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A ursa Danizia e a nossa guerra contra a natureza

16 de novembro de 2014
6 min. de leitura
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É verdade que minha coluna se chama Boa Notícia, mas está difícil encontrar uma história boa quando se trata de animais, viu? Ao contrário, notícias sobre injustiças contra eles não faltam nos meio de comunicação de cada dia. Mas algumas injustiças são tão cruéis, que inevitavelmente acabam causando mais comoção do que outras. Como aquela história da ursa Danizia.
Depois de um bate-boca à la italiana, que durou mais de um mês, em setembro de 2014, Danizia foi assassinada a mando dos governantes da região de Trento (Itália). Eles dizem que ela não resistiu ao sonífero que foi disparado em sua direção, quando veterinários insistiam em fazer exames no animal, mas ninguém da opinião pública acreditou e a coisa ficou por isso mesmo. O motivo de tamanha covardia: Danizia atacou, mas não matou, um coletor de cogumelos que se aproximou demais dos seus filhotes, hoje órfãos. O coletor se fez de vítima e disse que só queria ver os filhotes de perto. Os animalistas o mandaram para aquele lugar e trouxeram à tona um detalhe importante: a ursa de 19 anos foi levada para a cidade de Trentino, em 2000, por causa de um projeto de repovoamento do grande bosque da cidade.
Esse fato é análogo à situação dos bois no Brasil. As primeiras cabeças de gado chegaram em terras tupiniquins em 1534 e, os da raça Nelore, rebanho predominante nos pastos abertos diariamente na Amazônia, só no final do século 18 – esses dados você encontra na internet em sites feitos por especialistas em pecuária. Mas, como hoje a população de boi no Brasil é maior do que aquela de pessoas (de acordo com o IBGE, são 209 milhões de bovinos e 202,7 milhões de habitantes), muita gente adora cutucar os vegetarianos questionando o que nós faríamos com tanto boi se ninguém mais consumisse suas carnes – talvez os conceitos de reprodução induzida e demanda de mercado não estejam muito claros para estas pessoas que querem a qualquer custo justificar seus churrascos. Bom, não sei o que faríamos com todos esses bois se todo mundo decidisse parar de comer carne, mas uma coisa é certa: se não há demanda, não tem porque continuar multiplicando a “mercadoria”. Outra coisa também é certa: não somos capazes de controlar a natureza.
Colocou uma ursa em um habitat que não era o seu? Vai ter que lidar com as consequências disso, como ter um animal selvagem em um bosque frequentado por coletores de cogumelos enxeridos. Decidiu por conta própria entupir sua barriga de carne e seu coração de gordura para o bel prazer de poucos empresários, que enchem os bolsos às custas de desmatamento, trabalho escravo e venda de carne? Lide com as consequências desastrosas disso também. Ou você acha que comer bastante carne faz bem pra sua saúde e que a Amazônia está muito longe para afetar sua vida? Qualquer que seja a sua opinião, o fato é que Danizias, bois, tigres, leões, tubarões e qualquer outro animal que apareça nos tabloides como a causa da morte de alguém ou do desmate da floresta não são os a vilões dessa história, mas sim as vítimas de uma arrogância humana sem fim.
Está na hora de sermos mais humilde e darmos um basta nesses erros que, mais cedo ou mais tarde, se virarão contra nós mesmos. Parecemos mais sanguessugas enlouquecidas do que seres humanos pensantes. Aliás, às vezes as injustiças que cometemos (contra ecossistemas, povos e animais) são tão grandes que acaba sendo inevitável se questionar se a nossa raça humana pensa mesmo. E no que exatamente está pensando? É essa a pergunta que o jornalista George Monbiot faz em seu texto “A nossa absurda guerra contra a natureza”, publicado originalmente no jornal The Guardian. Por causa da comoção em torno à história de Danizia, o artigo saiu na revista italiana Internazionale, de onde peguei alguns longos trechos para traduzir em português. A leitura vale a pena.
“A nossa absurda guerra contra a natureza”, por George Monbiot, The Guardian
Chegamos a um ponto em que qualquer um que seja capaz de refletir deveria parar e se perguntar o que estamos fazendo. Se nem a notícia de que nos últimos 40 anos, o mundo perdeu mais da metade dos vertebrados (mamíferos, pássaros, repteis, anfíbios e peixes) pode nos fazer entender que o nosso estilo de vida é errado, é difícil imaginar o que poderia nos fazer conseguir. Quem pode acreditar que um sistema social e econômico com esses efeitos seja saudável? Quem, de frente a uma perda desse tipo, pode defini-lo progresso?
Por honestidade deve ser dito que a era moderna é só a perseguição de uma tendência que dura há dois milhões de anos. A perda de grande parte da megafauna africana parece ter coincidido com a passagem da alimentação carnívora concluída pelos descendentes dos seres humanos. Pouco a pouco que fomos conquistando outros continentes, a megafauna deles também desapareceu quase que imediatamente. Talvez a datação mais confiável da chegada dos seres humanos em um lugar, é justamente o desaparecimento improviso dos grandes animais. Desde então, entramos na cadeia alimentar eliminando os nossos predadores menores, os herbívoros de dimensão mediana e, agora, com a destruição do habitat e da caça, estamos cancelando a flora e a fauna de qualquer tipo.
Porém, a velocidade destrutiva de hoje é inédita. (…) Para muitos, a culpa é da população humana e não há dúvidas de que isso tenha contribuído *(para a extinção de numerosas espécies vertebradas)*. Mas existem outros dois fatores determinantes: o crescimento do consumo e a amplificação deste causada pela tecnologia. A cada ano, novas técnicas de pesca, de extração mineral e de processamento das árvores. Declaramos guerra à natureza, uma guerra sempre mais assimétrica. Por que estamos em guerra? Grande parte do consumo dos países ricos, que com as importações estão entre os primeiros responsáveis por esta destruição, não tem nenhuma relação com as necessidades humanas.
O que mais me impressiona é justamente a desproporção entre as perdas e os ganhos: o crescimento econômico de um país as quais necessidades primárias e secundárias já foram preenchidas equivale à criação de coisas sempre mais inúteis para satisfazer os desejos mais vagos. Uma das características do crescente crescimento no mundo rico é o número exíguo de pessoas que obtém uma vantagem. Quase todos os ganhos terminam nas mãos de poucos: de acordo com um estudo da universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, o 1% das pessoas mais ricas fica com 93% do aumento dos lucros produzidos pelo crescimento. Mesmo com taxa de crescimento de 2%, 3% ou mais, as condições de trabalho da grande maioria das pessoas continuam a piorar. As horas de trabalho aumentam, os salários ficam estagnados ou diminuem, as tarefas se tornam sempre mais monótonas, estressantes ou difíceis, os serviços pioram e sempre há menos dinheiro para os serviços públicos essenciais. A qual propósito serve e a quem serve este crescimento?
Serve para quem gerencia ou possui bancos, sociedades mineradoras, agências publicitárias, sociedade de lobbying, fábricas de armas, imóveis, terrenos, contas offshore. Nós somos induzidos a considerá-lo*(o crescimento) *necessário e auspício de um sistema de marketing tão intensivo e rampante que consegue fazer uma lavagem cerebral em nós.
Assim a grande erosão global avança consumindo a Terra, cancelando tudo aquilo que existe de mais singular e peculiar, seja na cultura humana seja na natureza, nos reduzindo a autômatos substituíveis em uma força de trabalho global homogênea, transformando inexoravelmente as riquezas do mundo natural em uma monocultura anônima. Não é o momento de dizer basta?
Não é hora de usar os extraordinários conhecimentos e competências acumuladas para mudar o modo de nos organizar, para contestar e destruir as tendências que determinaram a nossa relação com o planeta nos últimos dois milhões de anos e agora destroem aquilo que resta a uma velocidade surpreendente? Não é o momento de colocar em discussão a inevitabilidade do crescimento infinito no planeta finito? Se não agora, quando?

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