“Não confunda movimento com progresso. Um cavalo de balanço se mantém balançando quando movimentado, mas não realiza progresso algum.”
Alfred A. Montapert
Recentemente adquiri um exemplar do romance intitulado O Assassino Ético, de David Liss, publicado em 2007 pela Record. Nele, um jovem de 17 anos, Lemuel Altick, oprimido por um desgastante e mal remunerado trabalho de vendedor, testemunha o assassinato de um casal por Melford Kean, o suposto “assassino ético”. O jovem é então levado para o círculo do criminoso, um intelectual pós-marxista com quem cria uma improvável amizade.
No transcorrer da narrativa, descreve-se o estilo de vida de Melford no qual fica clara sua ligação com a temática animal: “O assassino dirigia um sedã Datsun um pouco destruído, cor de carvão, ou cinza, ou qualquer outra. […] O que mais havia nele eram revistas velhas e caixas de suco de laranja vazias acumuladas no banco de trás – livros com títulos estranhos como Libertação Animal e A História da Sexualidade – volume 2” (p. 22 e 23).
Mais tarde Lemuel descobre que Melford é vegetariano estrito e tem ideias bastante diferentes sobre comportamento dietético: “Peço apenas que não coma alimentos que envolvam a morte ou exploração de animais, e tudo ficará bem. E não quero ouvir falar que sou bom de conversa. Se comêssemos apenas animais nocivos que tivessem feitos escolhas éticas ruins, para mim já estaria bom. Eu preferiria comer aqueles dois [humanos] no condomínio de trailers a um hambúrguer” (p. 135).
Ao ouvir a música “Meat is Murder”, dos Smiths, surge a discussão sobre o fato de o consumo de carne configurar um crime: “Por quê? Por que está certo expor criaturas que têm sentimentos, carências e desejos a qualquer tipo de sofrimento que escolhemos simplesmente para podermos ter comida desnecessária? Temos condições de conseguir todos os nutrientes de que precisamos em legumes, frutas, verduras, frutas, grãos e nozes. Nossa sociedade decidiu que os animais não são seres vivos, que não passam de produtos em uma fábrica, merecendo não mais consideração do que componentes de automóveis. Então os Smiths estão certos, Lemuel. Carne é crime” (p. 141).
Os desdobramentos do pensamento do personagem culminam com o chamado para a ação nos seguintes termos: “Eu me preocupo – explicou Melford – porque quando vemos algo errado devemos tentar corrigir. Não basta condenar o mal em silêncio, contentar-se em não participar. Acredito que todos temos a obrigação de nos colocar contra ele” (p. 267). Este chamado para a ação se concretiza com uma visita furtiva a um criadouro de suínos, onde são descritas as aflitivas condições dos animais: “O prédio não tinha janelas, e a única iluminação vinha de quatro ou cinco lâmpadas nuas que pendiam do teto. Estavam entremeadas com ventiladores que giravam em câmara lenta e criavam um efeito estroboscópico distorcido, transformando o lugar em uma horripilante boate de condenados. […] Os porcos, que estavam numa espécie de transe pela dificuldade de respirar, despertaram à minha aproximação […] Nenhum animal, a não ser talvez os insetos sociais, foram feitos para viver em locais tão apertados, mas os criadores de suínos os amontoam porque, quanto mais apertados estiverem, mais porcos é possível criam num único espaço […]. Em um nível puramente filosófico, no entanto, os porcos não conseguem suportar tamanho sofrimento, seus corpos não chegam a absorver o estresse físico, e isso os torna vulneráveis a doenças. Então são bombardeados com remédios, não para que se tornem saudáveis, você entende, mas para permitir que sobrevivam ao confinamento […]” (p. 278-279).
O ocorrido leva ao questionamento se seria ético sacrificar vidas humanas em consideração à vida animal. Enquanto Lemuel responde negativamente à indagação, o ativista Melford retruca: “Tem certeza? Deixe que eu lhe pergunte outra coisa. Digamos que você se depare com uma mulher sendo estuprada. O único modo de salvá-la do estupro é matar o atacante. Matá-lo é a decisão certa a tomar?” (p. 280)
O livro segue e há outros episódios em que resta induvidoso que o personagem central é adepto da denominada ação direta, inclusive com emprego de força e coerção, como meio de manifestação de suas convicções filosóficas acerca da questão animal.
A leitura é interessante e seria mesmo irresponsável pretender, em poucas linhas, abordar seriamente a questão da ação direta, que é, de fato, bastante complexa. A própria conceituação do que vem a ser ação direta comporta divergências e diversas modalidades. Permito-me, no entanto, traçar algumas breves considerações a respeito do tema a partir da leitura de outra obra intitulada Capers in the Churchyard: Animal Advocacy in the Age of Terror, de Lee Hall (Nectar Bat Press: 2006), até como chamamento para reflexões posteriores mais elaboradas.
As críticas de Lee Hall, as quais entendo pertinentes, dirigem-se exclusivamente às ações diretas ditas “violentas”, que fazem uso de força, táticas diretas de constrangimento, ameaça, intimadação ou coerção.
Sessenta anos depois de fundar a “Vegan Society”, Donald Watson afirmou, a respeito da ação direta, o seguinte: “Se eu fosse um animal, provavelmente agradeceria a minha retirada de uma gaiola de vivissecção, mas será que este tipo de ação não será contraproducente num âmbito mais amplo em relação ao movimento de defesa dos direitos dos animais?” Esta talvez seja, de fato, a principal questão a ser examinada.
Os atos de resgate de animais em situações de exploração ou abuso, por exemplo, atingem somente os sintomas da injustiça, não as suas causas. A caridade não indaga sobre o problema do tratamento injusto em si mesmo. O pior é que, a rigor, é cíclica e simbioticamente relacionada com o desequilíbrio que visa diminuir, na medida em que a ação direta torna o agente que agride o meio ambiente e os animais uma vítima para o sistema de opressão que compartilha de seus valores.
No site de uma das maiores organizações que apoiam ações diretas desta ordem, afirma-se que de um militante se espera: “liberar os animais de locais onde são abusados, isto é, laboratórios, fazendas industriais, fazendas de pele etc., e colocá-los em bons lares onde possam permanecer livres do sofrimento”. Por meio desta afirmação, percebe-se que o foco primário de ação desta entidade é evitar o abuso e o sofrimento. Curioso notar que o uso, em si, não é, em princípio, contestado. O problema central é o excesso, o abuso. Paradoxalmente, a afirmação acima fica muito próxima de um discurso de bem-estar. No célebre episódio da ação contra os laboratórios da “Huntingdon Life Sciences – HLS”, nos EUA, onde seis militantes do SHAC (Stop Huntingdon Animal Cruelty) foram presos em 2006 por conspiração contra o “Animal Enterprise Protection Act”, a queixa, ao menos explicitamente, não era a de que os animais estavam sendo usados para pesquisa, mas sim que estavam sendo vítimas de atrocidades e abusos.
Hall faz ainda uma outra observação curiosa: o ativismo autoritário geralmente foca atenção nas piores condições de uso, tornando-se uma sombra, um vigilante componente da cultura de reforço do tratamento dito humanitário dos animais. Exemplo disto é o celebrado Paul Watson. Ele explica que fundou o Sea Sheperd de Malibu/CA em 1977 não para protestar contra a pesca em si, mas para se opor aos pescadores ilegais, à sobrepesca marinha e à pesca de mamíferos que violam as leis internacionais.
Sociologicamente, a relação tricotômica “inimigo-resgatador-vítima” tende a objetivar a figura da vítima e colocá-la numa posição secundária diante do objetivo político a ser implementado, o que é sempre bastante perigoso.
A posição do direitos dos animais, a meu juízo, se casa melhor com a ideia de que a violência deve ser superada a partir de suas raízes e origens. Neste sentido, defensores dos direitos dos animais são pacifistas por conceito. Um movimento que pretenda questionar seriamente a equivocada e artificial barreira que separa humanos de não humanos tem, necessariamente, uma dimensão holística. Sua mensagem não será bem transmitida por meio do uso da força e da coerção.
Como afirma Lee Hall, somos aquilo que defendemos. Não há vitória ao mudar a conduta de determinada pessoa ou grupo de pessoas por meio de ameaças ou violência. Ser radical significa ir à raiz. Os defensores dos direitos dos animais são pessoas que trabalham com as raízes da opressão. Uma teoria efetivamente radical de direito dos animais procura construir um mundo onde a dominação é ausente. Em contraste, não é uma teoria de direitos, mas sim uma teoria utilitária, que baseia o conceito da ação direta com uso da força, que busca legitimar os meios para determinados fins por meio da manipulação coagida da vontade de outrem.
A violência, de modo geral, é a arma dos que não têm bons argumentos e a própria “tática” utilizada é a de provocar sofrimento, algo que parece ser muito paradoxal com o fim primeiro da eliminação da opressão.
Pior que isso: há a construção da ideia de que os ativistas defensores dos direitos dos animais odeiam pessoas, são contrários à humanidade. Deriva justamente deste tipo de imagem uma reação conservadora muito poderosa que afasta o público médio da questão animal, construindo-se uma caricatura de ativista associado ao extremismo e à violência, algo que não é produtivo em um contexto mais amplo na busca da erradicação da exploração dos animais. Exemplo claro disto é o endurecimento sistemático da legislação que pune tais atos, equiparando-os a atos tipicamente terroristas (“ecoterrorismo”).
Este tema mereceria maior aprofundamento, mas creio que a provocação ao sistema pelas organizações animalistas seria mais produtiva, coerente e adequada se não fizesse uso da força física, da violência e da coerção para fazer valer seus argumentos. Esse modo de agir não representa um ganho efetivo para o movimento e para os animais.