas decisões onde o que está em jogo é a possibilidade de prejudicar ou beneficiar alguém, discriminar os atingidos pela decisão por espécie, raça, gênero, número de dedos, número de letras no nome, é uma discriminação (ou seja, um tratamento desfavorável injusto), pois baseia-se em características moralmente irrelevantes (e são moralmente irrelevantes porque não influenciam na possibilidade de alguém ser prejudicado ou beneficiado).
Perguntar se algo é natural, pelo contrário, é perguntar algo muito diferente. “Comportamento natural”, por vezes, é definido de maneiras muito diversas:
(1) Como o que não é feito por humanos;
(2) Como o que é feito sem deliberação racional;
(3) Como o que é possível fazer sem ferramentas;
(4) Como o que os animais não humanos fazem;
(5) Como o que está de acordo com uma “finalidade” biológica para cada espécie.
De qualquer maneira que se defina “prática natural”, não há conexão alguma entre “natural” e “correto”, “justo”.
Vejamos:
(1) Se tudo aquilo que é feito pelos humanos é artificial, então não existem ações naturais, e exatamente toda e qualquer decisão seria errada (já que essa visão assume que, para uma prática estar justificada, deve ser natural). Assim, não faria sentido dizer “fazer x é certo porque x é natural”. Então, não pode ser esse o sentido do termo “natural” que está a ser usado nessas objeções.
(2) Se “natural” é definido como aquilo que é feito sem deliberação racional, fica mais difícil ainda entender porque práticas assim seriam automaticamente corretas, justificadas, já que uma prática ser correta ou errada depende justamente das razões contrárias ou favoráveis que poderiam ser oferecidas com relação a ela.
(3) Se “natural” é definido como aquilo que é possível fazer sem ferramentas, não há também porque se pensar que tudo que se faz assim é correto, justificado (ou seja, que tem boas razões para ser feito). Estuprar é possível de se fazer sem ferramentas. Espancar bebês e idosos também. Seria absurdo supor que essas coisas são certas só porque é possível fazê-las sem ferramentas, já que as razões que explicam o erro de fazê-las com ferramentas (o dano para as vítimas) estão igualmente presentes quando são feitas sem ferramentas. Assim sendo, não faz sentido dizer “temos caninos, e isso mostra que é natural comer carne, logo, comer carne está justificado”. Também não faz sentido apontar “você não conseguiria cortar a carne com os seus caninos, logo, comer carne não está justificado”. Isso porque, como vimos, as razões contrárias a se comer carne (o grave prejuízo para o animal que será a vítima) existem com total independência de se alguém o mata com os dentes ou com uma espingarda, por exemplo.
(4) Se “natural” é definido como aquilo que os animais não humanos fazem, também não há razão para se pensar que há alguma conexão com esses comportamentos e os comportamentos que possuem melhores razões a seu favor. Animais não humanos podem ter vários tipos de inteligência, mas não há nenhuma notícia de que sejam especialistas em ética, ou seja, especialistas em justificar decisões práticas. Portanto, não faz o menor sentido buscar orientação sobre ética no comportamento deles. É irônico que esse argumento seja apresentado pelos que pretendem concluir que é correto assassinar e causar sofrimento nos animais não humanos. Primeiramente, diz-se que eles são inferiores porque não são tão capazes de deliberação racional. Depois, diz-se que a justificativa para matá-los e torturá-los é porque eles mesmos fazem isso com membros de outras espécies, e que devemos nos inspirar no comportamento deles porque eles são modelo de inspiração ética.
(5) Se “natural” é definido como aquilo que está de acordo com uma “finalidade” biológica, é misterioso também como isso poderia ter alguma conexão com algo ter justificativa para ser feito. Para começar, as melhores teorias de que dispomos sobre os processos naturais mostram que são processos não almejados, inconscientes, e, portanto, sem uma finalidade. Mas, supondo que estas teorias estivessem erradas e houvesse uma finalidade nos processos naturais. Não segue daí que as práticas que seguem essa finalidade são automaticamente corretas. Isso é assim porque não segue daí que toda finalidade é justa. Hitler tinha como finalidade exterminar todos os judeus. Os escravagistas tinham como finalidade escravizar os membros de outras raças. O estuprador tem como finalidade estuprar. Da mesma maneira, vamos supor que haja uma “finalidade” natural, e que a finalidade do pênis seja reproduzir e a finalidade dos pés seja manter o corpo em pé. Não segue daí que seja injusto utilizar os pés para outra coisa (jogar bola, por exemplo). Não segue daí que seja justo estuprar se o objetivo do estupro for engravidar a vítima, só porque se está a seguir a finalidade natural. Portanto, apontar que uma prática cumpre uma finalidade natural não tem poder algum para justificar essa prática.
Assim sendo, é irrelevante, com vistas a saber se uma prática é justa ou injusta, saber se ela é natural ou não. Imagine que fique provado que estuprar é uma prática natural. Esse fato não teria poder para fazer com que o estupro se tornasse correto, porque não teria poder para fazer o estupro ter boas razões a seu favor (o ato continuaria exatamente o mesmo, quer fosse natural ou artificial, com exatamente as mesmas conseqüências sobre as vítimas e exatamente as mesmas razões para não ser feito). Da mesma maneira, para saber se devemos ou não dar igual consideração aos animais não humanos, não é relevante saber se somos naturalmente onívoros ou naturalmente vegetarianos; se conseguimos ou não cortar carne com nossos dentes; se estamos ou não naturalmente no topo da cadeia alimentar; etc. Uma prática ser justa ou injusta não depende de ela ser natural ou artificial. Assim sendo, para melhor raciocinarmos sobre o que é justo ou injusto, devemos abandonar completamente o apelo ao natural. É um dos maiores empecilhos à tarefa de se conseguir um mundo mais justo.