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Viva Vicente!

15 de agosto de 2018
3 min. de leitura
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Divulgação

No inicio de agosto, quando o inverno paulista anunciava sua face mais obscura, o cantor do mar, do amor, do vento e das estrelas dava adeus. Vicente França, que conheci aos 20 anos em plena era dos poemas e canções, deixaria para sempre o violão que o acompanhou durante toda a vida. Dizem os médicos que foi um AVC. Não acredito. Para mim foi outra causa, embora coincidentemente com as mesmas iniciais AVC: Aversão à Vida na Civilização. Vicente tinha a alma pura e uma voz delicada. Ele era um músico pacifista que amava a natureza, o sol, as águas e os animais, um espírito libertário que não parava de sonhar, um rapaz sedento de amor, um desterrado no espaço dos desencontros. Por isso não resistiu aos rigores da cidade grande. Seu lugar era outro que não este mundo de fragilidades e imperfeições.
Discípulo do Clube da Esquina e fã da bossa-nova, Vicente França desenvolveu um estilo próprio de cantar e tocar, tornando-se único naquilo que fazia. O timbre vocal suave e anasalado, por vezes quase infantil, os acordes em sétima maior e os solos sincopados na guitarra, tudo isso conferia uma caractérística musical que o tornavam inconfundível. Certa feita, ao substituir de improviso um componente do Sonho de Orfeu no palco da Estação São Bento, perante centenas de pessoas, Vicente cativou de tal maneira a platéia que fez daquele o nosso melhor show. Da tarde mágica do remoto ano de 1981 ficou a lembrança de uma fotografia em preto e branco…
As canções de Vicente bem traduzem o artista. A sensibilidade poética veio da mãe, cujo soneto “Uma Flor Para o Meu Colo” ele desde cedo musicou. Embora quase sempre à margem da mídia perversa, Vicente França seguiu produzindo seu trabalho para um público pequeno mas fiel. Não há como apagar da memória belas composições como “Olhar” e “Beat Acelerado” (gravadas pelo grupo Metrô),”Um Novo Verão” (gravado por Lu Coelho), “Flor do Tempo” ou, então, a nostálgica “O Sol, a Casa e o Quintal”. A obra-prima de Vicente, por nós muito tocada mas que nunca ouvi gravada, foi “Viva Pancho”, cujo título evoca um cãozinho da época da nossa inocência. 30 anos passados, essa letra jamais me abandona:
“Eu procuro um amigo que não tema me abraçar/ que traga o peito aberto e deixe o sol entrar/ Que queira me dizer e queira me escutar/ As portas abertas e um cãozinho a passear / Bolos de chocolate e mordidas nas mãos / Que seja amigo no olhar/ E o sol nas estradas, e o vento da noite… / Nos seus corredores o meu peito a ventar/ descobrir novas caminhadas/ E o sol nas calçadas e o vento na noite…/ Mas é difícil saber de tudo o que se passa / por trás de tudo o que se pensa/ Mas deixe a porta aberta, deixe o sol entrar / Não esqueça do viajante que nunca te esquecerá/ E o sol nas estradas e o vento da noite / sentar nas calçadas, ouvir as estrelas/ viver e mais nada, viver e mais nada, viver e mais nada…”
No youtube a cantora Virginie homenageou-lhe a memória com a sensibilidade de um “Olhar”. Talvez alguém ainda poste a versão de “One Day In Your Life” (grande sucesso com Michael Jackson), que me consta ser uma das últimas gravações do amigo. Até que veio o 4 de agosto com seu frio implacável. Morrer de noite, as janelas abertas, os olhos a fitar a noite infinda… Mas Vicente França não morreu não. Ele vive no mundo imaginário que habita suas canções, pra além da concreto urbano, do caos, da violência, da solidão, da indiferença e do desamor. Vicente França vive agora no mundo de Pancho , um mundo de cães e amigos… Viva Pancho! Viva Vicente!

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