Não raramente, encontramos pessoas, principalmente na internet, se esforçando para fazer com que outras pessoas associem a defesa dos direitos animais com a espúria ideia de que isso significa lutar por privilégios para animais não humanos em detrimento dos humanos. Há inclusive pessoas que dedicam tempo a alvissarar esse tipo de equívoco, não sei se por desinformação, preguiça ou má-fé. Se importar realmente com os animais não humanos, de fato, requer um tipo de consciência dissemelhante, de empatia não especista, de olhar para o outro e querer ajudá-lo mesmo sabendo que ele não pode te beneficiar. Afinal, trata-se de lutar por quem não tem voz.
Embora a nossa sociedade esteja imersa em desigualdades, acredito que aqueles que menos têm voz são os animais não humanos, já que não partilham do mesmo código comunicativo que nós, logo não podem reclamar; e suas queixas podem ser dissimuladas. Sendo assim, estão em grande desvantagem desde que deliberamos que eles existem para o nosso uso e abuso. E as piores consequências surgiram após a Revolução Industrial quando foram não apenas privados do reconhecimento enquanto seres viventes com necessidades específicas, como reduzidos a coisas e objetos.
Hoje, mesmo considerados bens móveis em determinados contextos, continuam sendo explorados e mortos ao bilhões a cada ano, isso sem citar a estimativa de mais de um trilhão de animais marinhos mortos nesse período. Normalmente, o estado de miséria não humana passa despercebido porque a dissimulação é ainda mais ingente do que aquela que impomos aos seres humanos que infelizmente também estão imersos em miséria. Exemplo disso?
Muitas pessoas reconhecem facilmente o sofrimento humano em qualquer situação, mesmo que isso não desperte nelas um pressuroso anseio em ajudar. No caso dos animais não humanos, é comum não apenas a ausência ou alheamento da empatia como também o endosso da arraigada cadeia de negação. A maioria se recusa a racionalizar o sofrimento animal não humano mesmo que por um instante; é como se não existisse, fosse apenas fantasia.
Isso explica também porque a luta pelos direitos animais é urgente; porque os animais não são reconhecidos nem mesmo como sujeitos de uma vida, ao contrário dos seres humanos, por pior que seja a situação. Até porque, pelo menos no ocidente, qualquer atentado à vida humana, independente do que venha a acontecer, se alguém há de ser sentenciado ou não por suas ações, será considerado um crime ou há de gerar algum tipo de comoção com a divulgação do episódio.
Vivemos uma realidade em que as leis de maus tratos aos animais são tão subjetivas e defasadas que uma pessoa pode comprar um boi, levar para casa, torturá-lo e matá-lo. Se depois ele servir de alimento para um grupo de pessoas, pode haver até mesmo uma total desconsideração em relação à ação anterior; e o algoz talvez seja visto como um benfeitor.
Outro equívoco que aponto no discurso que tenta superficializar a luta pelos direitos animais é que a maioria daqueles que conheço que se tornaram vegetarianos ou veganos são pessoas que não aceitam as injustiças e não as veem como parte de uma realidade justificável, em que os “fins justificam os meios porque são inerentes à vida” e cabe a nós ignorá-las.
Sendo assim, a não aceitação da exploração animal tem relação com uma consciência imanente de justiça social. “Só se preocupa com os animais enquanto muitas crianças passam fome.” Afirmações como essa são temerárias e recaem no erro comum da propalação de rasas ou obtusas prenoções e observações.
Usar isso de forma genérica para deslegitimar a luta pelos direitos animais é essencialmente desacertado e tem um viés capcioso, principalmente se parte de alguém que não realiza trabalhos sociais com crianças famintas. Ademais, lutar por um algo não desqualifica outro algo. Sou da opinião de que devemos reconhecer o valor de cada ação em benefício de alguém.
Uma pessoa pode optar por lutar apenas pelos direitos animais por diversos fatores, mas isso não é regra. Para mais, se ela manifesta antagonismo em relação a esse tipo de desigualdade, ela já está cumprindo um papel inclusive social que sem dúvida nenhuma é muito mais relevante do que o daquele que critica sem se engajar em nenhum tipo de causa que beneficie vidas.
Quando se fala então em políticas públicas voltadas aos direitos animais, pré-conceitos e preconceitos surgem a níveis alarmantes, basicamente como consequência de maus hábitos, desinformação e obscurantismo. Vejo isso também como um merencório sintoma do apedeutismo, já que causas a favor da vida não concorrem entre si, logo é especioso afirmar o contrário.
Se alguém diz que temos assuntos mais urgentes a tratar do que a questão animalista, não reconheço coerência em tal afirmação. Afinal, tudo que envolve as ações humanas e suas consequências não apenas para nós, mas para as outras espécies que exploramos e violentamos exaustivamente, é de grande premência à vida na Terra.
Não vejo sentido em rivalidades desnecessárias que visam desmerecer uma causa simplesmente porque do alto de nossas predileções individuais não nos interessa porque não são sobre nós, mas sim sobre outras espécies. Todo tipo de exploração é tema de grande urgência se envolve vidas imersas em um universo figadal, medonho e displicente de desconsideração. E nessas horas, o mais importante talvez seja um outro olhar.