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O argumento de que tudo o que importa é a coerência

24 de julho de 2014
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Uso de chave errada sendo aplicado coerentemente
Uso de chave errada sendo aplicado coerentemente

Os seguintes argumentos são muito comuns:

“Eu não defendo os animais. Logo, eu não tenho dever de me tornar vegano”;

“Eu não amo os animais. Logo, eu não tenho dever de me tornar vegano”;

“Eu não defendo a igualdade entre os humanos. Logo, eu não tenho dever de defender a igualdade entre animais”;

“Eu defendo que o certo é ser egoísta. Logo, não tenho dever de respeitar os animais”;

“Eu defendo que os indivíduos não contam (nem mesmo eu próprio). Só o que importa são os ecossistemas; as espécies; a natureza como um todo. Logo, não tenho dever de respeitar cada indivíduo, humano ou não humano”

A redução coerentista do raciocínio moral

Há uma coisa em comum presente em todos esses argumentos: todos assumem que, para que uma prática seja justificada, é suficiente que ela seja coerente com algum princípio, não importando qual. Obviamente que a coerência é uma consideração importante na hora de sabermos qual a decisão correta a ser tomada. Por exemplo, se dois casos são exatamente iguais em tudo o que for relevante para saber como tratá-los, seria injusto não tratá-los do mesmo modo. Isso seria incoerente. Mas, a visão presente nos argumentos acima é diferente: em tais argumentos não se está a dizer apenas que a coerência deve ser uma preocupação importante; se está a dizer, ao invés, que ela é tudo o que importa na hora de saber se uma decisão é justa ou injusta. Para efeito de abreviação, vou referir-me a essa visão como “redução coerentista do raciocínio moral”. “Redução coerentista” porque reduz o raciocínio moral à coerência e nada mais.

Em cada um dos argumentos acima, as reduções coerentistas partem de princípios diferentes e cada um poderia ser discutido separadamente, como faremos em outras postagens. Contudo, há uma razão geral que aponta um problema com toda e qualquer redução coerentista da moralidade: são argumentos que não discutem o principal: se deveria-se acatar ou não esta ou aquela visão, ou se é tudo igualmente válido. Por exemplo, no primeiro argumento, o principal a ser discutido é “há o dever de respeitar os animais ou não?”. Na segunda, “a obrigação de se respeitar alguém depende do que sentimos por esse alguém?”. Na terceira “há o dever de respeitar os humanos ou não?”. Na quarta “deve-se rejeitar o egoísmo ou não?“. E, por último, na quinta “há ou não obrigação de se respeitar os indivíduos?”.

A idéia de que todo critério moral é igualmente arbitrário

Algumas pessoas adotam a redução coerentista do raciocínio moral por acreditarem que, em termos de quais princípios ou critérios adotar, são todos igualmente arbitrários, e que o único critério que é obrigatório de se adotar é o da coerência. Mas, há razões para se rejeitar essa suposição, e isso será apresentado a seguir. Além disso, se houverem melhores razões para se adotar esta ou aquela perspectiva (digamos, se existirem, por exemplo, melhores razões para se reconhecer o dever de respeitar os seres sencientes), esse dever valeria para todos, e não apenas para quem já o aceita. Se não houver o dever de se adotar determinada perspectiva, então ninguém tem esse dever, nem mesmo quem acredita que tal perspectiva é plausível. Assim sendo, não faz sentido cobrar coerência dos outros com relação a um critério que se pensa ser implausível. Geralmente, quem faz isso está apenas a querer acusar o interlocutor de hipócrita, mas não está realmente interessado em saber qual a decisão correta.

Suponha por um momento que seja falsa a idéia de que todo critério moral é igualmente arbitrário, e que existam, então, critérios morais adequados e inadequados objetivamente. Se um critério for inadequado, alguém está a errar mesmo se for coerente com ele. Além disso, se alguém acerta por adotar o critério inadequado, isto aconteceria por mera coincidência (devido à chegar, por acaso, em um determinado caso particular, à mesma conclusão que chegaria se adotasse o critério adequado). Assim sendo, antes de buscarmos ser coerentes com um critério, o crucial é saber se é o critério adequado para a questão que estamos a querer responder.

Alguém poderia objetar, nesse ponto, que todo critério moral é igualmente arbitrário e que, então, não faz sentido falar de critérios adequados e inadequados. Abaixo, ofereço dois exemplos fictícios que sugerem o contrário: que critérios morais são possíveis de serem avaliados objetivamente em termos de relevância, independentemente da coerência, e que só faz sentido ser coerente com um critério relevante.

Dois exemplos fictícios contra a idéia de que tudo o que importa é a coerência

O caso do professor (apenas) coerente:

coluna 2

 

Imagine que um professor tem que avaliar o desempenho dos seus alunos. Para tal, solicitou-lhes que fizessem um trabalho e o apresentassem. Esse professor é um adepto da teoria da redução coerentista do raciocínio moral. Na hora de avaliar os trabalhos, o professor pensou: “já que, para uma decisão ser justa, basta que seja coerente, e já que todo critério é igualmente arbitrário, vou escolher um critério qualquer e avaliar os alunos de acordo com esse critério”. O critério escolhido foi a cor da camiseta que os alunos viriam no dia da apresentação. Para não ser tendencioso, decidiu que sortearia uma nota para cada cor. O resultado do sorteio foi esse: quem viesse de azul ganharia 10, quem viesse de laranja ganharia 9, e assim por diante. Por fim quem viesse de roxo tiraria 0.

No dia seguinte, os alunos apresentaram o trabalho. Só haviam três alunos na turma: A, que fez um trabalho ótimo e merecia um 10; B, que fez um trabalho mediano e merecia um 7, e C, que fez um trabalho para lá de horrível e merecia 0. No dia da apresentação, o aluno A veio de roxo, que correspondia à nota 0; B de verde, que correspondia à nota 7, e C de azul, que correspondia à nota 10. Cada um recebeu então a nota de acordo com a cor da camiseta. Não é essa decisão do professor muito injusta, apesar de ser coerente com o critério adotado? Se for, como tem tudo para ser, então há alguma coisa de muito errada na redução coerentista do raciocínio moral. Importante: o professor está a ser injusto mesmo sendo coerente com o critério que adotou (ele foi coerente: estabeleceu que todos que viessem de roxo, por exemplo, tirariam zero, e foi isso o que fez).

Note que, em um dos casos, o professor acertou na decisão: deu 7 à B, que realmente merecia 7. Mas, note que isso aconteceu por uma coincidência: o critério maluco que adotou prescreveu exatamente, nesse caso, a mesma coisa prescrita pelo critério da qualidade do trabalho. Assim sendo, o fato de alguém estar a fazer uma coisa justa em um caso também não indica que o critério que adota como padrão de justificação seja um bom critério. É possível acertar por coincidência.

O caso do médico (apenas) coerente:

coluna 3

 

Imagine que um médico tem de estabelecer de quem é a prioridade no atendimento em uma emergência. Esse médico é um adepto da teoria da redução coerentista do raciocínio moral. Na hora de avaliar de quem deveria ser a prioridade de atendimento, o médico pensou: “já que, para uma decisão ser justa, basta que seja coerente, e já que todo critério é igualmente arbitrário, vou escolher um critério qualquer e estabelecer a prioridade de acordo com esse critério”. O critério escolhido foi o número de letras no nome. Assim, escolheu arbitrariamente que quanto maior o número de letras no nome, maior a prioridade. Naquela noite, apareceram no pronto socorro Ana, que estava a sofrer uma hemorragia e corria risco de vida; Maria, que havia quebrado um braço e Epamidondas, que havia apenas feito um leve corte no dedo. O médico aplicou então coerentemente o critério que adotou: deu prioridade a Epaminondas, com 11 letras no nome; depois atendeu Maria, que tem 5 letras, e, por último, atendeu Ana, quem tem três letras. Quando foi atender Ana, esta já estava morta. O médico foi então processado. Em sua defesa, alegou: “mas, o que eu fiz de errado? Eu fui coerente com o critério que adotei; e isso é tudo o que se pode exigir de alguém, já que todos os critérios são igualmente arbitrários”.

Critérios baseados em características relevantes e irrelevantes

Obviamente, o argumento dado na desculpa do médico não parece ser uma bom. Ninguém aceitaria essa desculpa se fosse um familiar da vítima. Mas, se isso é assim, então há algo de muito errado com a redução coerentista do raciocínio moral. E, o erro é esse: só faz sentido ser coerente com um bom critério. Antes de sermos coerentes, temos de avaliar com cuidado qual o critério adequado a se adotar. E, os dois exemplos acima mostram que é falso que todos os critérios morais são igualmente arbitrários. Por exemplo, se o que está em jogo é avaliar o quanto alguém aprendeu durante um semestre (como no primeiro exemplo), todo critério adequado tem que fazer referência à quantidade de aprendizado se espera que alguém aprenda (e não a qualquer outra coisa, como a cor da camiseta). Se o que está em jogo é determinar a prioridade em receber ajuda (como no caso do segundo exemplo), qualquer critério adequado tem que fazer referência às razões pelas quais alguém necessitaria de prioridade (por exemplo, estar em uma situação pior do que os outros; estar mais vulnerável que os outros; ter maiores chances de salvar os outros se for atendido primeiro, etc.), e não, a qualquer outra coisa, como o número de letras no nome. Isso mostra que existem critérios que baseiam-se em características relevantes e critérios que baseiam-se em características irrelevantes.

Note novamente que, por coincidência, o médico acertou em um dos casos: ele deixou Maria em segundo lugar a ser atendida, e, de acordo com o critério adequado de prioridade (o quão urgente era a necessidade de socorro das vítimas), Maria deveria mesmo ficar em segundo lugar. É isso o que acontece quando adotamos um critério baseado em uma característica irrelevante: se, por acaso, acertamos em algum caso, isso será por mera coincidência.

O que devemos aprender com os dois exemplos acima?

Uma implicação muito importante dos dois exemplos acima, é que existem outros critérios que, à semelhança do critério do número de letras no nome ou da cor da camiseta, são igualmente irrelevantes moralmente, como a raça de alguém, o seu gênero e a sua espécie. Essas características são irrelevantes quando o assunto é saber a quem devemos respeitar. Assim sendo, não é apenas quem defende o respeito pelos seres sencientes que tem o dever de respeitá-los; qualquer um tem. Para entender por que esses critérios são também arbitrários para saber quem devemos respeitar, assim como são o número de letras no nome e a cor da camiseta, clique aqui.

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