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GANÂNCIA HUMANA

Rodovia planejada ligando Brasil e Peru ameaça um dos lugares de maior biodiversidade da Terra

10 de novembro de 2021
Fabiano Maisonnave (Mongabay) | Traduzido por Pedro Guolo Ferraz
18 min. de leitura
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O Parque Nacional da Serra do Divisor, na fronteira do Brasil com o Peru, abriga vários animais nativos e mais de mil espécies de plantas, mas enfrenta uma ameaça dupla: uma rodovia planejada e uma tentativa de rebaixar seu status de proteção.

O rebaixamento de parque nacional para “área de proteção ambiental” transformaria esta região de transição andino-amazônica em uma área de desmatamento, pecuária e mineração – atividades atualmente proibidas no parque.

O projeto da rodovia, que visa dar ao Acre outra rota terrestre para o Pacífico via Peru, foi abraçado
pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que já deu os primeiros passos para sua construção.

Líderes indígenas e de comunidades ribeirinhas afirmam não ter sido consultados sobre a rodovia, conforme exigido por lei, e não foram informados sobre a proposta de rebaixamento do parque, que alertam que terá impactos socioambientais negativos.

Foto: Divulgação

O pássaro Choca-do-Acre é conhecida apenas de um lugar na Terra: nas terras altas do Parque Nacional da Serra do Divisor, no estado do Acre. O habitat deste pássaro de plumagem escura de aparência ranzinza, conhecido cientificamente como Thamnophilus divisorius, é limitado a bosques arbustivos, um dos 10 tipos de floresta nesta área protegida na fronteira do Brasil com o Peru.

O parque abriga inúmeros animais endêmicos e pelo menos 1.163 espécies de plantas, tornando-o uma das regiões de maior biodiversidade do mundo. É também a única área abrangente protegida no Brasil na zona de transição entre os Andes e a Amazônia. Apesar disso, dois projetos foram propostos: construir uma rodovia para o Peru, dividindo o parque, e permitir a privatização do território do parque, abrindo caminho para o desmatamento, a pecuária e a mineração.

As propostas são promovidas por dois políticos acreanos aliados do presidente Jair Bolsonaro. O governo Bolsonaro já abraçou o traçado rodoviário, dando os primeiros passos para a construção do trecho brasileiro da rodovia. Mas ainda não se manifestou sobre um projeto de lei em tramitação no Congresso que encerraria o Parque Nacional da Serra do Divisor.

A rodovia BR-364 começa na cidade de Limeira, no estado de São Paulo, e percorre mais de 4.300 quilômetros a noroeste até a cidade de Mâncio Lima, no Acre. Sucessivos governos brasileiros têm tentado, desde a década de 1970, estendê-la ao Peru, dando ao Brasil uma rota terrestre para o Pacífico; o projeto de extensão foi inclusive mencionado no decreto que instituiu o Parque Nacional da Serra do Divisor em 1989, sob a presidência de José Sarney. Mas quando as autoridades finalmente inauguraram a Rodovia Interoceânica, em 2010, a ligação com o Peru partia de Rio Branco, capital do estado do Acre, 670km de distância da BR-364 em Mâncio Lima.

Com a posse do Bolsonaro, em janeiro de 2019, a ideia de administrar o prolongamento de Mâncio Lima renasceu. Em 2020, três de seus ministros estiveram no Acre para discutir o assunto. Em junho, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, visitou a área de início das obras. (Salles foi deposto um ano depois, após ser citado em duas investigações por exportações ilegais de madeira amazônica.) Em setembro de 2020, Ernesto Araújo, o ministro das Relações Exteriores, e Rogério Marinho, o ministro do desenvolvimento regional, visitaram Cruzeiro do Sul, a 40 minutos de carro de Mâncio Lima, sendo a maior cidade na região do Vale do Juruá, onde a estrada cruzaria. Eles se reuniram com autoridades locais e peruanas.

Também em setembro, Bolsonaro divulgou o projeto em uma transmissão ao vivo no Facebook, confirmando que planejava abrir uma nova rota do Brasil para o Pacífico, ecoando o discurso do ex-presidente Lula da Silva na década de 2000, que supervisionou a conclusão da primeira Rodovia Interoceânica junto a Alejandro Toledo, no Peru. Toledo é agora foragido da justiça por suposta corrupção na adjudicação de contratos de obras públicas, inclusive para o trecho peruano da rodovia.

O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) publicou em maio deste ano a licitação do projeto, orçado em cerca de 500 milhões de reais, segundo estimativas oficiais. A área começou a analisar as licitações em junho. Diz que ainda não há um mapeamento detalhado da rodovia federal, mas que o trecho brasileiro terá cerca de 120 km, dos quais 21 km – ou 17% – vão cortar o Parque Nacional da Serra do Divisor.

Opiniões divididas

Líderes de comunidades indígenas e ribeirinhas afirmam não ter sido consultados sobre o projeto da rodovia, conforme exigido por lei, e expressaram preocupação com os impactos socioambientais negativos”. Até hoje, você foi a primeira pessoa a me perguntar sobre a rodovia”, disse à Folha o cacique indígena Joel Puyanawa em conversa no centro cultural de sua aldeia.

A Terra Indígena Poyanawa fica a 10 km de estrada de terra do centro urbano de Mâncio Lima. Possui cerca de 680 habitantes e fica na área de influência direta da rodovia. Salles esteve lá em 27 de junho de 2020, mas Joel Puyanawa não se encontrou com ele. O ministro do Meio Ambiente defendeu o projeto da estrada ao se reunir com lideranças indígenas, dizendo que “é hora de integração”.

“Todo o entorno de nossas terras já está comprometido”, disse Joel Puyanawa, eleito em 2020 para a Câmara Municipal de Mâncio Lima”. Já conhecemos os estragos causados pelas invasões. Os brancos vivem da caça em nossas terras e as instituições ambientais não têm política para evitá-la. Imagine uma rodovia. Quantos milhões de pessoas irão viajar por ela? O agronegócio aumentará? Sim, mas nossa sobrevivência não está no agronegócio”.

Ele disse também temer que a estrada passe por uma zona sagrada, localizada fora da Terra Indígena demarcada. Foi nesta região, por volta de 1910, que o povo Puyanawa foi capturado como escravo pelo coronel militar e barão da borracha Mâncio Lima para trabalhar em sua plantação. Apesar disso, Lima é hoje retratada como um herói na história oficial do Brasil, até mesmo tendo uma cidade com o seu nome.

“Esta estrada ameaça 100% de nossas terras, destrói nosso local sagrado”, disse Joel Puyanawa”. O estrago feito pelo coronel foi suficiente. Se a estrada for construída, ela exterminará a história de nosso povo”.

Mesmo assim, autoridades locais e empresários apostam na rodovia para acabar com o isolamento geográfico dessa região mais ocidental do país. O prefeito reeleito de Mâncio Lima, Isaac Lima (não parente do coronel), é partidário convicto da extensão planejada da rodovia, a ponto de desobstruir cerca de 40 quilômetros de trilha no provável percurso.

Lima também é pecuarista e, segundo ele, a ligação com a cidade peruana de Pucallpa, a 740 km de Mâncio Lima, traria benefícios para esta cidade de 19 mil habitantes, que vivem principalmente da agricultura e da pecuária”. A rodovia nos ligaria com o mundo inteiro, traria desenvolvimento e crescimento para a nossa região, e Mâncio Lima seria a porta de entrada”, disse o prefeito Lima.

Em 6 de maio, o governo Bolsonaro renovou sua promessa de levar a BR-364 até a fronteira com o Peru. Foi nesse dia que Bolsonaro, com seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e alguns apoiadores, inaugurou uma ponte sobre o Rio Madeira. A ponte fica na rodovia, perto da divisa entre os estados do Acre e Rondônia, a 931 km de Cruzeiro do Sul. Em seu discurso na inauguração, Freitas citou a ampliação da estrada para Pucallpa como uma das obras rodoviárias do governo.

O maior responsável pela retomada do plano de extensão da rodovia é Márcio Bittar, senador federal pelo Acre e autodeclarado aliado de Bolsonaro. Ele ocupa posição estratégica como relator do orçamento nacional de 2021, o que lhe confere competência para direcionar recursos para a rodovia.

Mas o dinheiro para o projeto ainda não está aí. Bittar incluiu no orçamento deste ano um adendo de 40 milhões de reais para “estudos e projetos” para expandir a rodovia, mas Bolsonaro vetou essa despesa como parte de cortes mais amplos para equilibrar o orçamento federal em meio à pandemia de Covid-19.

Questionado pela Folha sobre o corte durante sua posse, Bittar disse que haverá “o dinheiro necessário” de R$18,5 bilhões para construir a estrada, sem dar mais detalhes.

Outra deputada federal, Mara Rocha, patrocinou um projeto de lei em novembro de 2019 que transformaria o Parque Nacional da Serra do Divisor em uma área de proteção ambiental (APA). Paradoxalmente, tal mudança privaria a área de suas proteções existentes, abrindo caminho para a privatização de terras, desmatamento, exploração madeireira, pecuária, mineração e extração de gás de xisto.

No entanto, o governador do Acre, Gladson Cameli, disse ser contra o rebaixamento do parque nacional para APA e também não se mostrou interessado no projeto da rodovia. Ele não esteve presente em nenhuma das visitas ministeriais para discutir a estrada. Em entrevista por telefone, ele disse que o projeto é de “médio a longo prazo” e que o estado tem outras prioridades, como aumentar o tráfego comercial pela rodovia Interoceânica já existente.

Cameli disse que sua principal preocupação com a rodovia é o possível aumento do contrabando de cocaína peruana em Cruzeiro do Sul, maior município vizinho a Mâncio Lima e principal via de entrada no Acre. “As gangues estão dominando. As fronteiras precisam de uma maior presença do Estado de Direito”, disse ele.

Diante do planejamento do projeto da rodovia pelo governo federal e legisladores, o Ministério Público Federal iniciou uma investigação sobre irregularidades na administração do projeto.

O procurador-geral do Estado do Acre, Lucas Costa Almeida Dias, disse que o objetivo é garantir que “as comunidades indígenas sejam consultadas de forma livre, prévia e informada”, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário .

Dias disse que o traçado da rodovia deve considerar a possível presença de comunidades indígenas isoladas e que o licenciamento deve ser feito pelo órgão regulador ambiental federal, IBAMA, com a participação da Funai, e não do órgão ambiental estadual, que é mais suscetível a pressões políticas.

Opondo-se ao fim do parque

A Folha visitou a região norte do Parque Nacional da Serra do Divisor no final de outubro e início de novembro de 2020, em uma viagem de barco de nove horas no rio Moa, de Mâncio Lima até a comunidade Pé da Serra, a cidade mais ocidental do Brasil.

Com três pousadas mantidas por moradores locais, Pé da Serra é uma base para turistas em busca de cachoeiras, vistas panorâmicas e trilhas na selva. Um dos locais mais bonitos e impressionantes é o desfiladeiro do Rio Moa. É um passeio de barco de 40 minutos em meio a montanhas verdes, um cenário associado à Amazônia peruana, mas com vista para os Andes.

Pé da Serra fica dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor e é um dos vários assentamentos dentro do parque que abrigam cerca de 350 famílias. Legalmente eles não deveriam estar morando ali, mas a maioria já estava estabelecido na área quando o parque foi criado. Passadas mais de três décadas, o governo federal ainda não concluiu o reassentamento. Em Pé da Serra vivem do turismo, da agricultura não mecanizada, da caça e da pesca.

Sua eletricidade vem de geradores movidos a diesel e painéis solares. As casas, distribuídas ao longo das margens do rio, encontram-se junto à serra, que ao amanhecer fica envolta em névoa. Eles se locomovem em canoas com pequenos motores, pilotados por adultos e crianças. Sem conexão à Internet, um único telefone público é toda sua comunicação com o mundo exterior.

Nascida e criada às margens do rio Moa, a camponesa Eva Maria Lima da Silva, de 41 anos, disse que se opõe tanto à degradação do parque nacional quanto à construção do prolongamento da rodovia. Também cozinheira do pioneiro restaurante Pousada do Miro, ela disse que a existência do parque é o que impediu a expansão da pecuária por aqui, e que o turismo ainda é a melhor alternativa econômica.

“Se a rodovia for construída, nosso parque será afetado. Seria bom pela velocidade, mas, viajando pelo rio, nossa estrada, quantas belezas eu não vejo? Quantas selvas são preservadas? ” ela disse.

Outro morador de longa data, o agricultor e artesão João Silva, de 51 anos, disse que a estrada seria benéfica para diminuir o isolamento da comunidade: “Quando a gente precisar ir para a rua, a gente pegaria a estrada, seria mais rápido”.

Mas ele discordou da proposta de rebaixar o parque – um projeto que os moradores desconheciam até que o levantamos com eles. “De certo modo, achei bom, porque as pessoas poderiam encontrar um emprego. Mas seria melhor deixá-lo inexplorado. A gente fica quieto, ninguém vai nos incomodar. Se essas pessoas entrarem, vão tirar muitas pessoas daqui. Os agricultores vão entrar, comprar [terras] e muitos [moradores] vão ter que ir embora”, disse Silva.

Vizinhos do parque e habitantes históricos do Rio Moa e da Serra do Divisor, os índios Nukini rejeitam os planos de expansão da rodovia e rebaixamento do parque, segundo o cacique Paulo Nukini, de 39 anos. Ele disse não ter sido consultado sobre o projeto, e seu povo já exigiu que parte do parque fosse anexada ao território indígena, que foi demarcado em 1991.

“Somos contra porque sabemos que vai causar um impacto forte, muito desmatamento. Pode aumentar o acesso ao contrabando [tráfico de cocaína]. E deixará nossa serra com alto risco de contaminação. Para nós, Nukinis, a serra é um lugar sagrado”, disse Paulo Nukini em frente à sua aldeia na beira do rio. “O Brasil viveu até hoje sem precisar daquela passagem por lá”.

Paraíso do pesquisador

A rica biodiversidade e grande número de espécies endêmicas na Serra do Divisor se deve principalmente à altitude variada – entre 200 e 640 metros. É também o lar de três tipos de rios que existem na Amazônia: água branca (lamacenta), água preta e água clara (transparente). E é a única zona protegida integral do Brasil que contém uma parcela dos Andes, incluindo flora e fauna nativas.

“Desde 1901, já foram feitas cerca de 3,5 mil coletas botânicas na Serra do Divisor, com 1.163 espécies registradas”, diz o biólogo Marcos Silveira, da Universidade Federal do Acre (Ufac), que estuda a área há 24 anos. “O número de espécies de plantas vasculares [com vasos condutores de seiva] representa 8,3% da diversidade conhecida na Amazônia”.

Este catálogo biológico continua crescendo. Silveira está trabalhando com outros pesquisadores em um novo projeto que mostrará que a lista de espécies de plantas registradas no parque aumentou 63% desde 1997, quando 720 delas foram identificadas. Em média, três espécies são encontradas na Serra do Divisor a cada dois meses: espécies novas no parque, novas no Acre ou mesmo novas para a ciência.

É uma história parecida com a fauna do parque. “Quando fazemos inventários, sempre temos uma grande oportunidade de coletar novas espécies. É impressionante ”, disse o Élder Morato, outro biólogo da Ufac.

Duas espécies de abelhas descobertas na Serra do Divisor foram nomeadas em sua homenagem: Euglossa moratoi, uma das cerca de 30 espécies de abelhas das orquídeas encontradas no parque, e Dolichotrigona moratoi, uma das cerca de 60 abelhas nativas sem ferrão.

Outra abelha sem ferrão descoberta no parque é Celetrigona euclydiana, batizada em homenagem ao escritor brasileiro Euclides da Cunha, que, no início do século 20, esteve no Acre para ajudar a estabelecer a fronteira do Brasil com o Peru.

“Para nós, biólogos, a Serra do Divisor é emblemática. Não é exagero dizer que todo mundo sonha em visitá-lo um dia”, comentam os pesquisadores Leandro Moraes (Universidade de São Paulo), Tomaz Melo (Universidade Federal do Amazonas) e Raíssa Rainha. Os três são filiados ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, com sede em Manaus, no estado do Amazonas.

Em novembro de 2019, os três biólogos participaram de uma expedição de pesquisa para um censo de vertebrados para comemorar o 30º aniversário do parque. Eles encontraram cerca de 80 espécies de anfíbios e 40 espécies de lagartos e cobras.

Além disso, eles identificaram 326 espécies de pássaros, das quais pelo menos cinco eram novos registros para o parque, que agora tem mais de 500 espécies de pássaros catalogadas. Um deles se tornou o mascote da região: a choca-do-acre, não encontrada em nenhum outro lugar do planeta.

“Essa grande diversidade só é documentada em outras regiões da Amazônia depois de décadas de estudos no mesmo lugar. Na Serra do Divisor, registramos em menos de 15 dias de amostragem. Muitas dessas espécies estão bastante restritas a essa região e não são encontradas na direção leste do Acre”, escreveram os pesquisadores.

Tal diversidade levou o Ministério do Meio Ambiente a solicitar à UNESCO em 2017 o reconhecimento do Parque Nacional da Serra do Divisor como Patrimônio Natural da Humanidade. Essa distinção só foi concedida a outras duas regiões amazônicas: o Parque Nacional do Manú, no Peru, e a Amazônia Central, conjunto de quatro unidades de conservação no estado do Amazonas: Jaú, Anavilhanas, Mamirauá e Amanã.

A proposta, no entanto, acabou sendo retirada dias depois por pressão do Conselho de Defesa Nacional do Brasil, órgão dirigido por militares, sob o argumento de que tal reconhecimento representava uma ameaça à segurança nacional.

Pedreira no parque

Em seu projeto de lei visando rebaixar a Serra do Divisor a APA, a deputada federal Mara Rocha usou apenas 213 palavras para justificar o fim do parque nacional. Ela não citou nenhum estudo ambiental ou econômico que justifique o rebaixamento.

Em vez disso, ela disse que o parque de 846.300 hectares, o nono maior do Brasil, “atende aos interesses e necessidades do povo do Acre” porque é a “única região do estado que possui rochas que podem ser extraídas e usadas para promover o desenvolvimento econômico do estado”.

Em vídeo divulgado em janeiro de 2020, ela disse que o objetivo é permitir a habitação humana dentro do parque, e que o “projeto é de autoria do senador Márcio Bittar”.

Em uma entrevista por telefone, no entanto, Bittar se distanciou da iniciativa de sua aliada. Ele disse que não é o “idiota” a ponto de apresentar uma legislação para se livrar do parque, mas ainda defendeu o conteúdo do projeto. “A Alemanha, que financia ONGs ligadas à mídia nacional, fez uma Itaipu e meia [uma referência à maior hidrelétrica do Brasil] em termelétricas, cavando buraco no chão para o carvão. Agora nós, no pobre Acre, miserável, na miserável Amazônia, não podemos explorar nossos minérios”, disse ele.

“Se dentro da reserva houver um depósito de pedra de menos de um quilômetro quadrado, você não pode retirar, porque a lei diz que não pode retirar. Se houver óleo lá, você pode retirá-lo? Você não pode. E vai continuar assim, porque eu não sou um idiota e sei que se eu apresentar tal projeto, ele não será aprovado”, acrescentou.

A Folha procurou Rocha para comentar, mas ela não respondeu ao pedido de entrevista.

Primeira rodovia binacional

O Acre tem uma ligação rodoviária com o Pacífico via Peru desde 2010. Em Rio Branco, a rodovia BR-364 encontra a BR-317, que percorre 340 km até a cidade de Assis Brasil. No ponto de encontro das fronteiras brasileira, peruana e boliviana, encontra-se o trecho peruano da Rodovia Interoceânica, que posteriormente se ramifica, dando acesso a três portos marítimos do Pacífico. Mas essa ligação não cumpriu a promessa de transformar o Acre em polo de exportação ou corredor para a Ásia. No Peru, a rodovia causou uma explosão de desmatamento e extração ilegal de madeira, e está no centro de um escândalo de corrupção que abala a política do país.

No ano da inauguração da rodovia, as exportações representavam 0,4% do PIB do Acre, segundo dados do Ministério da Economia e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Em 2018, o último ano para o qual existem dados disponíveis, eles representavam apenas 0,7%.

Os demais estados que compõem a região Norte do Brasil viram suas próprias exportações crescerem muito mais rapidamente no mesmo período. Em 201, as exportações do bloco de sete estados, incluindo o Acre, representaram 14% do PIB; em 2018, era de 17,4%.

“A rodovia não mudou a realidade econômica do Acre, exceto por dirigir até Lima, Cuzco”, disse George Pinheiro, empresário acreano que chefia a Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil.

“A expectativa era que a maioria das transportadoras fizesse uma rota mais barata e fosse para a China, para o Japão. Nada disso aconteceu ”, acrescentou.

Questionado sobre o baixo impacto econômico da rodovia uma década depois de sua inauguração, o senador Bittar disse que a estrada “não é viável” por causa de suas muitas curvas e sua alta altitude através dos Andes.

“A rodovia que passa por Assis Brasil tem um problema sério. Ela cruza a alta cordilheira, tendo mais de 4.900 metros de altura. Lá não passa caminhão nenhum, tem tantas curvas que não é viável”, disse. “A saída mais importante é pelo [rio] Juruá, porque lá a cordilheira tem uma altitude de 2.000 metros”.

Bolsonaro fez a mesma observação em setembro, mas omite o fato de que o trecho peruano também tem trechos de alta altitude: na rota entre a cidade fronteiriça de Pucallpa e o porto de Callao, em Lima, a estrada passa pelo Cerro de Pasco, um das cidades mais altas do mundo, a uma altitude de mais de 4.300 m.

Bittar disse que nenhum estudo oficial foi concluído sobre o impacto econômico da rodovia, mas propôs a criação de um comitê binacional para “reunir toda a documentação de ambos os lados: o que eles têm que nos interessa e o que temos que os interessa”.

O empresário Pinheiro disse que a nova rodovia que liga Cruzeiro do Sul a Pucallpa, uma cidade com cerca de 380 mil habitantes, é uma necessidade particularmente local. “Em termos de distâncias amazônicas, é muito pequeno [210 km]. E seria uma conexão com uma cidade peruana com um grande movimento comercial e industrial ”, disse.

Ele acrescentou que há prestígio político associado à retomada do projeto. “Há novos atores que querem construir a rodovia”, disse Pinheiro. “Todo mundo quer ter o selo: ‘Fui eu quem construí a estrada’ ”.

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