Quando as pessoas compram ou consomem carne, a maioria jamais pensa no que existe por trás daquele produto. Ou seja, nas etapas que antecedem a chegada de um pedaço de carne às suas mãos.
Por isso a VEGAZETA realizou uma extensa entrevista com uma médica veterinária com mais de 20 anos de experiência e que já atuou tanto em matadouro de bois quanto de porcos no sul do Espírito Santo.
As revelações feitas pela profissional a quem chamaremos de Sonia, e que pediu demissão do trabalho por não suportar mais a realidade cotidiana, podem fazer o consumidor repensar seus hábitos alimentares.
No entanto, antes de começar, é válido situar em que contexto Sonia começou a trabalhar em um matadouro.
“Na época, eu tinha pouco tempo de formada, havia voltado pra minha cidade, porque fiz faculdade fora, e estava sem emprego. Prestei concurso pra prefeitura, mas não fui chamada imediatamente porque era cadastro de reserva. Um dia, quando havia retornado de uma viagem ao Rio [de Janeiro] para visitar minha irmã, recebi uma ligação comunicando que eu começaria a trabalhar no matadouro municipal. Isso foi em janeiro de 2000.”
O matadouro citado por Sonia já era bem antigo, tradicional e ficava em um bairro da periferia. “Tinha um problema de poluição, era uma situação bem precária. Aí aceitei por uma questão financeira. Trabalhava lá de segunda a quinta, das 5h às 10h, e na sexta, das 4h às 11h. No restante do dia tinha minhas atividades em uma clínica de cuidados de pequenos animais de um colega. Eu ficava lá à tarde e à noite. Era uma jornada pesadíssima.”
CONFIRA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:
Qual era a sua função no matadouro e em quais condições você trabalhava?
A minha função era fazer inspeção tanto do ante mortem, quando os animais chegam, quanto do post mortem, depois do abate. Mas oficialmente o matadouro teria que ter no mínimo dois veterinários, um pra examinar os animais que chegam e outro na linha de matança pra inspecionar a carne. Eu era sozinha lá, a única veterinária. Optei por ficar inspecionando a carne. Fazendo esse trabalho, você vê a quantidade de coisas que passam erradas. Isso acontece porque tanto os marchantes [que compram o gado para vender a carne] quanto os açougueiros, têm interesse puramente econômico. Então havia diversas manobras para tentar passar carnes inadequadas para consumo. Eu tinha de ficar vigiando.
Havia casos de abate indevido de animais?
Sim, de animais doentes e vacas gestantes. Isso acontecia, vi poucas vezes, mas vi. Quando comecei a trabalhar no matadouro, me contaram que antes era bem comum abater vacas com sete, oito meses de gestação. Isso é horrível porque com oito meses e meio o bezerro já tem uma formação que o permite ficar em pé. Acontecia também de matar vacas que só depois do abate descobriam que estavam em gestação. Era uma coisa horrorosa.
Como era passar a manhã testemunhando a matança de animais?
Eu evitava ficar no início da linha de matança porque é horrível assistir aquilo. Preferia ficar perto da balança, que é onde pesavam as carcaças, os quartos dos bois, porque divide em quatro partes, naqueles ganchos. O abate, a “insensibilização”, era na marreta. Tinha um senhor que era o “marreteiro”, já com mais de 20 anos de experiência em matadouros. Ainda assim, nem sempre derrubava o animal na primeira marretada. Presenciei mais de uma vez animais tendo de receber duas ou três na cabeça antes de cair. Hoje não pode usar marreta e quando comecei já não era prática aceitável, mas acontecia. Hoje no matadouro se usa a pistola de dardo contido – com pino. Mas ainda digo que é uma suposta insensibilização porque nem essa nem a outra prática realmente garantem a insensibilização.
O que faziam depois?
Eram içados por um dos pés, e era feita a degola. É super frequente que eles se debatam enquanto sangram porque obviamente não estão bem insensibilizados. Depois vem a parte da esfola toda, tira o couro, abre a barriga e desmonta o bicho. No caso dos porcos, a insensibilização lá não era feita por eletronarcose, mas por marreta também. No caso dos suínos chega a ser pior porque os porcos têm uma caixa craniana muito mais resistente que o boi e eles se movimentam muito mais rápido. A quantidade de vezes que o marreteiro não acertava os animais era surpreendente. A degola do animal ainda consciente era comum e acredito que ainda é.
Era mais visível o sofrimento dos suínos ou dos bovinos?
Os porcos chegavam estressadíssimos, porque porco é um animal que se estressa muito fácil. Eles parecem muito com a gente, tanto fisiologicamente como na parte psíquica. Porcos desenvolvem úlceras por estresse igual nós. Imagine o grau de sofrimento deles na linha de matança, sentindo o cheiro de sangue e ouvindo os companheiros gritando. A tortura mental começa muito antes; e geralmente são abatidos com o companheiro atrás, na fila, vendo o animal que está na frente. É comum espetá-los pra forçar a andar, porque eles não querem entrar. Porco é um bicho que apanha muito em matadouro porque eles são considerados indisciplinados. Claro, tadinhos, não querem morrer. Então são empurrados, recebem chutes. Você via os corpos pendurados com marcas de vergões. Os gritos deles são muito marcantes e os olhos também, arregalados, cheios de expressões de terror. Quando os porcos são içados por uma das patas traseiras e sangrados, a gente vê o animal chutando porque não está realmente insensibilizado. Depois da sangria já era feito o que chamavam de “pela porco”. Ou seja, jogavam o animal na água quente, fervendo. Visitando um matadouro grande em Minas [Gerais], um desses famosos que vendem carne pelo país todo, vi porcos se debatendo de dor nesses tanques. Lembro que fiquei chocada, porque achava que a insensibilização por eletronarcose [choque] era eficiente.
É possível evitar o estresse dos animais nos matadouros?
Matadouro é um ambiente em que o estresse dos animais é inevitável. É impossível não haver sofrimento no antes ou durante o abate. Isso tudo é muito naturalizado. As pessoas não veem na prática, porque não é uma coisa pública, que é exposta. Elas não conhecem os bastidores por trás da bandeja de carne que está no supermercado. Ninguém deveria comer isso.
Foi difícil testemunhar tantos animais chegando, criaturas que logo mais estariam mortas?
Nunca vou esquecer dos olhares dos animais. Quando eu chegava pra trabalhar, a maioria dos bovinos e suínos já estava lá. Eles ficavam nos currais de espera, em jejum antes do abate. Algumas vezes caminhões atrasados chegavam durante a matança. Então você via os olhares daqueles infelizes chegando nos caminhões. Não dá pra esquecer, foi uma coisa que me marcou muito. Parece que eles sabem. É muito ruim de ver. E sentem cheiro, escutam os outros gritando, porque os porcos gritam muito quando são empurrados e ficam assustados.
Você presenciou mais animais abatidos de quais faixas etárias?
No matadouro em que trabalhei os porcos eram mortos com seis meses de idade. Tinha alguns “cachaços”, suínos reprodutores já considerados velhos pra função, que eram castrados na propriedade sem anestesia alguns meses antes do abate. Isso era feito pra tirar o cheiro da carne. Recebíamos muitos porcos jovens, que na realidade eram filhotes. Hoje não é diferente [abate ocorre até mais cedo em consequência do chamado ‘aperfeiçoamento genético’]. Já de bovinos, o matadouro recebia animais com dois a quatro anos [com expectativa de vida de 20 anos], principalmente. Tinha dia que diziam: “Ah, hoje tem vaca velha”, em referência às “vacas refugadas” na indústria da produção leiteira, e que têm pouco valor na indústria da carne.
Também recebiam animais que não eram criados com essa finalidade?
Me lembro de um touro e de animais de carros de bois. Isso me marcou também. Por volta de 2000, ainda era bem comum carro de boi em alguns pontos no interior, e geralmente havia sempre dois animais puxando carga. Quando um ficava doente ou sofria algum acidente, até mesmo fratura, mandavam abater tanto o que estava doente quanto o saudável. Diziam que isso era padrão porque o animal remanescente não se adaptaria a um novo companheiro. A exploração é cruel. Vi também abate de búfalo algumas vezes e com marreta. Isso era proibido por lei, e teria que ser obrigatoriamente com o uso da pistola porque os búfalos, assim como os porcos, têm uma caixa craniana muito resistente. Mas mesmo com a pistola a insensibilização era ineficiente. Então eram diversas marretadas. Ainda me recordo de um dia que abateram dez búfalos. No geral, eu tinha de lidar com a inspeção do abate de 60 bovinos por dia e até 100 porcos.
Você comentou que o movimento no matadouro mudava de acordo com a demanda…
Sim, em véspera de feriado a gente começava a trabalhar às 3h porque a matança iniciava mais cedo por causa da demanda do churrasco.
Algum dos magarefes se sentia mal em trabalhar matando animais?
Quando entrei lá, já eram todos funcionários há bastante tempo, não me lembro de nenhum magarefe novato e, naquele ano em que comecei [2000], não entrou ninguém. Eu era a novata. Acho que deve acontecer isso sim, mas todos já tinham passado por uma fase que chamo de “insensibilidade”. Se tinha um ou outro que se chocava, eles disfarçavam muito bem. Lembro agora de um funcionário, já um senhor, que pareceu emocionado ao falar do abate de uma vaca prenha. Segundo ele, “o bezerro saía quase pulando de dentro da vaca”. Mas não percebi outros exemplos de estranhamento. Acredito que porque não tinha ninguém com menos de três anos de trabalho lá.
Há estudos que associam atividades profissionais que envolvem violência com o embrutecimento humano. Isso se aplica ao matadouro onde trabalhou?
Havia mais de 30 magarefes trabalhando lá dentro. A gente percebe o embrutecimento entre eles. Tirando uma exceção ou outra, você observa na prática que aquilo embrutece. Imagino que seja até uma “defesa”, porque por mais “cascudo” que um sujeito seja, ele é um ser humano, e a gente tem empatia, por mais que a pessoa tente disfarçar isso. Então tentam se blindar, não se importar pra poder continuar lá dentro. Acredito que envolvimento com violência diária torna a pessoa mais suscetível. De qualquer forma, lidar com as pessoas não é fácil, mas se tratar com gentileza, geralmente a gente tem gentileza de volta. Fui de peito aberto pra experimentar a situação. Da minha relação com eles, não tenho do que reclamar porque me tratavam com muito respeito e consideração.
O abate por si só já é uma crueldade, mas havia funcionários que se excediam nesse processo?
Um dia, escutei uma gritaria dentro do matadouro. Quando fui ver o que era, um funcionário levou um bode que ele comprou pra ser abatido lá depois do expediente, mas o animal fugiu. Um deles conseguiu capturá-lo e o encontrei degolando o bode e todo mundo aplaudindo aquilo. O coitado acordado sendo degolado. Foi a coisa mais chocante que presenciei lá dentro. Vi um grau de frieza desse indivíduo especificamente que eu nunca tinha visto na vida. Ele parecia ter algum prazer, satisfação com aquilo, e o bode agonizando. Os outros ficaram constrangidos ao verem minha reação e um deles veio me pedir desculpa. Eu nunca fazia nenhuma crítica em público, sempre os chamava em uma sala. Mas naquele dia não aguentei e falei que o trabalho deles já era horrível, mas isso era ainda pior.
Acontecia acidentes de trabalho?
De vez em quando alguém se cortava. Nunca presenciei acidente grave com serra nem nada, mas já presenciei acidente com faca, e soube de caso de briga entre eles. Então imagine brigas com facas. O nível de estresse é muito alto lá dentro – tanto por parte de humanos quanto dos animais que serão abatidos. Não tinha nem sabão e eu levava de casa. Alguns funcionários escondiam pra mim porque senão sumia. Era comum trabalharem sem capacetes, todos eles, na realidade. Também não usavam luvas porque não eram fornecidas.
Quais eram as condições de higiene?
A questão de higiene era precaríssima. Hoje não sei como é no geral, mas uma vez fui cobrada para fazer inspeção no gado e falei que não poderia entrar de bota em curral cheio de excrementos de vaca e depois ir até o local onde estão as carnes. Não havia condição de fazer isso. Então teria que ter outro veterinário, mas nunca teve. Outro ponto também é que quando abriam a barriga do porco, era comum o fígado ficar arrastando no chão, onde as pessoas andavam de botina e por onde os açougueiros passavam com calçados sujos. Ao menos consegui convencer os funcionários a pendurarem as vísceras.
Faziam testagem para avaliar se havia vestígios de antibióticos na carne?
Não havia teste. O que existia e ainda existe é recomendação de que suínos e bovinos que recebem antibióticos não podem ser abatidos com menos de 30 dias após a aplicação. Claro que as pessoas não respeitam isso. E acontecia de reutilizarem agulhas em diversos animais; tudo isso pra economizar e não gastar com agulhas. Sei disso porque recebíamos no matadouro animais com casos de abscessos em consequência dessa prática. Na reutilização, acabam inoculando bactérias que podem comprometer o quarto todo [carcaça do animal abatido dividida em quatro partes], forçando o descarte – o que nem sempre ocorre. Acontecia de lavarem a carne com pus pra “maquiar” e tentarem passar na inspeção.
Mas se lavar a carne amplia ainda mais a contaminação, não?
Sim, porque contamina a peça toda, e favorece a disseminação de bactérias que causam doenças em humanos e intoxicação alimentar.
Imagino que testemunhou muitas chegadas de animais ao matadouro. Ocorria em quais condições?
Pra economizar no frete, colocavam o maior número possível de porcos no caminhão. Imagine animais viajando por longas distâncias e amontoados – alguns chegavam mortos ou quase morrendo porque tinham sido pisoteados e esmagados. Inúmeros chegavam com algum tipo de fratura ou pelo menos hematomas.
Como você era responsável pela inspeção de carne, creio que passou por situações bem desconfortáveis de conflito com marchantes e açougueiros.
Sim, uma vez chegou uma carcaça com cheiro estranho e o marchante [que vende gado para os matadouros] veio reclamar comigo, porque ele queria que não descartasse aquela carne. Eu disse que iria armazenar a carne em um freezer, recolher uma amostra e enviar para o laboratório para avaliar o nível de contaminação. O matadouro não pagava por esses testes, então eu mesma paguei. O exame então confirmou o que eu disse. Preocupado, o bioquímico que fez a análise falou que a carne estava completamente contaminada, “com uma quantidade absurda de unidades formadoras de colônias”. Naquele dia, antes de apresentar o resultado do teste, falei para o marchante que se a carne de porco estivesse boa, eu sabia que não estava, iríamos então fazer um churrasco e convidar toda a família dele pra comer. Ele ficou olhando pra mim e disse que não, que não poderia fazer isso. “Mas os netos, as famílias dos outros, podem?”, continuei. Ele ficou em silêncio. A verdade é que se facilitar muita carne contaminada chega sim aos açougues.
Houve algum caso de fuga de animais?
Uma vez um caminhão chegou na véspera da matança, numa tardezinha, e iriam passar a noite lá, e dois bois escaparam. Quando cheguei de manhã tinha muita coisa quebrada. A prefeitura abafou o caso e não saiu nem no jornal. Os animais foram mortos na rua mesmo.
Era um prédio só que abrigava matadouro de bovinos e suínos?
Era o mesmo prédio, tinha o curral e o tronco onde se fazia o atordoamento dos bois e a linha dois onde ocorria o atordoamento dos suínos e a sangria. Eram dois trilhos no mesmo prédio. Um pra carcaça de bois e outro de porcos. Quando terminava o abate dos bois começava o dos porcos. Porque como era o mesmo marreteiro, ele derrubava os bois, e quando marretava o último, e deixavam um monte de corpos de bovinos pendurados lá nos trilhos, começava o dos porcos. Tinha uma pequena separação, com alturas diferentes. Porque o abate de boi é feito a partir de uma plataforma, já de suíno, não.
Você já havia comentado que era comum conflito envolvendo inspeção de carne, marchantes e açougueiros, porque eles não querem deixar de lucrar. Eles tentavam burlar a inspeção ou encontrar alternativa para revender carne com provas de contaminação?
Quando acontecia de eu ter que fazer descarte de carcaça era uma luta porque os açougueiros reclamavam muito. E há situação em que não existe acordo; até porque é preciso descartar carne imprópria para consumo. Acontecia de quererem aproveitar até a carne de animais que morriam na noite anterior. Era complicado porque até os funcionários às vezes furtavam essas carnes impróprias, que poderiam provocar doenças se consumidas, e revendiam “por fora” para os açougues. Eu tinha que inutilizar aquelas carcaças, jogando produtos nela, e eles ficavam arrumando jeito de tirar aquilo pra vender, porque tinham acordo com marchantes e açougueiros. Infelizmente, partes que não poderiam ir para o açougue acabavam indo.
Então existia uma espécie de comércio paralelo de carnes?
Sim, de partes que deveriam ir pra graxaria, mas pessoas trabalhando dentro do matadouro se apropriavam dessas carnes pra revender. Além disso, como o matadouro ficava em um bairro que era tanto residencial quanto comercial, mas muito pobre, era comum surgirem crianças e mulheres no matadouro em busca de sobras de carne de cabeça, de boca de vaca. O que sobrava, eles levavam em sacolas. Era carne de refugo mesmo, incluindo baço e vísceras, que não tem saída em açougues. Sem dúvida, um ambiente insalubre e crianças entravam no matadouro em alguns horários pra buscar esses restos de matança. Era tudo muito triste.
Como era a remuneração?
Baixos salários eram um padrão, o meu inclusive na época. Os magarefes recebiam um salário mínimo, que já era realmente pouco. Quando entrei, recebi o equivalente a menos de dois salários mínimos, e que já estava defasado na época. As condições de trabalho eram muito precárias, funcionário trabalhando com bota furada…
Como você avalia a realidade geral do trabalho em matadouro?
Eu tinha uma boa relação com alguns funcionários. Há pessoas boas lá dentro. Dois ou três denunciavam pra mim as irregularidades. Mas a realidade do trabalho é a pior possível. Havia dias piores quando você reconhecia que uma vaca gestante tinha sido abatida. Me deixava mal também ver que animais não eram mortos inconscientes, e porque a “insensibilização” realmente não garantia isso. Não era fácil dia nenhum e por isso que saí. O que contribuiu pra minha saída também é que me senti hipócrita, simples assim, porque eu achava errado, não concordava com aquilo, mas estava lá por causa de dinheiro. Precisei sair. Falei que preferia ganhar menos, sem estabilidade, como é minha vida até hoje, porque ainda trabalho como autônoma. A gente tem altos e baixos. Mas pelo menos com a consciência tranquila. Naquela época, eu ainda comia peixe, não comia carne de boi e porco e estava parando de comer frango. Mas comia peixe e ainda consumia leite, ovos e tudo o mais, mas me incomodava muito. Quando decidi parar de comer carne inicialmente foi pelos bichos mesmo. E as pessoas diziam: “Que frescura! Que bobagem!”
Quando começou a se questionar sobre o consumo de carne e outros alimentos de origem animal?
Eu era muito jovem quando parei de comer carne, mas não era vegana, até porque não se falava em veganismo há 20 anos no Brasil. Fui conhecer o termo bem depois. Comecei a trabalhar e tomei pé da realidade lá dentro do matadouro. Quando estamos na graduação a gente tem a parte de visitas técnicas a abatedouros, mas nada se compara a trabalhar nesse tipo de ambiente. Em poucos meses. comecei a me questionar o que eu estava fazendo ali dentro. Foi um grande dilema porque eu ficava uma parte do dia ajudando a salvar animais dentro do consultório e na outra parte assistindo a matar. Então isso é muito contraditório, tem um custo emocional e psicológico muito alto pra gente. Pelo menos pra mim teve.
Como você era concursada, e trabalhava em um matadouro administrado pela prefeitura, havia possibilidade de solicitar remanejamento de função?
Chegou um momento quando eu já estava saindo em que disseram que eu seria transferida para o CCZ [Centro de Controle de Zoonoses]. Naquele tempo ainda existia o serviço de carrocinha que recolhia uma quantidade enorme de animais, porque era o único CCZ daquela região sul do Espírito Santo. Fiquei sabendo que dentre outras funções eu teria de realizar a eutanásia dos cães recolhidos, incluindo animais saudáveis. Aquilo pra mim foi a gota d’água. Entrei com aviso prévio e pedido de demissão. Todas as pessoas do meu convívio me criticaram por causa dessa decisão, dizendo que eu estava abandonando uma carreira que logo me traria estabilidade financeira. Só tive apoio de um amigo, que disse que se eu não estava feliz deveria sair, senão acabaria ficando doente. Posso dizer hoje que foi a melhor decisão da minha vida.
Analisando suas primeiras experiências profissionais após a graduação, você enfrentou inúmeros dilemas que envolvem o que parece ser o oposto do que podemos chamar de “cuidados com os animais” ou que realmente levam em conta os interesses deles. Esse aspecto da medicina veterinária te decepcionou?
Quando decidi fazer veterinária foi porque amo bicho, adoro, todos eles, independente de espécie. No entanto, dentro da graduação você se dá conta que o curso não é voltado pra quem ama animais. Acho que muita gente entra no curso até um pouco iludida porque na prática a função que a faculdade entende, pelo menos onde me formei, que foi em Minas gerais, é que a prioridade é o mercado; formar profissionais para tratar animais como produtos – suínos, bovinos, aves, caprinos. Então a gente acaba sendo uma peça dessa engrenagem. Há uma visão romantizada da profissão. No meu caso, optei por lidar com cães e gatos, mas a faculdade forma o profissional basicamente pra atender a demanda do mercado de produção de proteína animal. E as razões de exercer a profissão nem sempre são porque gosta de bicho, inclusive conheço veterinário que não gosta de animal.
Um exemplo disso, acredito que foi uma aula de suinocultura que você comentou em que se decepcionou com o que viu na prática…
Sim, na faculdade de veterinária, teríamos uma aula prática de “cuidados neonatais ou perinatais de suínos”. Fui toda animada e pensei: “Oba! Vou lidar com filhotinhos.” Toda inocente. Quando chegamos, havia uma turma pequena e o professor chamou um funcionário pra mostrar os cuidados neonatais ou perinatais envolvendo leitões com sete dias de idade. O que vimos foram o que chamam de “acertos”. E o que é isso? Bom, um porquinho ainda bebê tem a cauda cortada, é castrado [no caso dos machos], tem os dentes cortados e as orelhas furadas. E tudo isso feito sem anestesia e os filhotes chorando de dor. Meus colegas achavam aquilo natural. Fiquei horrorizada e pensei: “Isso não são cuidados, nunca mesmo.” São na realidade procedimentos que atendem aos interesses do mercado. Eu disse que não iria fazer parte daquilo mais e parei de comer carne de porco no mesmo dia. Isso foi em 1994. Continuei com a carne bovina por mais algum tempo porque todo mundo me dizia que eu ficaria doente se parasse com todos os tipos de carne. São crenças bobas que colocam na cabeça da gente. Em 1996, parei definitivamente com todas as carnes. Depois me tornei ovolactovegetariana, mas já querendo virar vegana e foi o que aconteceu. Mas antes mesmo do veganismo eu já tinha uma preocupação e evitava consumir produtos testados em animais e era contra entretenimento com bichos.
Fonte: Vegazeta
Gratidão por estar conosco! Você acabou de ler uma matéria em defesa dos animais. São matérias como esta que formam consciência e novas atitudes. O jornalismo profissional e comprometido da ANDA é livre, autônomo, independente, gratuito e acessível a todos. Mas precisamos da contribuição, independentemente do valor, dos nossos leitores para dar continuidade a este imenso trabalho pelos animais e pelo planeta. DOE AGORA.