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A vaca sagrada de DeRose ou o bem-estarismo Zen Noção

22 de janeiro de 2017
13 min. de leitura
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Foto: Divulgação

No dia 15 de janeiro de 2017, o conhecido professor de Yôga, DeRose, publicou em sua página no facebook um texto intitulado: “O QUE É QUE VEGETARIANO COME?”. Texto que tem como fonte sua obra “Método de Boa Alimentação”. Na publicação lemos:

“Feijões de todos os tipos, sem bacon. Arroz. Farofas de tudo o que a sua imaginação permitir. Ervilhas, grão de bico, lentilhas. Batatas em todas as suas variedades, Cenouras e todos os demais legumes. Omeletes de tudo o que conseguir inventar. Todos os tipos de ovos. Sopas, as mais variadas, sem caldo de carne. Pães. Pão de queijo, pamonha de queijo, tutu de feijão, Curau, queijos e burratas, Iogurtes e coalhadas, tortas, tartines, quiches, pizzas, calzones, nhoques, espaguete, lasanha, fettuccine e outras massas. Risotos, bruschettas, polenta, ratatouille. Crepes franceses de queijo, gratin dauphinois, aligot, fondue de queijo, cuscus, homus, babaganuche, faláfel, tabule. Arroz com lentilha, arroz com aletria. Kibe de queijo sem carne. Esfiha de queijo. Acarajé, vatapá, obviamente, sem carne de camarão. Empadas, rissoles. Bolinhos de arroz. Bolinhas de queijo à milanesa. Croquetes de legumes. Pasteis, strogonoff. Empanadas argentinas, sanduíches de miga argentinos, sanduíches os mais variados. Spatzle (alemão). Praticamente todos os pratos hindus. Todos os doces de todos os países, menos os que levarem gelatina, já que gelatina é feita dos restos de sebo.

E, é claro, nada de saladas, nem soja, nem tofú, nem nenhuma dessas bufonarias estereotipadas.

[ Atenção: vegetariano e vegano são sistemas diferentes. Os veganos, não consomem laticínios, nem ovos, nem mel, nem nada que seja do reino animal. Mas não é o nosso caso. Sou vegetariano há 56 anos (aliás, prefiro me classificar como “não-carnívoro”). Minhas cachorras da raça weimaraner, que são cães de grande porte, nunca comeram carne nem ração que tivesse carne. Comem a minha comida. Cresceram mais que os cães da sua raça. Leia a história completa no meu livro “Anjos Peludos, Método para Educação de Cães”.]

Em tempo: o que se chama de vegetarianismo é o sistema que veio da Índia e que se usa lá com esse nome. Algumas pessoas no Ocidente, para ser mais específicas, resolveram chamar de ovolactovegarianismo.

O primeiro ponto que salta aos olhos é a exclusão da carne. O foco da dieta vegetariana segundo o professor seria isso, abolir a carne, permitindo leite e todos os seus derivados (queijos, iogurtes, coalhadas…), ovos (de todos os tipos) e mel. Gelatina também não pode por ela ser um subproduto da indústria da carne bovina. O problema é não matar a vaca sagrada. Sanduiches pode, “os mais variados”. Isso inclui sanduiche de peito de peru? “Farofas de tudo que a sua imaginação permitir”. Isso inclui farofa de formigas e outros insetos? “Praticamente todos os pratos hindus”. Isso inclui Biryani, Butter Chicken, Tandoori Chicken, Tikka Chicken, Kebab, Vindaloo e o Rogan Josh? Dos animais aquáticos, só o camarão se livrou da cínica gula bem-estarista.
O segundo ponto que chama atenção é a afirmação de que vegetarianos não comem “saladas, nem soja, nem tofu nem nenhuma dessas bufonarias estereotipadas”. O renomado professor não explica o motivo dos vegetarianos não consumirem essas “bufonarias estereotipadas”. Qual o problema com a salada? Qual o problema com o tofu?
O terceiro ponto é que segundo o professor, os veganos não comem nada de origem animal, o que não é o caso dele, ou melhor, ele diz, “não é o nosso caso”, no plural. Nesse “nosso” estaria incluso todos os seguidores do ilustríssimo método DeRose? Estaria ele falando em nome de todos os adeptos de sua filosofia de vida bem-estarista? Será que nenhum dos adeptos de seu método vive o modo de vida vegano abolicionista? DeRose tem mais de meio século de vivência, estudo e divulgação de seu modo de vida, ou seja, seu método. Nesses últimos 56 anos de vida que ele não come a vaca sagrada não teve tempo para estudar de forma séria e honesta todos os danos nefastos que a produção de leite e laticínios produz as vacas e aos seus filhotes? Isso sem tocar no impacto ambiental global e na questão médico-nutricional (contribuindo com uma infinidade de doenças nos humanos). É interessante notar que DeRose busca a origem do vegetarianismo na Índia, algo muito cômodo, pois se lá definem que vegetariano é quem não come a vaca sagrada, mas come de todo o resto do reino animal, então, está tudo certo. Ou seja, ele é um “não-carnívoro” ou o que o ocidente definiu como ovolactovegetariano. É difícil acreditar que uma pessoa tão letrada não saiba que ovolactovegetarianismo é uma contradição em termos, que é um termo criado no século XIX pela Sociedade Vegetariana britânica para angariar mais adeptos para sua entidade.
Devido alguns comentários em sua publicação questionando essa definição do que o vegetariano come, o renomado professor DeRose postou como resposta um outro texto, chamado, “PODEMOS CONTINUAR USANDO LÁCTEOS E OVOS?”, extraído do mesmo livro, “Método de Boa Alimentação”. Onde diz:

“Todos somos contra os maus-tratos perpetrados pelos (des)humanos para explorar os pobres irmãos de quatro e de duas patas, para industrializar seu leite e seus ovos. Por isso, recomendamos utilizar o mínimo possível de laticínios e de ovos. Mas também por esse motivo, procuramos só utilizar marcas de ovos caipiras orgânicos, as quais garantem que suas galinhas ciscam livremente. Pela mesma razão, buscamos utilizar marcas de leite as quais nos prometem que suas vaquinhas pastam livremente e são bem tratadas. No Brasil, conhecemos apenas a marca Leitíssimo.

Por outro lado, em toda a história da humanidade, sempre tivemos vacas, ovelhas, cabras, galinhas e outras aves que foram cuidadas como animais domésticos, bem tratados, vaquinhas que até recebiam nomes como “Mimosa”. Na minha infância eu tive uma galinha branca, chamada Odalisca, que me dava todos os dias um ovo. Ela andava solta pela nossa casa e brincava comigo como se fosse um cachorro, quando eu tinha cinco anos de idade.

Mais ou menos a partir da década de 1960, dependendo do país, indústrias de alimentos começaram a tratar os animais como objetos, mantendo-os confinados e cometendo uma série de atrocidades que são do conhecimento de qualquer pessoa de bem. Essa fase já está passando, pois a opinião pública está se mobilizando cada vez mais contra a desumanidade. Já há muitas leis de proteção dos animais e outras mais estão surgindo. Brevemente, voltaremos a contar com um tratamento digno dos bichos.

Na Índia, por exemplo, a vaca é sagrada. Em uma das minhas muitas viagens àquele país, perguntei por que a vaca era considerada como tal. Um indiano me respondeu: “Ela alimenta nossos filhos com o seu leite. Produz enormes quantidades de esterco que fertiliza os campos. Trabalha para nós a vida toda, puxando o arado que prepara a terra para o plantio. Depois, um dia, morre e, mesmo depois de morta nos ajuda, pois nos dá seu couro, seus ossos, seus chifres. Sim, ela é um animal sagrado, cuja existência louvamos.”

A questão não é ficarmos desnutridos ou desajustados socialmente por não consumir laticínios ou ovos. A questão é consumir menos laticínios, menos ovos e escolher bons fornecedores. O simples fato de não comermos carnes de nenhuma espécie já constitui protesto e colaboração suficiente.

De resto, temos que eleger políticos que já tenham um histórico de leis para a proteção dos animais, como é o caso do ambientalista Deputado Ricardo Trípoli. Tratemos de ser menos fanáticos e mais efetivos.

Quando o professor diz que “todos somos contra os maus-tratos”, novamente ele fala no plural, o que nos traz de volta a indagação feita acima “Estaria ele falando em nome de todos os adeptos de sua filosofia de vida bem-estarista?” Como todo bem-estarista, DeRose se opõe à produção industrial de laticínios e ovos. Assim como o faz outro renomado escritor, Jonathan Foer, em Comer Animais. Ambos os autores indicam ovos de galinhas criadas “soltas” e de vacas que vivem em idílicas fazendas. DeRose indica utilizar marcas de leite de produtores que “prometem” tratar bem suas propriedades (as vacas sagradas). Fica difícil acreditar que uma pessoa com o renome que o senhor DeRose tem realmente acredita no que está falando. DeRose não se importa nem um pouco com o status de produto, de coisa, de propriedade dado secularmente aos animais. Como todo bem-estarista, ele se preocupa com a maneira que usamos/tratamos os animais. Maus-tratos para o professor é produção industrial. Sua indicação é a marca Leitíssimo, que além de cuidar das vacas sagradas de forma tão bondosa a,

“fazenda possui escola bilingue para educação de crianças, programas de educação de jovens e adultos (EJA), programa voluntário de aulas extra-curriculares de inglês e treinamentos in loco no gerenciamento de pastagem, gerenciamento de animais, reprodução bovina e outras competências agrícolas”.

Na página da marca encontramos o argumento que DeRose acredita: “A marca Leitíssimo simboliza leite saudável e agricultura sustentável feita por pessoas que amam a terra e os animais”. Não é maravilhoso, como DeRose não acreditaria? Le meilleur des mondes possibles.
DeRose recorre a historia da utilização humana dos animais como argumento em defesa do uso que ele não vê problema em ser perpetuado. Chega a ser pueril a fala do professor dizendo que nosso uso dos animais é bondoso, pois até nome damos a eles. Nomeamos os animais, isso nos dá o direito de usá-los? Assim como é senso comum de galactomanos dizerem que a vaca sagrada DÁ o leite pra eles, DeRose teve uma galinha na infância que também DAVA o ovo pra ele. Chega ser ofensivo a racionalidade que todos nos buscamos fazer uso, ouvir um professor dizer umas coisas dessas e com convicção.
O conhecimento histórico do professor parece ser bem limitado, primeiro não foi a partir da década de 1960, que os animais não humanos passaram a ser produzidos industrialmente, mas a partir da Segunda Guerra Mundial e o tratá-los como objetos, vem desde a antiguidade. Para ilustrar, na Era Moderna, a convicção de que os animais não humanos eram coisas, objetos desprovidos de alma-linguagem-racionalidade, levou a explosão de pesquisas anatômicas (vivissecção) que perduram até hoje na maioria das Universidades. Segundo, o que o professor quer dizer com “pessoa de bem”? Bom, como sabemos que as atrocidades e barbáries cometidas contra os animais não humanos dentro da produção industrial são de conhecimento de um número restrito da população – como os veganos, os vegetarianos e os cínicos bem-estaristas –, somos levados a concluir que só eles são “pessoas de bem”? Não, é lógico que não. A conclusão é uma falácia. Nem todo vegano é uma “pessoa de bem”, muito menos os bem-estaristas. Pois estes últimos fazem o mal deliberadamente. Terceiro, a opinião pública até o momento tem contribuído muito mais na propagação de campanhas bem-estaristas, o que gera as leis bem-estaristas de manutenção do status de propriedade dado aos animais. A preocupação de DeRose é clara, o retorno a uma época em que os animais eram tratados dignamente. Mas em que momento da historia isso aconteceu? É possível ver dignidade num objeto, numa coisa? Para DeRose, as leis protetivas que desde o século XVI só legitimaram o uso dos animais não humanos e que estão sendo feitas aos montes atualmente é um indicativo de que a “fase” da reificação industrial dos animais está por findar.
A definição de vaca sagrada que DeRose usa, advinda de um indiano que ele ouviu em uma das muitas viagens que fez a Índia é assustadoramente especista. Fica difícil encontrar outra definição mais reificadora que essa. Ela trabalha pra nós a vida toda, tracionando/arando, tendo uma cria atrás da outra (caso contrário como ela DARIA o leite para alimentar os filhos dos humanos) e quando morre nos DÁ (mesmo morta ela DÁ) seu couro, ossos e chifres. Como não louvar a existência dessa COISA SAGRADA?
A conclusão de DeRose é a seguinte, não consumir laticínios e ovos nos leva a desnutrição e a sermos socialmente desajustados. Quem adota uma dieta vegetariana, ou seja, uma dieta livre de qualquer proteína animalizada – carnes, leite e derivados, mel, ovos, cochonilha e gelatina – para o renomado professor de Yôga, é uma pessoa socialmente desajustada e, por tabela, desnutrida. Para ele como um bom bem-estarista a questão é diminuir o consumo de industrializados e consumir de fazendas “felizes”, sustentáveis, provavelmente com selo verde, de bons fornecedores. Bons fornecedores são aqueles que como ele, não veem os animais como indivíduos sencientes, mas como produtos que devem ser bem cuidados para não desagradar o consumidor. Bons fornecedores são aqueles que “amam” a terra e os animais. Como todo bem-estarista, o argumento de que deixar de comer carne já é fazer muito pelos animais, não poderia deixar de aparecer. Não comer carne é protesto contra o quê, se a barbárie na produção de ovos e laticínios é mil vezes pior? Consumir leite e laticínios é financiar a cruel indústria de vitelos (baby beef).
Para DeRose, além de desajustados sociais e desnutridos, os adeptos de uma dieta vegetariana (livre de proteína animalizada), são fanáticos. Nenhuma novidade para quem está na luta pelos direitos animais há tempos. Tom Regan nos lembra em sua obra Empty Cages (Jaulas vazias) que a estratégia dos exploradores dos animais em parceria com as mídias, é classificar os bem-estaristas de bons moços, gente de bem; e os defensores dos direitos animais, de “extremistas e desajustados sociais”. A fala de DeRose representa o que Tom Regan chama em Defending Animal Rights (p.29) de nova retórica, retórica incendiária, aquela que chama os defensores dos direitos animais de “fanáticos”, “extremistas”, e “radicais”. Para DeRose, precisamos ser efetivos, e isso significa continuar a explorar vacas e galinhas (e não menos as abelhas) de forma humanitária e votar em políticos ambientalistas que usam a causa animal como plataforma política.
Por fim, concluo respondendo às duas perguntas títulos dos textos do renomado professor DeRose. O que é que vegetariano come? Então, caro professor, vegetariano come exclusivamente alimentos de origem vegetal: Cereais, grãos, verduras, legumes, frutas, sementes e nozes. Embora cogumelos e leveduras não sejam taxonomicamente vegetais, eles são biológica e popularmente associados a vegetais e podem ser consumidos por quem adota a dieta vegetariana. Mas o senhor sabe disso, tanto sabe que diz expressamente que há 56 anos não come a carne da vaca sagrada, por isso, “não-carnívoro”. Mas será que não come outras carnes? Bom, mas tanto faz comer outras carnes diante dessa defesa assombrosa do bem-estarismo no trato com a própria vaca sagrada que DÁ leite e da galinha que DÁ ovos de livre e espontânea vontade.
Podemos continuar usando lácteos e ovos? Então, caro professor, essa pergunta vindo de quem legitima a exploração animal como o senhor soa demasiadamente cínica e de má-fé. Se o senhor e os adeptos do seu método acreditam que a vida de seres sencientes de outras espécies não tem valor em si, que são meros objetos que podem ser bem cuidados para continuarem saciando suas gulas especistas, é obvio que a resposta será um sim. Para a resposta ser um não, é preciso ter interesse em agir eticamente nas relações com os outros, e dentre esses outros, estão as pessoas não humanas.
Professor DeRose, mais de meio século fazendo papel de Humpty Dumpty, com seu discurso bem-estarista Zen Noção que é um exemplo claro de “dito desconexo”.

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