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LUTA PELA TERRA

Violência no campo precisa entrar nos debates da COP30: ‘Crise ambiental vai além da agenda do aquecimento global’

Para as lideranças, direito ao território, fim da violência e financiamento são pontos essenciais na discussão ambiental

8 de novembro de 2025
Carolina Bataier
6 min. de leitura
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Foto: Léo Otero/Ministério dos Povos Indígenas

Em novembro de 2025, pela primeira vez, a agricultora quilombola Xifroneze Santos participará de uma Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). Na COP30, em Belém, ela espera debater propostas de financiamento para a titulação de territórios quilombolas. “Financiamento e território são duas coisas que precisam andar juntas”, afirma.

A comunidade Caraíbas, onde ela vive, no município de Canhoba (SE), ainda não foi titulada. Isto é, as 300 famílias que moram na área não têm documentos que lhes garantam segurança jurídica sobre as terras. Por isso, sofrem com as ameaças dos fazendeiros que disputam aquelas áreas.

“Já passei por ameaça, perseguição política, tentativa de homicídio contra meu tio”, lista a agricultora sobre as violências que sofre há pelo menos 20 anos – período em que a comunidade busca, na justiça, a regulação daquelas terras.

Atualmente, no Brasil, há 1.857 quilombos com processos abertos de titulação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela execução da política que garante os direitos sobre a terra a essas comunidades. Muitos outros ainda nem entraram no processo de regularização fundiária. “Dos mais de 5 mil quilombos no Brasil, temos apenas 202 quilombos com título”, afirma Xifroneze, que atualmente assume o cargo de coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Do mesmo modo, acontece com sem terras, indígenas e outras comunidades tradicionais que sofrem as violências enquanto garantem a preservação das matas. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o país tem cerca de 200 terras indígenas aguardando a finalização do processo de demarcação. E, enquanto a regularização não chega, esses povos ficam expostos às violências como invasão dos territórios, pulverização de agrotóxico sobre as roças e rios, ameaças e até assassinatos.

Dados divulgados em junho deste ano pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que essas investidas contra pessoas, territórios e modos de vida, aumentaram na última década.

“Quando a gente diz que, nos últimos tempos, os grupos mais afetados foram populações tradicionais, a gente está dizendo que são esses grupos, que protegeram a natureza desde que chegaram os portugueses aqui, estão sendo diretamente atacados”, alerta Luiz Jardim Wanderley, pesquisador e professor do departamento de geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF). “E o desmatamento é um vetor de violência também desses ataques”, diz.

Violências aumentaram na última década

Wanderley coordenou a pesquisa do Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, um documento publicado em julho de 2025 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) com o levantamento dessas violências nos últimos 39 anos – de 1985 a 2023.

No período, o Brasil teve 50.950 ocorrências de conflitos no campo, segundo o documento. O atlas, lançado no evento de 50 anos da pastoral, apresenta um panorama da violência no campo no Brasil e um dado alarmante: as investidas contra as comunidades rurais seguem aumentando, e tiveram número alarmantes na última década.

“Entre 2016 e 2023, as ocorrências se mantiveram bem acima da média histórica. Os conflitos se intensificam em todo o Cerrado ampliado, mas de forma especial no Matopiba [fronteira agrícola que engloba áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia]”, aponta o atlas dos conflitos.

Não por acaso, as violências coincidem com as áreas de desmatamento, não só do Matopiba, por onde avançam as plantações de soja, mas também da Amacro, a fronteira agrícola na Amazônia, que reúne áreas dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia.

Em 2023, a área concentrou 10% [179] de todos os conflitos por terra registrados no país, e 26% de todos os assassinatos ocorridos em contexto de conflitos no campo, de acordo com o Relatório de Conflitos no Campo de 2023 da pastoral.

O avanço das fronteiras agrícolas e a ganância por novas áreas de exploração por parte de fazendeiros e empresários sobre terras públicas encurrala os povos e comunidades tradicionais, cada vez mais pressionados em suas. Os indígenas são as maiores vítimas da violência no campo no Brasil, enquanto fazendeiro, empresários e agentes do Estado, como policiais, estão entre os causadores dos conflitos.

“A gente tem uma corporatização do território e do campo brasileiro[…] a esperança que se tinha [era] de que o empresariado iria entrar no campo e iria trazer algum tipo de racionalidade… Mas ele não traz racionalidade”, lamenta Wanderley. “Ele mantém um padrão violento histórico contra as minorias, contra indígenas, contra negros, contra quilombolas. Ele mantém e agrava esse padrão de violência que a gente tem ao longo do tempo”, diz.

Entre 1985 e 2023, os conflitos no campo cresceram 444%, de acordo com a pesquisa. O documento ressalta que, apesar de alguns momentos de queda e estabilidade nas últimas quatro décadas, a tendência é de crescimento geral no cenário de violência no campo.

“Nesse processo da expansão ou da constituição da propriedade privada, a violência é uma coisa que está inerente. Ou seja, ela é estrutural”, ressalta Camila Salles, geógrafa, pesquisadora e professora no departamento de geografia na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

A pesquisadora explica que o desmatamento, em muitos casos, é usado como instrumento da grilagem. O invasor da terra desmata para comprovar que pratica uma atividade na área e, depois, tentar conquistar o título da terra. Por fim, uma área que seria preservada e teria um uso sustentável, caso fosse ocupada por comunidades tradicionais, passar a ser dominada por pastagens e monoculturas. “Então, não dá para tratar só a questão do desmatamento separado da questão fundiária. Tem que estar junto”, alerta Salles.

‘Não podemos falar de clima sem falar das vidas das pessoas’

“A COP por sua posição estratégica na geopolítica global do multilateralismo poderia sim ser um espaço que tratasse de vários assuntos que estão profundamente ligados a agenda climática”, afirma Ayala Ferreira da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

No entanto, isso não ocorre porque, como avalia Ferreira, a conferência “se transformou em um espaço das negociações sobre a agenda das mudanças climáticas e que a meta prioritária é levar os Estados nacionais signatários do sistema ONU [Organização das Nações Unidas] aliados a setores privados apresentarem um plano que não altera profunda e efetivamente a crise ambiental que ao nosso ver vai além da agenda do aquecimento global”.

O direito à terra garante a segurança de quem protege as matas e é um caminho possível para a contenção da crise climática. É essa a mensagem que povos e comunidades tradicionais esperam conseguir transmitir na COP30, em Belém.

“Não podemos falar de clima sem falar das vidas das pessoas e dos animais”, lembra Xifroneze Santos. “Não é só a natureza em si [que importa], mas sim as pessoas que estão ali naquele naquele meio, naquele ambiente, onde vêm preservando, vêm cuidando e poucos são vistos e respeitados”, diz.

Fonte: Brasil de Fato

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