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ARTIGO

Uma ode à antropomorfização dos animais

24 de março de 2024
Vitória Nunes
5 min. de leitura
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Foto: Vitória Nunes

Acidentes de carro ou de avião, ser levado pela correnteza de um mar desconhecido e se afogar, sofrer um assalto, cair e bater a cabeça na calçada, ter uma lesão fazendo um exercício na academia, comer algo na padaria da esquina e contrair uma intoxicação alimentar… A lista é extensa: corremos muitos riscos em nossas vidas. Pensando assim, dá até medo. E se alguém te oferecesse proteção?

Se alguém usasse isso como justificativa para manter você isolado de tudo e de todos num apartamento sem saída, de hoje até o último dos seus dias? Pois é. Dá medo também. Eu penso nisso toda vez que ouço alguém dizer: “…quanto ‘mimimi’, o animal tem comida e conforto todo dia, está muito melhor do que na natureza, correndo de predadores”.

Impedir uma pessoa de ter a chance de viver as coisas boas da vida, muitas vezes, é o outro lado da mesma moeda de querer protegê-la de todo e qualquer risco. “Defender alguém da própria liberdade” é impedir uma pessoa de sair na rua e ver a luz do Sol sendo refletida nas janelas dos prédios à tardinha, de receber o vento fresco no rosto que vem dos jardins das casas à noite, de ouvir os barulhos sutis das folhas das árvores balançando ao vento, de ter a surpresa de encontrar com um conhecido querido dobrando a esquina, de tomar um cappuccino numa padaria cheirosa no meio da semana para sair um pouco da rotina, de mergulhar no mar verde azulado, de fazer uma viagem de carro admirando a estrada ou de avião admirando as nuvens…

Correr risco faz parte da vida. E isso não faz da vida uma vida ruim nem boa. Isso faz da vida, a vida. Correr risco faz parte do que é viver. Por que a gente pensa que para aquele único animal selvagem, aquela capivara, aquele macaco-prego, aquele papagaio, isso é ou tem que ser diferente?

Se eu, mulher, adulta, dona de mim, do meu corpo e do meu dinheiro, quiser sair à noite pra dançar; se eu quiser escolher o que vou comer em cada uma das minhas refeições, o que vou vestir ou deixar de vestir, com quem eu vou andar e para onde vou viajar nas férias – sozinha ou não –, quem é que vai me dizer que eu não devo ou que eu não posso? Quem tem o direito de me impedir?

A diferença é que o animal não fala, não pede, não pode reclamar. E é aí que nos aproveitamos do seu silêncio e decidimos tudo isso por ele – você entende o quanto isso é errado; o quanto isso é abuso de poder? E o mais intrigante: o quanto essa é uma postura com a qual a gente se vê tendo que lutar contra dentro da nossa própria sociedade humana?

Uma das frases mais acertadas que eu já ouvi falava sobre dar a um animal a dignidade da morte em liberdade, se a morte for o caso. Claro que não estou me referindo, e nem de longe defendendo, que animais com mutilações ou deformidades (muitas vezes causadas pela proximidade conosco, humanos) sejam reintroduzidos na natureza arbitrariamente. Mas nem por isso acho certo dizer que a única solução é o animal continuar sob o controle e a posse de alguém que não é um profissional da área ambiental ou de medicina veterinária. Ainda por cima sozinho e sem outro da mesma espécie.

Antropomorfização é tão ruim quanto parece?

Eu só acho engraçado perceber o quanto buscamos evitar a tal da antropomorfização dos animais; temos medo de estender a eles os nossos “sentimentos e características”. Sem perceber, querendo a gente ou não, é impossível não fazer isso.

E aqui, outra ressalva: não estou me referindo a colocar roupas humanas em bichos (domésticos ou selvagens) e tratá-los como bebês humanos criando-os como tal. Estou falando sobre reconhecer que a nossa visão sobre os animais e a nossa relação com eles realmente não é e nem poderia ser neutra, distante das nossas estruturas sociais (capitalistas, culturais, étnico-raciais, religiosas, políticas, familiares…) e de nossas origens, vivências, preconceitos e vínculos evolutivos.

Acredito que antropomorfizar os animais seja o menor dos problemas. Aliás, talvez fosse melhor que a gente antropomorfizasse mais, antropomorfizasse sempre. Talvez fosse melhor se a gente “descriminalizasse” de vez a antropomorfização. Talvez assim, a gente parasse de fugir: deles, da natureza, do nosso próprio lado animalesco, e enfim, de nós mesmos.

Quem sabe assim, as pessoas pensassem duas vezes antes de argumentar sobre certas situações envolvendo animais silvestres com uma certeza absoluta e uma razão que elas não teriam se a mesma questão envolvesse pessoas. Quem sabe assim, a gente passasse a encarar a natureza como parte de nós e nós como parte do mundo – e não como donos de tudo.

Deixo aqui a minha ode à antropomorfização dos animais.

Que a gente aprenda a se permitir nos colocar no lugar do animal. Que a gente aceite que isso, quem sabe, não só não seja errado como talvez seja a coisa mais certa a se fazer.

Principalmente, prestem atenção, se o que está em discussão é o animal que está sendo posto e exposto no lugar de gente.

Indicação de leitura: “Anthropomorphized species as tools for conservation: utility beyond prosocial, intelligent and suffering species”, artigo publicado na revista Biodiversity and Conservation em maio de 2013

Fonte: FaunaNews

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