Parece que foi ontem aquela manhã nebulosa em que abri o jornal e só consegui ler as manchetes. Não era indisposição de noite mal dormida nem terçol coisa nenhuma, o fato é que ali minha visão começou a se tornar declaradamente avessa a certos tipos gráficos, especialmente textos com letrinhas, bulas de remédio e ingredientes de produtos alimentícios. Talvez a melhor explicação para esse fenômeno de rebeldia visual estivesse numa frase perturbadora que uma vez vi pichada num muro e que, na época, não me dei conta : “A idade é uma maldade”. O mais paradoxal disso tudo é que nem todas as pessoas prescindem de óculos de grau, enquanto outras o usam desde cedo. Minha avó húngara, com oitenta e lá vai bolinha, possuía olhos de águia. Adepta fiel da sopa de cenoura, nem mesmo bengala chegou a usar. Enxergava tudo e a todos. Acho que até mesmo a Indesejada ela conseguiu espreitar, no momento em que a chaleira de água quente chiava no fogão. E olha que a mulher só se foi depois do café. Sem óculos.
No meu caso a culpa do astigmatismo deve ser da maldita radiação do computador. Coisas da pós-modernidade, diriam os pesquisadores. Quando nossos olhos são bombardeados anos a fio pelos elétrons que saem da telinha – em casa, no trabalho, no ônibus, na padaria, no restaurante, às vezes até no banheiro – a biologia acaba dando ares da graça: a fadiga ocular se instala. As comodidades do mundo tecnológico acabam um dia cobrando seu tributo, estou ciente disso. Quantas vezes eu pensei em sair correndo do gabinete, pular do 3º andar, andar descalço pela grama, rever aquela praia branca e nua de um mar francês que já nem mais sei onde fica. Mas a vida real e as obrigações cotidianas sempre me contiveram. Resumo da ópera, a deficiência ocular que desenvolvi nos últimos anos passou da visão próxima para a visão distanciada, justamente eu que outrora conseguia ler placas de trânsito e outdoors a quilômetros de distância.
Minha visão (sem óculos, bem entendido) tornou-se, assim por dizer, difusa, projetando imagens imprecisas como aquelas que se vêem nos quadros de alguns pintores do século XIX. Exatamente isso. Demorei para encontrar a expressão capaz de definir o que me sucede no plano óptico: visão difusa. Quando saio da frente do computador, depois de horas a fio, as coisas se me afiguram vagas, tênues, disformes e meio translúcidas. Como frases jogadas ao vento, esboços daquilo que queria dizer e não disse. Tenho até alguns parâmetros artísticos para comparação: o mar de névoa, de Friedrich; o nascer do sol, de Monet; o naufrágio, deTurner; girassóis, trigais e noites estreladas, de Van Gogh. Tais pinturas têm em comum a marca impressionista, cujos artistas por vezes tocam no simbolismo ou na estética romântica. Sem óculos sinto-me plenamente integrado ao cenário difuso dessas telas.
E olha que essa visão difusa não é de todo ruim. Alguém já disse que a natureza é sábia, como se a deficiência ocular tivesse a função de poupar o sujeito de presenciar cara a cara a ruína física de si e dos outros. Ainda que a ideia seja uma grande bobagem , a gente chega mesmo a pensar seriamente nela. Falo por mim. De fato, quando estou sem óculos as pessoas não envelhecem, elas têm sempre aquela imagem facial etérea e sem marcas de expressão. Mas se eu ponho as hastes de metal sobre o nariz, principalmente no elevador, sou capaz de cair de costas. Ver gente adulta com o grau 2 de farmácia (e de muito perto) piora as coisas, tudo parece mais nítido e implacável. As pessoas é que ficam diferentes ou seria apenas uma ilusão dos meus sentidos? Por via das dúvidas prefiro evitar os espelhos, sobretudo aquele vidro inquisidor que em casa adora me dar sustos. Faço-o para tentar fugir do senhor insensível que se chama Tempo. Ou quem sabe para prolongar o encanto imaginário do meu inesquecível mar de Pas-de-Callais…
O mais engraçado nisso tudo é que, com ou sem óculos, existe algo que não mudou em mim: a visão sobre os animais. A olho nu eles me parecem os mesmos, desde sempre, com uma autenticidade que não se altera com o passar dos anos. Se os vejo com óculos eles continuam idênticos em sua serenidade, como se a vida se lhes cumprisse numa seqüência coerente de dias e noites, porque são puros, verdadeiros e sem máscaras. Minha visão difusa, pasmem, torna-se neutra diante dos animaizinhos com os quais convivo. Seja como for, pelo sim pelo não, decidi me submeter ao exame clínico. Não me poderia imaginar no futuro tateando por aí feito uma toupeira, esvaído em memórias afetivas e lembranças que não se apagam. Mas no consultório veio a dupla decepção: o médico me receitou não apenas um, mas dois óculos de grau – um para perto e outro para longe. Não sei que raios fui pensar justo na minha avó: – Por que nunca aprendi a gostar de sopa de cenoura?