Em 14 de dezembro de 2011 completam-se 100 anos da chegada da primeira expedição humana ao Polo Sul, comandada pelo norueguês Roald Amundsen. Um feito celebrado como exemplo do empreendedorismo e pioneirismo que impulsionam o progresso. Os custos de tais empreitadas são, geralmente, minimizados e justificados, quando não se tornam, de fato, tabus. Sobretudo quando o custo é imposto àqueles alheios às razões e motivações dos humanos que as levam adiante. Quando suas vítimas são outras formas de vida animal, então, elas raramente chegam sequer a constituir objeto de questionamentos éticos.
Na virada do século XIX para o século XX alcançar os Polos representava algo como a chegada à Lua, na década de 1960. A travessia do Polo Norte tinha uma importância econômica: poderia ser um caminho mais curto para alcançar o Oceano Pacífico, saindo da Europa. Alcançar o Polo Sul, por outro lado, tinha um peso sobretudo simbólico. Superar as grandes distâncias, a escassez de recursos, as adversidades climáticas, fazia das jornadas ao Polo Sul o maior desafio de sua época. Não se tratava de um triunfo pessoal, ou de toda a humanidade, mas também, e talvez até mais importante, nacional. Como tal, mobilizou as principais potências rivais da época, Reino Unido, França e Alemanha.
No entanto, foram duas expedições lideradas por estadunidenses as primeiras a alcançar o Polo Norte. Com o conhecimento do fato, o explorador Roald Amundsen, que buscava o mesmo objetivo, revisou seus planos e organizou, em segredo, uma viagem ao Polo Sul, que partiu de sua terra natal em junho de 1910. O britânico Robert Falcon Scott já organizava uma campanha, que partira da Grã-Bretanha no mesmo mês. Ambos montaram bases na costa da Antártica, mais especificamente na Terra de Ross, estocaram suprimentos e esperaram o fim do inverno no Hemisfério Sul para lançar-se na travessia terrestre definitiva rumo ao Polo Sul.
As jornadas aos Polos eram verdadeiros pesadelos do ponto de vista dos seus expectadores e participantes involuntários: os animais não humanos, de diferentes espécies. O vestuário para proteção contra o frio era composto basicamente por peles de animais. Os cães eram considerados eficientes no transporte dos humanos e também de cargas, puxando trenós. Eles eram, também, suprimentos de carne, que formava a base da alimentação dos viajantes, suplementada, ainda, pela caça, de focas principalmente.
Além destes, a expedição liderada por Scott também fez uso de pôneis. Na época, extensa discussão se deu sobre qual o papel dos pôneis e cães nessas viagens. Scott tinha uma objeção moral ao método puramente instrumental de Amundsen de lidar com os cães. Ele os exauria como bestas de carga e os matava quando já sem forças, ou sempre que se tornassem um ônus em termos de consumo de recursos. Os cães eram também mortos e devorados regularmente como suplemento alimentar, não apenas dos humanos, mas também do restante da matilha. Assim, ele poupava o transporte excessivo de alimentos e descartava os animais quando se tornassem onerosos ou dispensáveis. (Muitos cães também se desgarraram e se perderam na vastidão do continente. Obviamente, não tinham chance de sobreviver em ambiente tão inóspito.)
Scott hesitava em usar os cães de modo idêntico. Mas ele também duvidava da eficiência do seu uso como bestas de carga. Por ambos os motivos, ele levou consigo nove pôneis. Não obstante, ele não se opunha radicalmente aos métodos de Amundsen. E seus pudores morais não se aplicavam tão rigorosamente aos equinos, que também serviriam de alimento sempre que as circunstâncias assim determinassem.
A expedição liderada por Amundsen alcançou o Polo Sul em 14 de dezembro de 1911, e lá plantou uma bandeira da Noruega. Scott e seus companheiros chegaram ao mesmo ponto 34 dias depois. Enquanto a comitiva norueguesa retornou à base, e depois à casa, em segurança, o grupo de Scott morreu na viagem de volta. Muita controvérsia ainda é gerada em torno de Scott, os motivos do fracasso de sua jornada e sua responsabilidade como líder. Duas das razões frequentemente apontadas são o erro estratégico do uso de pôneis e o mau uso de cães. Amundsen, em contraste, se tornou uma espécie de herói da humanidade. No entanto, os custos desse heroísmo raramente são recordados, o que não é surpreendente.
Quanto a Scott, sua posição é exemplar daquilo que hoje denominamos de bem-estarismo: ele aceitava o uso “consciencioso” e advogava a “minimização” do sofrimento. Mas isso não o demovia de seus objetivos. Era também especista, já que os parâmetros não eram iguais para todos os animais envolvidos. Seus admiradores constantemente o citam por sua alegada objeção à “crueldade” contra animais. Seus detratores deploram sua visão “sentimental” e os efeitos trágicos da mesma.
Quando a exploração animal é de fato abordada, em geral isso não se dá na ideia de que ela manche ou invalide as expedições aos Polos, mas sim na medida de sua eficácia. As críticas à abordagem instrumental de Amundsen, por sua vez, concentram-se nos cães. Os animais usados como vestimento ou alimento, as focas caçadas ou os pôneis, de modo geral são ignorados; seu uso, naturalizado. O fato é que, embora os animais não humanos tenham jogado um papel tão decisivo (e fatal), os relatos, estudos e debates acerca da exploração dos Polos raramente os levam em consideração e suscitam objeções de ordem ética que ponham em causa as expedições em si mesmas.
Embora seja, de algum modo, emblemático, este episódio não mais que reafirma a histórica conduta humana, seu espírito “desbravador” e a visão da ética que lhe é própria: e os fins justificam meios, e os demais animais (mas não só eles) são meios para fins humanos. Essa ótica prevalece até hoje não apenas em nome da ciência, mas do progresso de modo geral, da “justiça”, da “liberdade”, e assim por diante.
A violência resultante é de amplo conhecimento. As pessoas se chocam com os seus efeitos mais óbvios, como nas guerras ou nos genocídios, mas enquanto o cerne do problema não for enfrentado – nossa visão instrumental da ética – esses fatos estão fadados a se repetir. Nenhum objetivo é tão nobre e elevado, nenhum resultado tão pertinente, que justifique a escravidão e exploração, dos quais a tortura e morte é mera extensão lógica, seja de seres humanos ou demais animais.
Nota
Uma breve e pouco satisfatória análise dessa questão pode ser consultada em: MURRAY, Carl. The use and abuse of dogs on Scott’s and Amundsen’s South Pole expeditions. Polar Record, 44 (231): 303–310 (2008), United Kingdom. Como deixa claro o título, os cães são o principal foco do autor e medida quase exclusiva para suas considerações morais.