“E Eu, eis que estabeleço a Minha aliança convosco e com vossa descendência, depois de vós. E com toda alma viva que está convosco, com a ave, com o animal e com todo o animal selvagem da terra convosco, todos os que saíram da arca, todo animal da terra.” (Bereshit/Genesis 9:9-10)
Os seres humanos reunem-se em torno do alimento desde os mais longínquos tempos. São encontros que aproximam, identificam e expressam a tradição e cultura dos povos. Como bem observado pelo escritor Jonathan Safran Foer em seu livro Comer Animais: “Histórias sobre comida são histórias sobre nós mesmos – nossa história de vida e nossos valores. Na tradição judaica da minha família, aprendi que a comida serve a dois propósitos paralelos: alimenta e o ajuda a lembrar. Comer e contar histórias são duas coisas inseparáveis – a água salgada também são lágrimas; o mel não apenas tem sabor doce, mas faz com que pensemos em doçura; a matzá é o pão da nossa aflição.”
Da mesma forma, tenho saudosas recordações dos jantares e festas judaicas na casa de minha avó materna, de quem era grande admirador, especialmente por suas habilidades culinárias. Receitas feitas com amor e repletas de tradição: Gefilte fish, sopa de Kneidler, Matzo Brei, bolos, compotas e outros saborosos pratos que nos conectavam aos nossos antepassados. A família reunia-se em torno da mesa para celebrar e lembrar a história de nosso povo, passada de geração em geração.
Apesar de não seguir uma alimentação kasher, acreditava que estes alimentos mantivessem altos padrões de qualidade e higiene. Defini a minha linha de respeito às normas da kasherut, não consumindo carne de porco, aves de caça, anfíbios, crustáceos e moluscos. Criei, sob a minha ótica, uma escala aleatória de respeito a estas normas onde a ingestão de carne com leite e derivados e o consumo de carnes permitidas (mesmo que não kasher), eram “infrações menos graves” do que, por exemplo, o consumo de anfíbios e crustáceos. Foi-me ensinado que animais abatidos da maneira kasher sofriam menos e que sua carne era mais saudável e “pura” e estes conceitos permaneceram irrefutáveis por muito tempo.
Na minha experiência até então, comer era um ato inocente e ingerir carne algo natural. Jamais havia feito a conexão entre os animais e os nossos pratos. Os argumentos para a perpetuação do consumo de carne são justificados principalmente: pela crença de estarmos no topo da cadeia alimentar; por prazer gustativo; pelo mito da proteína; por antropocentrismo cultural e religioso e através da legitimação do consumo pelos governos. O ser humano acredita ser o único detentor de dignidade e, portanto, julga-se “superior”, dominando e classificando os demais animais como commodities.
Assim, mesmo sem compreender a filosofia do Vegetarianismo e sua dimensão ética, eu tinha preconceitos. Fazia uma leitura equivocada destas pessoas rotulando-as de: “alternativas”, “contracultura” ou “elevadas espiritualmente”. Além disso, julgava a dieta vegetariana pobre, restritiva e sem sabor. Estes estereótipos foram lentamente se extinguindo e abriram espaço para uma nova percepção.
Hoje há um crescente interesse pelo vegetarianismo por motivos diversos: saúde, meio ambiente, sofrimento animal, espiritualidade, filosofia de vida, ética e religião. Este fenômeno vem atingindo inclusive, as crianças, que tornam-se vegetarianas por estabelecerem a relação entre a carne e os animais.
Comer Animais
Segundo o relato bíblico, Adão e Eva teriam sido vegetarianos: “Eis que vos tenho dado toda erva que dá semente que está sobre a face de toda terra, e em toda árvore que há fruto de árvore que dê semente; a vós será para comer.” (Bereshit/Genesis 1:29). Até então, o ser humano tinha a clara missão de cuidar do mundo e estava acima da cadeia alimentar. Alguns comentaristas do Tanach sugerem que num mundo perfeito, com a vinda do Messias, os seres humanos retornarão ao vegetarianismo.
O consumo de animais só foi permitido por Deus a Noé e seus descendentes após o Dilúvio: “Tudo que se move vos servirá de alimento, como toda verdura e erva que já vos dei.” (Bereshit/Genesis 9:3). De acordo com alguns estudiosos a permissão do consumo de carne justificou-se por: necessidades fisiológicas; queda do homem em nível moral e espiritual, inserindo-o no topo da cadeia alimentar; e a necessidade de sua diferenciação e hegemonia sobre o reino animal.
Segundo a corrente ortodoxa os animais foram criados apenas para servir ao homem. Defendem uma hierarquia da criação antropocêntrica, com o homem no pináculo e justificam a supremacia da espécie baseados na interpretação literal destes textos: “Façamos homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre o peixe do mar, e sobre a ave dos céus, sobre o animal e em toda a terra, e sobre todo réptil que se arraste na terra!” (Bereshit/Genesis 1:26). A manifestação deste pensamento é chamada de Especismo, que por analogia ao racismo, atribui valores ou direitos diferentes a seres pelo mero fato de pertencerem a uma determinada espécie.
Logo, a estes animais é negado o valor dignidade, somente estendido aos indivíduos humanos. São rebaixados a seres irracionais e que seguem instintos, enquanto apenas humanos têm razão e sentimentos, pois foram criados à imagem e semelhança de Deus. A utilização do termo animais para designar animais não humanos, exemplifica a negação da própria condição de animais e distancia o ser humano de outros seres dotados de senciência.
Decerto, uma análise mais apurada revela que animais têm sentimentos e suas vidas não devem ser resumidas a servir aos interesses dos seres humanos. Embora comuniquem-se através de sons e sinais corporais, e sejam capazes de expressar prazer, dor, alegria e medo, seus direitos lhes são negados, tais como vida, liberdade e integridade. Se lhes fosse dado o dom da comunicação, tal qual os humanos praticam, certamente optariam pela manutenção de sua integridade física a serem transformados em bife kasher, hambúrgueres ou sabonetes.
Por outro lado, a Torá enfatiza princípios “éticos” na relação entre seres humanos e animais, sendo o principal, Tzaar Baalei Chayim, ou seja, a prevenção da crueldade com animais (Devarim/Deuteronômio 22:4). Na época, foram instituídas normas de abate para a alimentação (shechitá), foi proibida a caça, e foram criadas regras visando o bem-estar e a diminuição do sofrimento animal.
Dentro destes princípios, foi concedido um dia de descanso aos animais no Shabat (Shemot/Êxodo 20:10), foi proibido o abate de uma vaca e seu bezerro no mesmo dia (Vaikrá/Levítico 22:28) e também foi proibida a retirada dos filhotes de uma ave sem espantá-la (Devarim/ Deuteronômio 22:7). Todos os exemplos citados constituem uma visão bem-estarista da utilização de animais, onde segue-se a lógica de que em caso de serem explorados, que sejam da maneira mais nobre e justa. Mas cabe aqui a seguinte pergunta: Será que é possível explorar de forma ética?
Regulamentar a maneira pela qual animais são explorados e mortos com “compaixão e misericórdia” abre um precedente para a continuidade de sua exploração. Acredita-se que se realizado de maneira correta, o ser humano tem este direito. O próprio abate kasher, que se mantém fiel às tradições, é considerado por muitos defasado e cruel, se comparado a métodos mais modernos e menos traumáticos para os animais. Mas, mesmo que se criem formas de abate mais “humanitárias”, a questão não é desenvolver um método mais eficiente, mas sim refletir por que o homem julga ter esta prerrogativa.
Certamente, muitos acreditam estar escusados de questionamentos morais ao consumir a carne de um animal abatido segundo os preceitos da kasherut. Porém, como o filósofo e poeta norte americano do século XIX, Ralph Waldo Emerson adverte: “Acabastes de jantar e, por mais escrupulosamente que escondais o matadouro na agradável distância de milhas, há cumplicidade.”
A preservação dos valores judaicos deveria contemplar novos questionamentos morais, bem como a necessidade do questionamento ético, ao reconhecer as mudanças de paradigmas inerentes à evolução humana. O apego a certas tradições expõe a incoerência dos seres humanos, que por conveniência, optam em seguir de maneira seletiva apenas alguns destes mandamentos, seja pela visão antropocêntrica estabelecida, por prazer gustativo ou indiferença. Mesmo com as visões contraditórias da Torá em relação aos animais, prevalece a interpretação de superioridade dos seres humanos. Alguns exemplos de leis e tradições não atuais, que hoje não estão mais em vigor: Filho rebelde e contumaz (Devarim/Deuteronômio 21:18-21) e Adultério (Devarim/Deuteronômio 22:22-25), ambos penalizados no passado com apedrejamento e morte.
Os sacrifícios de animais eram habituais no período do Beit Hamikdash. Este ritual foi abolido após a destruição do segundo Templo, e foi substituído pelas rezas. Houve, portanto, uma evolução moral, e a liturgia supriu esta prática. Se o Templo fosse reconstruído, os sacrifícios provavelmente não seriam retomados. Este pode ser um indicador para uma nova relação com os animais hoje considerados alimento, e o caminho para uma evolução ética e espiritual.
Para a maioria, a ética engloba apenas as relações entre seres humanos, mas a inclusão de outras espécies é oportuna para a ampliação das fronteiras de consideração moral, ou seja, o reconhecimento que estes seres possuem status moral e que não podem ser ignorados ou tratados aleatoriamente, pois seus direitos morais mais básicos estarão sendo violados. Ao tornarem-se insensíveis à vida dos animais, humanos dessensibilizam-se nas próprias relações humanas. Estabelecer a relação entre seres sencientes com o conceito de respeito ao próximo torna possível a consideração e a autogerência de suas vidas, não como propriedade, mas como indivíduos. Se estendido neste contexto ao princípio de “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Vaikrá/Levítico, 19:18), será um grande avanço do ponto de vista ético e o mandamento “Não matarás” estará sendo cumprido.
Ensinamentos Judaicos para um mundo sustentável
A religião judaica considera os seres humanos os guardiões do planeta Terra: “E o eterno Deus tomou o homem e o pôs no jardim do Éden para cultivar e guardá-lo.” (Bereshit/Genesis 2:15). Os ensinamentos da Torá são pautados numa conduta de compaixão e justiça, reverência à Deus, respeito a vida, manutenção da saúde pessoal e o cuidado com o meio ambiente.
A poluição gerada pelo “progresso” está danificando o planeta de maneira irreversível e violando o preceito judaico de proteger e preservar o meio-ambiente. O consumismo desenfreado terá sérias implicações ambientais para as futuras gerações. Resgatar a reverência e respeito pelos coabitantes do planeta é imperativo, sejam eles do reino animal, sejam do reino vegetal.
A produção industrial de animais é hoje o principal responsável pela destruição ambiental da Terra. Quase um terço das terras aráveis do planeta, inclusive grandes partes da Amazônia e do Cerrado, foram desmatadas e são usadas para criar animais para consumo humano e produzir grãos para alimentá-los. A água, recurso natural essencial à sobrevivência de todas as espécies, é desperdiçada de forma inconsequente. A alimentação baseada no consumo de carne é comprovadamente mais devastadora e devoradora de recursos do que uma alimentação vegetariana estrita.
Além das questões ambientais, estudos recentes relacionam o consumo de produtos de origem animal com diversas doenças, entre as quais: obesidade, câncer, diabetes e doenças cardiovasculares. Cuidar da saúde é uma mitsvá e há crescente conscientização do impacto da alimentação no bem estar, qualidade de vida e longevidade.
Enfim, viver uma vida segundo os preceitos da kasherut não se limita aos hábitos alimentares. A alimentação é parte de um sistema, que leva em conta o relacionamento com o meio ambiente e os cuidados com a saúde pessoal. Não cuidar do planeta, implica que a Kasherut não esta sendo mantida num sentido mais amplo, moral e espiritual.
Celebrando a vida, com liberdade e compaixão
Inegavelmente, seres humanos e animais são diferentes, sendo evidente que animais não poderiam usufruir de direitos como a liberdade de expressão e pensamento da mesma maneira que os humanos, nem tampouco ter perante a lei os mesmos direitos constitucionais. Mas para que haja uma ética ampliada, seus interesses e direitos básicos devem ser garantidos, como viver e escolher o que fazer de sua liberdade, bem como ter sua integridade não ameaçada.
Estudos científicos sobre o comportamento e as emoções dos animais, comprovam a inteligência e o nível de complexidade de seus sistemas nervosos. A mente animal ainda é um mistério e sua consciência fascina tanto a pesquisadores quanto a tutores de animais de estimação, que dispensam estudos complexos para atestar a sensibilidade de seus companheiros. Mas apesar das similaridades, o ser humano prefere ressaltar a inferioridade dos indivíduos não-humanos, para justificar o seu domínio.
É certo que, os seres humanos são dotados de uma inteligência que lhes permite fazer escolhas, planejar e ter noção de futuro. O vegetarianismo ético e o direito dos animais fazem parte de um movimento cultural que envolve questionamentos morais e desafios atuais à sobrevivência humana: “Ser vegetariano é discordar: discordar do curso que as coisas tomaram hoje. Fome, crueldade, desperdício, guerras – precisamos nos posicionar contra essas coisas. O vegetarianismo é a minha forma de me posicionar.” (Isaac Bashevis Singer – Escritor, Prêmio Nobel de Literatura).
Em síntese, a sabedoria da tradição judaica pode auxiliar o homem a curar e restaurar o planeta, conduzindo-o para o Tikun Olam. Reparar o planeta é também fazer justiça e pôr em prática a importante mitzvá da Tzedaká. Estender o conceito de justiça social aos animais através da compaixão por todas as criaturas de Deus é pensar num mundo sustentável e justo, onde se privilegia o coletivo e consideram-se os interesses de outras espécies sencientes. O Judaísmo e o vegetarianismo ético celebram a vida, a liberdade e caminham juntos em harmonia com os ensinamentos da Torá. Na próxima vez que sentar-se à mesa, convido-o(a) à reflexão.
Artigo publicado originalmente na revista Devarim (Associação Israelita do Rio de Janeiro – ARI), Rio de Janeiro, Brasil na edição de Agosto de 2013.
Bibliografia
1. David Gorodovits e Jairo Fridlin – Bíblia Hebraica. São Paulo: Editora Sêfer, 2006.
2. Jonathan Safran Foer – Comer Animais. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009.
3. http://pt.wikiquote.org/wiki/Ralph_Waldo_Emerson
Ralph Waldo Emerson – The Conduct of Life. Boston: Editora: Ticknor and Fields, 1863. Citado na página 5.
4. http://pt.wikiquote.org/wiki/Isaac_Bashevis_Singer
David Gabbe – Why do vegetarians eat like that? Everything you wanted to know (and some things you didn’t) about vegetarianism and some things you didn’t about vegetarianism. Editora: Prime Imprints, 1994. Citado na página XII.
5. http://jewishveg.com/asacredduty
Lionel Friedberg – A Sacred Duty: Applying Jewish Values to Help Heal the World. Jewish Vegetarians of North America (JVNA).
Mini currículo
Daniel Biron é chef de cozinha vegano formado pela Natural Gourmet Institute, já trabalhou nos restaurantes veganos Candle Cafe e Candle 79, em Nova York e no restaurante Gentle Gourmet Café, em Paris. Possui receitas publicadas na Revista dos Vegetarianos e uma coluna no site da ANDA (Agência de Notícias de Direitos Animais).