O real motivo que levou à criação de um mundo globalizado é econômico. Decidimos sucumbir a um modelo em que a economia rege o mundo. E o resultado disso, não mais do que óbvio, é sempre a exclusão em nome do acúmulo econômico e a concentração de poder. Este cenário, somado às dezenas de casos semanais noticiados de barbáries cometidas contra os animais, mostra que ainda vivemos numa sociedade predominantemente incompetente para administrar as adversidades, que não sabe respeitar o espaço moral e físico do outro – especialmente se o “outro” for um animal – e que a disposição para a mudança, mais do que urgente e necessária, ainda encontra severas resistências, as piores e mais lamentáveis, sob o aspecto da ignorância ética.
Uma idéia séria sobre como nossa sociedade curvou-se aos mandos e desmandos dos poderes econômicos está no livro A cultura do dinheiro, de Fredric Jameson. Esta obra reúne ensaios sobre a globalização bastante realistas e provocativos do autor, crítico literário por formação. Jameson não dedica neste livro especial atenção aos direitos dos animais ou temas correlatos, mas sua preferência por uma postura intelectual dialética mostra uma grande contribuição filosófica para a compreensão das etapas e processos econômicos que levaram à coisificação animal e à adoção de uma postura elitista dos homens em relação às outras espécies.
Repetidamente percebemos a alienação dos cidadãos em afirmativas descabidas no que se refere ao consumo ou uso de animais em sistemas produtivos industriais que visam exclusivamente ao lucro, como o alimentar. Não raro notam-se comentários totalmente infundados de cidadãos vitimados pela cultura do consumo irresponsável. Por essa razão, e inspirada por Jamenson, classifico tais consumidores em três grupos. A divisão se dá de acordo com a maior ou menor capacidade de seus proferidores de administrar as adversidades, respeitar o espaço moral e físico do outro e grau de predisposição à mudança evidenciada pelo discurso de seus autores.
Consumidores que não sabem administrar as adversidades
Entendo que “consumidor” é uma ótima caracterização terminológica para “pessoas” na sociedade do dinheiro. Praticamente somos todos valorados pelo nosso poder de compra. Por essa razão a primeira categoria de tipificação do consumidor aparece na dificuldade em administrar as adversidades. Pessoas inseridas nesse grupo costumam valer-se do discurso do abuso inato de animais em favor do seu paladar ou outra forma de prazer efêmero. A verbalização comum de tal grupo tem, em geral, este conteúdo: “– Mas, se acabarmos com a pecuária e suinocultura, as vacas, bois e porcos entrarão em extinção!”, ou “– Foram os vegetarianos que comeram toda a floresta de palmito do planeta”. Esse tipo de consumidor, que não reconhece a dor e o sofrimento imposto aos animais para o lucro da indústria, nem o impacto ambiental provocado pela exploração animal, vale-se de um discurso elitista, que evidentemente traz em sua essência uma verdade supostamente absoluta, ou como diz Jameson – um pensamento em torno da relação entre cultura e economia fundado em epifenômenos superestruturais.
Em tempo: sim, na lógica do direito dos animais, vacas, bois e porcos já estariam possivelmente extintos se não os tivéssemos escravizado como objetos de consumo. E da mesma forma teria sido este o fim de muitas raças de cães e gatos que criadores reproduzem apenas para fins lucrativos. E a “floresta de palmito”, além de ter sido devorada nas churrascarias, por onívoros mesmo, teve o mesmo destino ambiental irresponsável que hoje o governo federal planeja para a Amazônia, situação severamente criticada por vegetarianos e veganos.
Vale lembrar que essa categoria de consumidores identifica-se pela dificuldade de lidar com o revés. Há na proposta de libertação animal uma verdade que causa imensa contrariedade e surpresa a quem está acomodado ao sistema do dinheiro, da morte exposta nas gôndolas de supermercados e grelhas de restaurantes. Em primeiro lugar, isto acontece pelo choque imediato do consumidor por sentir-se responsável por maus-tratos raramente cogitados pela indústria e pela mídia. Depois, pela tentativa de justificativa urgente, ou seja, necessidade de projetar de volta a imensa cobrança ética à qual percebe estar sendo exposto. O consumidor desse grupo não admite a responsabilidade pela manutenção da cadeia de violação dos direitos animais e seu principal argumento vem logo ao debate: “– Os homens possuem dentes caninos para comer carne”. O apelo dos integrantes dessa categoria foca uma realidade supostamente inata, como se isso os isentasse de refletir sobre o próprio comportamento de consumo.
Direito animal ao respeito do espaço moral e físico
Veganos são os maiores alvos de comentários de consumidores onívoros, quando o tema dos direitos animais entra em pauta: “– Mas se não testarmos vacinas em animais, vamos testar em quem?”. Ou deste: “– Não consigo associar a carne de um animal morto de forma atroz com a comida que estou preparando”. Implícito neste perfil de consumidores está o conceito de especismo. O consumidor desse grupo tem como importante característica o fato de não cogitar sua responsabilidade num dos aspectos principais da conduta ética: o respeito. Além disso, fica evidente a falta de comprometimento com a aplicação do próprio conhecimento dos procedimentos a que os animais são submetidos para o uso humano. A saber: a maior parte das vacinas testadas em animais não garante que sua aplicabilidade em humanos terá o mesmo efeito. Vacinas, para que funcionem, precisam ser testadas em humanos, o que é feito em grupos de voluntários. No caso da segunda citação, há o temor de que a ação de preparar como alimento o cadáver de um animal morto possa incluir este cidadão como responsável no processo que atinge os direitos ao espaço físico e moral do animal. Fato que, em verdade, acontece.
Predisposição às mudanças
A mídia nos levou a decorar o texto sobre vivermos em tempos de grandes mudanças. A mobilidade, a portabilidade, as mudanças climáticas e tecnológicas são temas percebidos em toda parte diariamente. Mas quem realmente está disposto à mudança deve começar olhando para o próprio lugar que ocupa na sociedade do dinheiro. Entre as frases mais estúpidas que já ouvi – e que colabora para desrespeitar os direitos dos animais – serve como ilustração para o comportamento deste terceiro grupo: o que têm menos predisposição às mudanças.
A frase foi dita em tom bastante contundente por uma senhora de quase 80 anos. O debate se alongava sobre direitos dos animais e vegetarianismo e, possivelmente disposta a livrar-se de uma culpa desconfortável, a senhora tomou a dianteira num debate que muito possivelmente a agredia: “– Alface dá câncer”. Como estamos discutindo uma postura consumista irresponsável, faço uma pausa para explicar que: “– Não, vegetarianos não comem só alface, pensar isto seria muita ignorância da sua parte”. E quanto à alface, é cientificamente comprovado que reduz o risco de câncer em quem o consome, desde que seja orgânico. Há ainda, nessa categoria de consumidores indiferentes, a tentativa de permanência, uma espécie de pânico de que as graves verdades a que se tem acesso hoje sobre o abuso dos animais sejam mesmo verdadeiras e uma negação sistemática de participação no processo de mudança que precisa ser feito para a dignidade dos animais. Os consumidores dessa categoria são os que possivelmente utilizam os argumentos mais banais e infundados, mas talvez os que tenham o efeito mais nocivo na sociedade viciada em dinheiro. Por não saberem como sair do protagonismo errático do debate, apelam para inverdades convenientes, acomodadas em posturas ideológicas duvidosas.
Libertar é preciso
Jamenson é mordaz quando cita a fragilidade dos protagonistas alienados e seu entorno imediato na cultura do dinheiro. “Pensar de outra maneira significa relegar os mais incríveis fenômenos econômicos (…) ao campo da pura ilusão e dos epifenômenos, ou considerá-los simplesmente como subprodutos nefastos de uma conspiração cujas condições de possibilidade permanecem inexplicáveis”, diz. Creio que o consumidor de produtos que incentivam a cadeia de exploração animal é uma vítima da própria ignorância, pois além de insistir na sua falta de vontade para refletir sobre os direitos animais, vitimando-os, promove e difunde a incapacidade do tolo de reconhecer sua condição de algoz.