“O homem moderno toma o Ser em sua inteireza como matéria-prima para a produção e submete a inteireza do mundo-objeto à varredura
e à ordem da produção”
(Martin Heidegger)
Segundo Paul Kingsnorth (2001), a produção industrial de leite é uma das indústrias mais tristes. Quanto mais leite e laticínios são consumidos, mais as vacas são tratadas como máquinas de produzir leite para seres humanos. De acordo com o grupo PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), cerca de metade das vacas americanas vive em fazendas de produção intensiva. Passam suas vidas em alojamentos de concreto, ligadas a máquinas de ordenhar que, não raro, lhes dão choques elétricos. Mastite e infecções bacterianas, comuns em regimes intensivos, frequentemente deixam resíduos de pus no leite que produzem. Devido à alta demanda por leite, as vacas de hoje produzem o dobro do que produziam há 30 anos e até 100 vezes mais do que produziriam no estado natural. As vacas da década de 1990 viviam apenas cerca de 5 anos, em contraste com os 20 a 25 anos de vida de 50 anos atrás. São entupidas com drogas e químicos para prevenir doenças e aumentar sua produtividade, incluindo o famoso hormônio de crescimento bovino. Os bezerros que são obrigadas a parir regularmente – para estimular a produção de leite – são separados delas em 24 horas. Não tomarão seu leite e serão vendidos como carne. Em 60 dias as vacas serão engravidadas de novo, diz Kingsnorth.
Peter Singer (2002) afirma que a indústria de produção de vitela é a atividade rural intensiva mais repugnante do ponto de vista moral. O termo vitela era reservado aos bezerrinhos abatidos antes do desmame. A carne desses animais muito jovens (macia e pálida porque não comem capim) provinha dos animais indesejados, do sexo masculino, descartados pela indústria leiteira. Um ou dois dias depois do nascimento eles eram levados para o mercado onde, famintos e assustados pelo ambiente estranho e pela ausência das mães, eram vendidos ao matadouro. Na década de 1950 produtores holandeses encontraram uma forma de fazê-los atingir cerca de 200kg (em vez de cerca de 50 kg que pesam os recém-nascidos) sem que sua carne se tornasse vermelha ou menos macia. Para isso os animais passaram a viver em condições extremamente antinaturais, confinados em baias de cerca de 56 cm x 137 cm. Quando pequenos, são acorrentados pelo pescoço para evitar que se virem. O compartimento não tem palha ou qualquer outro tipo de forro onde deitar-se (pois os animais poderiam comê-lo, comprometendo a cor da carne). Sua dieta é líquida, baseada em leite em pó desnatado, vitaminas, sais minerais e medicações que promovem o crescimento. Assim vivem durante cerca de quatro meses, até o abate. Nessa vida miserável, mal podem deitar-se ou levantar-se. Tampouco podem virar-se. Os bezerrinhos sentem uma falta imensa de suas mães. Também sentem falta de alguma coisa para sugar, uma necessidade tão forte quanto nos bebês humanos: quando se oferece um dedo ao bezerro, ele começa a chupá-lo como um bebê humano faz com seus polegares. Entretanto, desde o primeiro dia de confinamento, bebem sua refeição líquida num balde de plástico. Distúrbios estomacais e digestivos são comuns e também a diarreia crônica. O bezerro é mantido anêmico. A carne rosa, pálida, considerada uma iguaria, é na verdade uma carne anêmica. Para que cresçam rapidamente, a maioria é deixada sem água, pois isso aumenta o consumo de seu substituto lácteo. A monotonia é outra fonte de sofrimento. Para reduzir a agitação dos bezerros entediados, muitos produtores os deixam no escuro. Assim, os bezerros já carentes de afeição, atividade e estimulação que sua natureza requer, veem-se privados do contato visual com outros também. Os bezerrinhos mantidos nesse regime são muito infelizes e pouco saudáveis. Isso é o que aconteceu com o seu jantar no tempo em que ele ainda era um animal, diz Singer.
E a vitela no Brasil, como é produzida?
Ainda que nem todas as etapas descritas por Singer e Kingsnorth estejam sempre presentes, a indústria de laticínios e da vitela é marcada pela violação dos corpos das vacas (que são forçadas a engravidar continuamente); pelo sequestro de seu bebê e o roubo de seu alimento; pela tortura em cativeiro (quando há confinamento do bezerro); e pelo assassinato (já que se trata de morte desnecessária, movida por motivos hedonistas e portanto torpes). O correto, do ponto de vista ético, é a total abolição do consumo de leite e seus derivados.
Porque somos veganos: a história de Bento, um bebê holandês.
No dia 13 de abril deste ano, um colega nosso do Tai Chi Chuan ficou hospedado numa pousada na Serra Catarinense e, na manhã seguinte, durante o café da manhã, soube que seus proprietários iriam sacrificar um bezerro que nascera naquela madrugada porque “não compensava” criá-lo. Segundo nosso colega, os proprietários são criadores de gado holandês para leite. Fazem inseminação artificial quando querem que as vacas fiquem prenhas, mas interessam-lhes apenas as fêmeas, claro. Surpreso, e com dó do recém-nascido, nosso colega perguntou aos donos da pousada se eles lhe dariam o bezerrinho de presente. A resposta foi “sim”, mas desde que ele o tirasse dali o mais rapidamente possível, pois “dá muito trabalho cuidar desses pequenos”. Nosso amigo teve, então, que procurar alguém para cuidar do bezerrinho nos primeiros 60 dias, pelo menos, ainda que com leite em pó, já que o bebê ficaria sem sua mãe. “Pensei em chamá-lo de ‘Quase’, visto que ficou vivo por um triz. Depois, pensei em ‘Salvado’ ou ‘Divino’. Mas, como a comunidade é muito religiosa, preferi ‘aliviar’ na nomenclatura e, assim, entra para a história, o Bento (foto nesta página), um sobrevivente na Serra Catarinense”, finalizou nosso colega.
Precisamos de leite?
Não. Isso torna o drama de Bento e sua mãe algo ainda mais incompreensível, para não dizer intolerável. Pior, o consumo de leite está associado a diversos problemas de saúde como manifestações alérgicas (rinite, bronquite), além de provocar prisão de ventre, flatulência e outros distúrbios. Isso se deve sobretudo ao fato de muitas pessoas terem intolerância à lactose e, também, à dificuldade de metabolizar algumas proteínas presentes no leite, seja devido à sua elevada concentração (caseína), seja pela própria natureza da proteína (beta-lactoglobulina). Há ainda muita controvérsia no que tange à confiabilidade do leite como fonte segura de cálcio, envolvendo questões relacionadas ao seu balanço/biodisponibilidade [1]. Existem muitos mitos relacionados à necessidade de consumir itens de origem animal que não têm fundamento científico. Infelizmente, não são poucos os profissionais da área da saúde que perpetuam tais mitos e nos impõem informações equivocadas, cuja aceitação tem por base o medo de adoecer. Independentemente de adotarmos o veganismo, é bastante interessante compreender os fatores históricos, ecológicos e evolutivos, subjacentes à inclusão do leite e seus derivados nas dietas humanas [2]. As referências indicadas aqui e muitas outras evidenciam por que o leite não é saudável ou necessário hoje.
“Milk is murder”! Ou por que um pedaço de queijo ou um milk-shake valem mais do que a vida de Bento?
Essa é a pergunta que não quer calar. Por mais que se alegue que somos radicais em nossos questionamentos teóricos, o que importa é o que acontece na prática. E, na prática, saborear uma “pizza”, ou uma sobremesa ao “creme de leite”, é mais importante do que deixar Bento e seus irmãos viverem. Essa é uma das muitas “verdades inconvenientes” decorrentes de nossa relação especista com os outros animais. E aqui é bom pontuar: somos radicais, sim, no que diz respeito a ir à raiz do problema. Mas não podemos aceitar o rótulo de radical como “postura extremada” ou “sem maleabilidade”, porque extremados e inflexíveis são aqueles que se recusam a abolir hábitos que são – entre muitos outros aspectos – ética e ambientalmente injustificáveis. Consideramo-nos civilizados, mas quando nos comparamos com outras sociedades humanas que chamamos de “primitivas”, constatamos que nenhuma delas jamais dispensou um tratamento tão cruel quanto o nosso para com os animais. O progresso que alcançamos é tão somente no plano técnico. No plano ético nosso progresso é mínimo, senão nulo.
Leites vegetais, leites legais! Viva a diversidade!
Para concluir, gostaria apenas de destacar que existe a possibilidade de tomarmos leites de arroz, gergelim, trigo, aveia, amêndoas, entre outros, que são muito saudáveis e não implicam o sofrimento de seres sencientes. Trocar o leite de vaca por leites vegetais é uma atitude muito legal! Não só porque aumentamos a diversidade de nutrientes que ingerimos e ajudamos a manter a diversidade na natureza, mas também porque são os únicos leites que respeitam rigorosamente a legislação que procura salvaguardar os animais não humanos de danos e procedimentos cruéis.
[*]: Alusão ao álbum Meat is Murder, de 1985, da banda britânica The Smiths. Meat is Murder lamenta em tom de luto a desnecessária morte de seres sencientes, isto é, aqueles capazes de experimentar alegria, dor, medo etc. A letra da música assume também um tom raivoso, ao colocar a culpa pelos assassinatos de animais inocentes diretamente no prato de quem os come: “A carne de peru ou novilha (vitela) que fritamos ou cortamos em pedaços não é suculenta ou saborosa, é uma morte sem motivo e morte sem motivo é assassinato”. A letra termina com as perguntas: “Você sabe como os animais morrem? Quem ouve os gritos dos animais?”
Notas
[1] Veja, por exemplo, “Consumo do leite de vaca: mitos e realidades”, artigo da Dra. Denise Madi Carreiro, disponível em http://www.denisecarreiro.com.br/artigos_artigoleite.html
[2] Para uma rápida revisão sobre o assunto procure na Internet “Lacticínios + Wikipédia” (item História). Para um maior aprofundamento recomendo, por exemplo, o capítulo que trata dos “lactófilos e lactófobos” (“Lactophiles and Lactophobes: Milk Lovers and Milk Haters”) no clássico livro Good to eat – riddles of food and culture, do antropólogo Marvin Harris.
Bibliografia
KINGSNORTH, Paul. Mother’s milk. The Ecologist, jun. 2001;31(5):38.
SINGER, Peter. Lá na fazenda industrial… In: Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Tradução de Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 83-94.