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Salvem os beagles!

24 de outubro de 2013
11 min. de leitura
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“Os testes de medicamentos são feitos em animais e depois são feitos os testes em seres humanos. Quer dizer, ainda nós precisamos dos animais, assim como precisamos dos animais para alimentação, nós precisamos dos animais para pesquisa científica”, afirmou Marcelo Morales, médico – a favor do uso de animais (1);

Como é possível constatar na infeliz declaração acima, totalmente desprovida de suporte científico, o médico coordenador do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), o Dr. Marcelo Morales, mostra seu completo desconhecimento sobre o estado da arte na área de Nutrição Humana (2). Isso é inaceitável, em se tratando de um profissional da área de saúde, sobretudo devido ao cargo que ele ocupa. Esse seu “desconhecimento”, todavia, não é algo isolado. Já ouvi esse mesmo tipo de afirmação de colegas viviseccionistas, o que me faz ter certeza de que, no que diz respeito aos experimentos com animais, a mesma analogia pode ser feita: impera a ignorância.

Diversos filósofos, médicos e pesquisadores renomados de áreas variadas (3), afirmam que os testes com animais para fins humanos são procedimentos antiéticos e pseudocientíficos. Esta semana participarei de mais um evento (4) no qual vou apresentar um trabalho intitulado “A abordagem interdisciplinar na argumentação antivivisseccionista”. Nele, foram elencadas diferentes linhas de argumentação, oriundas de campos distintos do conhecimento, como a Teoria da Evolução e Genética; dados provenientes de estudos anatômicos e fisiológicos; Epidemiologia; evidências sobre o caráter senciente dos animais não-humanos advindas do campo da neurociência; argumentos éticos em prol do abolicionismo animal; argumentos de natureza epistemológica acerca do caráter não-científico dos testes com animais, etc. A partir dessa abordagem interdisciplinar emerge um sólido constructo transdisciplinar que torna indefensável, ética e científicamente, a prática vivisseccionista.
Um importante e recente trabalho nesse sentido – que muito me apraz divulgar, sobretudo para debate em comissões de ética no uso de animais (CEUAs) – é o artigo intitulado “Systematic Reviews of Animal Models: Methodology versus Epistemology”, de Ray Greek e Andre Menache (vide bibliografia). Nesse artigo, a tese principal é a de que o chamado “modelo animal” é intrinsecamente ruim, mesmo que aspectos metodológicos subjacentes a tais práticas sejam aprimorados. Isso decorre do fato de que é falso o axioma “animais e humanos têm tanto em comum que é possível extrapolar dados de experimentos em animais para humanos”. Greek & Menache (2013) discordam da ideia de que uma padronização de protocolos que permitisse uma revisão sistemática (SR) dos modelos animais melhoraria esses modelos e teria um impacto positivo na sua capacidade de acerto/previsibilidade. Eles não discutem o valor dessa e de outras ferramentas para melhorar a qualidade das pesquisas. Entretanto, argumentam que, mesmo que a metodologia para os modelos animais fosse padronizada e submetida a revisões sistemáticas (SRs) – e outras ferramentas – os modelos animais continuariam sendo falhos como modalidades preditivas às respostas humanas para drogas e doenças. Isso se deve às questões ligadas à complexidade e à biologia evolutiva: humanos e animais são sistemas complexos com diferentes trajetórias evolutivas. A abordagem sistêmica utilizada pelos autores enfatiza o caráter predominantemente qualitativo e não-linear das interconexões subjacentes aos processos dinâmicos dos sistemas vivos, algo que falta completamente na formação daqueles que trabalham com pesquisas em animais.

Deve-se reconhecer que nenhum método é capaz de prever as reações dos pacientes com 100% de precisão. As reações diferem de acordo com o sexo, a idade, o grupo étnico e mesmo entre membros da mesma família. Somos todos bioquimicamente únicos. Assim, apesar de pertencermos à mesma espécie, a humana, uma pequena proporção de 0,1% de diferença pode produzir variações que se refletem, por exemplo, no metabolismo do colesterol e na manifestação da asma. Tudo isso só reforça a ideia de que usar animais em estudos é ineficaz e antiético, pois nenhuma dessas particularidades pode ser descoberta nos modelos animais. Mais grave ainda é que muitos compostos químicos cujos efeitos nocivos se encontram fartamente documentados – em estudos epidemiológicos, clínicos, etc ¬– podem ser “inocentados” via experimentação animal. Isso acontece porque os testes geram dados contraditórios e inconclusivos (veja GREEK & MENACHE, 2013).

Poder-se-á argumentar que, apesar de tantos erros, tem havido também acertos. Mas é preciso analisar de que forma tais acertos foram conquistados. Diversos antivivissecionistas asseveram que muitas descobertas atribuídas a modelos animais tiveram como base evidências clínicas, dados epidemiológicos e outros, provenientes de seres humanos. Isso, em diversos casos, serviu para mascarar o fato de que o universo de resultados provenientes de experimentos com animais tem um grau de confiabilidade muito baixo. E não é difícil compreender isso. Greek & Menache (2013) comentam que mesmo aqueles animais com alto grau de semelhança genética com os humanos apresentam características muito diferentes. Os chimpanzés, por exemplo, são essencialmente imunes ao HIV, hepatite B e malária, e respondem diferentemente a outros patógenos humanos. Também entre roedores e primatas, espécies próximas exibem padrões metabólicos marcadamente diferentes. Como consequência, cerca de 100 vacinas mostraram ser efetivas contra vírus semelhantes ao HIV em modelos animais. Contudo, nenhuma delas funcionou em seres humanos. É importante notar que, mesmo que uma vacina eficiente seja proveniente de um modelo animal no futuro, o modelo, per se, não seria válido por causa precisamente desse histórico.

Por que insisto nessa linha de argumentação? Concordo integralmente com os que defendem que questões de natureza ética deveriam bastar para repugnar os testes com animais; e que, ainda que os experimentos resultassem em dados úteis e confiáveis, não temos o direito de dispor de suas vidas.

Entretanto, creio firmemente ser fundamental descortinar um horizonte o mais amplo possível em se tratando de lutas que trazem, no seu bojo, preconceitos profundamente arraigados, como é o caso do especismo. Outras linhas de argumentação podem ser cruciais nos contextos em que se tenta desqualificar a questão ética (sem razão, é claro!) como, por exemplo, para rebater afirmações patéticas e chantagens emocionais do tipo: “O que você prefere: Testar em animais ou em criancinhas?”

É muito importante o fato de Richard Ryder (2005), que cunhou o termo especismo, ter ressaltado a capacidade de sofrer – sobretudo a de sentir dor – como a base mais convincente para atribuir direitos ou interesses a outros. O posicionamento de Ryder enaltece o valor da consciência no debate sobre o especismo, algo que se tornou ainda mais importante com a publicação da “Declaração de Cambridge sobre a Consciência”, a qual torna inquestionável a existência do sofrimento nos animais. Philip Low, um dos signatários da mencionada “Declaração”, assinala que o mundo gasta 20 bilhões de dólares por ano matando 100 milhões de vertebrados em pesquisas médicas. A probabilidade de um remédio advindo dos referidos estudos ser testado em humanos (apenas teste, pode nem funcionar) é de 6%. É uma péssima contabilidade, conclui ele. Esses e muitos outros argumentos (de novo, citaria Greek & Menache, 2013) constroem uma tese antivivisseccionista robusta o suficiente para nos ajudar a romper a membrana dessa bolha paradigmática especista dentro da qual estarmos imersos.

Poderíamos estar vivendo o início do fim da exploração metódica e “racional” (sic) dos animais, uma vez que os dados que temos hoje disponíveis – tanto no âmbito da ética, quanto da ciência ¬– lançam luzes de forma contundente sobre um determinado caminho a seguir: o da abolição da vivissecção. No entanto, a legislação vigente permanece anacrônica nesse sentido, protegendo e legitimando uma (pseudo) ciência antiética, baseada num preconceito especista, que permite tratar os animais como coisas.

Mas nem tudo é preconceito ou ignorância científica, quando o assunto é vivissecção. Há inúmeras outras facetas antiéticas ligadas à experimentação animal, tais como os gigantescos interesses econômicos envolvidos na criação e venda de animais, aparelhos de contenção, gaiolas, e os próprios fármacos. O setor farmacêutico é um setor produtivo que, como qualquer outro em nossa sociedade, precisa constantemente colocar novas drogas no mercado a fim de assegurar lucros crescentes. E isso, independentemente de as novas drogas serem mais eficazes ou seguras do que as já existentes no mercado, como nos assevera a Dra. Marcia Angell (2007).

A educação poderia ser um caminho privilegiado rumo ao abolicionismo animal. Mas temos que começar questionando os pressupostos da própria ciência ensinada nas escolas. A questão de ser contra ou a favor dos experimentos com animais ainda se situa muito na esfera das convicções pessoais, ou seja, o assunto não é tratado como algo que mereça uma reflexão acadêmica criteriosa e muito menos com enfoque sistêmico. Além disso, há questões que envolvem o prestígio e a produtividade na Academia. Wolfensohn (2013), por exemplo (5), destaca que se um professor passou toda a sua carreira desenvolvendo técnicas experimentais em cérebros de macacos e um grupo de jovens cientistas diz que não é preciso fazer isso, tal se constitui numa ameaça ao seu trabalho.

Precisamos de uma ciência que não mais veja apenas o valor instrumental da natureza, pois essa é a base moral (não científica!) do antropocentrismo exacerbado, do fundamento pragmático da destruição das condições de vida na Terra. Mas o modo de pensar fragmentado e reducionista (isto é, mecanicista) ainda é dominante no meio acadêmico. E a ênfase na intervenção, em vez de prevenção, acaba por privilegiar a vertente farmacológica baseada em modelos animais. Não se pode afirmar que não seja possível prescindir dos modelos animais, uma vez que não há investimento sério (nem em educação, nem em pesquisa) no que tange a substitutivos, bem como outras fontes de informação.

Muito ainda poderia ser dito (veja, por exemplo, link da nota 6), mas fico por aqui. Vale dizer que, enquanto o Dr. Marcelo Morales declara que não podemos viver sem itens de origem animal na alimentação, o Dr. Neal Barnard, do Comitê de Médicos por uma Medicina Responsável (em inglês, PCRM), desenvolve trabalhos importantíssimos exatamente para mostrar os benefícios da dieta vegetariana estrita na prevenção e reversão de doenças degenerativas (7). Prevenção: eis o cerne do problema. Isso não combina com os interesses da indústria farmacêutica.

Pelo exposto aqui – e, sobretudo, por tudo o que há disponível de conhecimento sobre esse assunto – encerro dizendo, sem temor: Salvem os beagles, os ratos, os camundongos, os coelhos, os primatas, e todos aqueles que sucumbem, em vão, nas mãos dessa prática ultrapassada ética e cientificamente, chamada vivissecção.

Notas:

(1): http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/10/jornal-nacional-ouve-especialistas-sobre-uso-de-animais-em-pesquisas.html

(2): http://www.vrg.org/nutrition/2009_ADA_position_paper.pdf; http://www.crn3.org.br/legislacao/doc_pareceres/dra_denise.pdf

(3): Exemplos são Dr. Neal Barnard, Irwin Bros, Dr. Ray Greek, Niall Shanks, Hugh LaFollette, entre muitos outros.

(4): Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e na Extensão, UFSC.

(5): http://www.bbc.com/future/story/20130609-will-we-ever-end-animal-testing

 

(6): Veja, p.ex. a entrevista: https://www.anda.jor.br/28/05/2011/para-alem-da-vivisseccao-rumo-a-uma-etica-ecologica-e-anti-especista

 

(7): Veja, por ex. http://www.nealbarnard.org/books/diabetes

 

Referências citadas:

ANGELL, Marcia.  A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Tradução W. Barcellos. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007.

GREEK, Ray & MENACHE, Andre. Systematic Reviews of Animal Models: Methodology versus Epistemology. International Journal of  Medical Sciences, 2013, 10(3): 206-221.Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3558708>

RYDER, Richard, 2005. All beings that feel pain deserve human rights – Equality of the species is the logical conclusion of post-Darwin morality. Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/uk/2005/aug/06/animalwelfare>

 

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