Muitas pessoas acreditam na teoria chamada de egoísmo psicológico. O egoísmo psicológico não é uma teoria normativa, ou seja, ela não prescreve o que devemos ou não fazer; ao invés, ela visa descrever a motivação por trás de todas as ações humanas. O egoísmo psicológico consiste em afirmar que toda decisão, por mais altruísta, imparcial e desinteressada que pareça ser, visa, no fundo, apenas o auto-interesse de quem age. Sejam as decisões de Hitler, sejam as de Martin Luther King, a teoria do egoísmo psicológico afirma que a motivação por trás delas é igualmente egoísta.
Um argumento comumente utilizado para dar suporte à idéia do egoísmo psicológico é apontar que o agente altruísta se sente feliz se ajuda os outros e se sente triste quando não cumpre o seu dever. Logo, concluem os proponentes do egoísmo psicológico, o que move alguém a ajudar os outros não é a preocupação com o outro, e sim, com os seus próprios sentimentos. No debates da ética animal é comum ouvirmos esse tipo de acusação: “não digam que praticam o veganismo pelos animais; vocês querem é poupar a vocês mesmos de se sentirem responsáveis pela morte deles!”, afirmam os defensores do especismo. Outro argumento bastante utilizado para dar suporte ao egoísmo psicológico é apontar que, se alguém decide fazer algo, é porque deseja fazer esse algo; então, perguntam “por que afirmar que uma ação que visa o bem do outro é louvável se o agente está meramente fazendo aquilo que deseja?”.
Por mais plausível que a teoria do egoísmo psicológico possa parecer inicialmente, gostaria de apontar que existem sérios problemas com ela. Primeiramente resumirei os argumentos oferecidos pelo filósofo James Rachels¹ contra a teoria do egoísmo psicológico. De acordo com tais argumentos, temos fortes razões para rejeitar essa teoria. Num segundo momento, apresento algumas razões para pensarmos que, mesmo que a teoria do egoísmo psicológico fosse verdadeira, ela não oferece suporte algum, ao contrário do que se pensa, para desmerecer o valor moral de uma ação que visa o bem do outro.
Antes de iniciarmos é importante termos bastante clareza sobre o que afirma a teoria do egoísmo psicológico: ela não diz que existem muitos casos onde os agentes têm motivações egoístas por trás de ações aparentemente desinteressadas. Que muitos casos assim existem, não há dúvidas. Conhecemos muitas pessoas que, por exemplo, se sentem mal caso forem elas que matem o animal, mas não se sentem mal se forem outros indivíduos ou forças naturais que o matem. Contudo, um detalhe importante da teoria do egoísmo psicológico é que ela afirma que todos os casos possíveis são assim. Outro aspecto importante, que não devemos esquecer: esse argumento é endereçado geralmente com vistas a concluir que, então, não há diferença moral entre comer e não comer animais (ou, mais amplamente, entre agir imoralmente ou moralmente, em qualquer situação), visto que a motivação (supõe o argumento) por trás das duas ações é igualmente egoísta. É importante notar esse ponto: esse argumento é endereçado com vistas a desmerecer o valor moral de uma ação ética e colocá-la em pé de igualdade com a ação egoísta. Antes de entrarmos nesse importante aspecto, vejamos quais problemas com a teoria do egoísmo psicológico, enquanto teoria da motivação por trás de uma decisão:
Alguns argumentos contra a teoria doe egoísmo psicológico
(1) O egoísmo psicológico supõe que por trás de toda ação altruísta há uma motivação egoísta. Essa conclusão surge partindo do pressuposto de que sempre fazemos aquilo que desejamos fazer. “Como podemos dizer que o veganismo é uma atitude boa se os veganos estão meramente fazendo aquilo que têm vontade de fazer?”, diria um defensor do egoísmo psicológico. Mas, será que é verdade que sempre fazemos aquilo que desejamos? James Rachels (Ibid. p. 69) nos lembra que podemos fazer coisas que não desejamos porque elas são meios para um fim que almejamos (por exemplo, podemos não desejar ir ao dentista, mas escolhemos ir porque almejamos acabar com a dor de dente). Então, é falso que sempre fazemos aquilo que desejamos.
(2) O defensor do egoísmo psicológico pode replicar à resposta anterior, apontando que, contudo, desejamos o fim da dor-de-dentes, e que, mesmo que seja falso que sempre seguimos nossos desejos quando se trata de realizar os meios, é verdade que sempre seguimos nossos desejos enquanto fins. Novamente, Rachels (Ibid. p. 69) aponta que isso nem sempre é verdade; às vezes fazemos coisas não porque tais fins estão de acordo com nossos desejos, mas porque temos um senso de obrigação. Podemos desejar não cumprir uma promessa, mas sentimos que é necessário fazê-lo. O defensor do egoísmo psicológico pode novamente replicar, dizendo que, “se fazemos algo, é porque desejamos fazer esse algo – seja meio, seja fim”. Mas, isso também é falso: é inteligível dizer “não desejo cumprir a promessa, mas vou cumprí-la”. Se fosse verdade que nossas ações estão sempre de acordo com nossos desejos mais fortes, não teríamos conflitos internos – que surgem justamente porque nos sentimos obrigados a fazer algo que vai contra o que mais desejamos (RACHELS, Ibid. p. 69).
O defensor do egoísmo psicológico, num primeiro momento, define “desejo” como aquilo que “agrada” a alguém fazer e, num segundo momento, como aquilo que alguém decide fazer (ainda que não seja do seu agrado). Se entendermos que, na réplica, o defensor do egoísmo psicológico usa “desejo” como sinônimo de “decidir”, o argumento se torna vazio, pois agora o egoísta psicológico teria de afirmar que todas as ações têm motivações egoístas simplesmente porque “os agentes sempre fazem aquilo que decidem”. Ora, isso é verdadeiro, mas não é defesa do egoísmo psicológico, pois a decisão não necessariamente precisa estar vinculada a um desejo que vise o benefício do agente. Exigir que, para uma decisão ser desinteressada, precisa ser contrária ao que o agente decide é absurdo porque é uma condição impossível de ser cumprida.
(3) O defensor do egoísmo psicológico pode replicar novamente: “Então, no final das contas, todo mundo acaba seguindo o seu desejo: no caso, algumas pessoas possuem um sentimento (desejo) mais forte ainda, de ajudar os outros”. Supondo, para efeito de argumentação, que isso fosse verdade. Segue-se daí que alguém que pratica uma ação altruísta (por exemplo, põe em risco a própria vida para salvar a de alguém) é motivado egoisticamente apenas porque deseja, mais fortemente do que proteger a própria vida, salvar outro indivíduo? Muito pelo contrário, pois é isso exatamente que define alguém altruísta. O mero fato de se ter um desejo não mostra que alguém é egoísta; pelo contrário, como aponta Rachels (Ibid. p. 70, 71), é o objeto do desejo (se é o outro ou se é o próprio agente) que define se alguém é altruísta ou egoísta.
Assim, a premissa (de que sempre fazemos o que desejamos) é falsa pelo que foi apontado nos itens 1 e 2. E, mesmo que a premissa fosse verdadeira, a conclusão de que então toda ação é motivada egoisticamente não poderia surgir dessa premissa, pois não são todos os desejos que tem como objeto o bem único do próprio agente.
Vejamos se é possível defender o egoísmo psicológico, então, a partir de outra premissa:
(4) Uma idéia geral por trás da teoria do egoísmo psicológico é que, se sentimos prazer em ajudar os outros, então somos tão egoístas quanto àquele que, além de não ajudar, faz mal aos outros. No fundo, diz a teoria, só estamos seguindo aquilo que nos dá prazer – o que muda é o objeto do prazer, em cada caso. Essa idéia só é aceita porque não se costuma analisá-la mais de perto. Por que deveríamos pensar que alguém é egoísta porque sente prazer em ajudar os outros? A pessoa altruísta é exatamente aquela que gosta de ajudar os outros, e a egoísta aquela que não gosta. Além disso, e, mais importante, o argumento não pergunta de onde surge o prazer em ajudar os outros. Só é possível existir esse prazer se antes nos importamos com o bem de outro indivíduo. Sentimos prazer em ajudá-los porque nos importamos com eles, e não, nos importamos com eles porque isso nos dá prazer. “Os bons sentimentos são um subproduto, não estamos buscando-os”, conclui Rachels (Ibid. p. 71), o que mostra que sentir prazer em ajudar os outros não é sinal de egoísmo. A teoria do egoísmo psicológico inverte a ordem da relação entre atribuir valor a algo e sentir satisfação em realizar esse algo, e isso passa despercebido.
Além disso, vimos que, nos debates, esse argumento é freqüentemente endereçado com o objetivo de afirmar que, se o agente se sentir feliz em ajudar os outros, então sua ação não tem valor moral. Ora, isso é simplesmente procurar um motivo para dizer que a ação ética não tem valor. Quer dizer, o altruísta não pode nem se sentir feliz em ajudar os outros, que sua ação é colocada no mesmo patamar da ação egoísta. O defensor do egoísmo psicológico parece exigir que, para que a ação altruísta tivesse valor moral, o agente não poderia nem se sentir feliz por ter praticado a boa ação (item 4) e nem ter desejado (item 1), nem decidido praticá-la (item 2), o que é impossível. Mas, não há razão do porque deveríamos aceitar essas exigências. Exigir o impossível parece ser uma boa desculpa para alguém se livrar de uma obrigação.
(5) A teoria do egoísmo psicológico baseia-se totalmente em especulações sobre a motivação de quem age, e conclui que, só porque é possível interpretar tais ações a partir de motivos egoístas, então todas as ações são motivadas pelo egoísmo. Isso é um erro: não é verdade que se é possível que seja o caso, então é o caso.
(6) A grande atratividade inicial da teoria do egoísmo psicológico é sua simplicidade: se podemos supor que existe uma única motivação que explique todas as decisões possíveis, então por que fazer suposições para além do necessário? – diz o princípio da parcimônia (quando duas teorias explicam igualmente bem o mesmo fenômeno, a mais simples, ou seja, a que faz menos suposições, é a melhor), um princípio amplamente aceito na ciência. É tentador adotarmos uma teoria que consiga explicar o comportamento por trás de todas as ações possíveis baseada numa única motivação (no caso, o egoísmo), mas a realidade das motivações parece ser bem mais complexa do que isso (vide os argumentos anteriores), e é mais provável que, diferentes como são as pessoas umas das outras, todo tipo de motivação (boa e ruim) seja possível.
(7) A teoria do egoísmo psicológico confunde interesse próprio com egoísmo. Alguém pode agir em interesse próprio (como, por exemplo, quando vai ao médico) sem ser egoísta. O comportamento egoísta possui como característica principal “ignorar os interesses dos outros em circunstâncias nas quais os seus interesses não devem ser ignorados” (RACHELS, Ibid. p. 72). Note que o exemplo de ir ao médico não é uma ação que envolva altruísmo, e ainda assim, não pode ser considerada egoísta. Se isso é válido para esse tipo de ação, é mais válido ainda para uma ação altruísta. Assim, é falso que todas as ações são egoístas.
O egoísmo psicológico se baseia na idéia de que, se alguém também ganha algum tipo de sensação boa ao ajudar os outros, então esse alguém é egoísta. Mas, normalmente não é isso que se entende por egoísmo. Egoísmo é a ausência de consideração pelos outros, enquanto que a decisão ética envolve uma consideração imparcial por todos os envolvidos. Se, na decisão ética, o agente também se sente feliz em ajudar os outros, por que deveria ser dito que ambas as decisões são egoístas?
(8) A mesma teoria confunde interesse próprio com busca pelo prazer. Alguém que continua a fumar sabendo que o cigarro causa câncer está buscando sentir prazer ao fumar, mas não está agindo em interesse próprio. Note que esse exemplo também não envolve comportamento altruísta; e mesmo nesse exemplo, podemos perceber que é falso que todas as ações são em interesse próprio. Se é possível perceber esse ponto até mesmo numa ação não-altruísta, o mesmo é mais provável ainda para uma ação altruísta. Logo, é falso que todas as ações são egoístas (item 7) e, é falso que todas as ações são em interesse próprio (item 8). Os exemplos que apontam para nossa conclusão foram dados com base em comportamentos não-altruístas; ou seja, mesmo que não existisse comportamento altruísta no mundo, “o egoísmo psicológico ainda seria falso” (RACHELS, Ibid. p. 73). Isso não significa que é impossível haver alguma, algumas, ou muitas ações altruístas motivadas por sentimentos egoístas, mas sim que é falso que todas as ações desse tipo necessariamente assim o são.
(9) O egoísmo psicológico, da maneira como geralmente é colocado, não é testável. Uma vez que primeiramente se aceita a validade do egoísmo psicológico, toda e qualquer decisão pode ser interpretada para se encaixar na teoria. Mas, se uma teoria pretende explicar algo, deve haver alguma maneira de testar essa teoria, para verificarmos se é verdadeira ou falsa. Se não há como imaginar tal teste, então a teoria não serve para nada. Talvez seja possível imaginar uma forma de testar o egoísmo psicológico, ou seja, criar um procedimento que defina como seria agir de forma desinteressada e como seria agir de forma egoísta, e depois aplicar esse procedimento a casos práticos. Se nenhum dos casos práticos se mostrasse desinteressado, então o egoísmo psicológico seria verdadeiro. Mas, isso não é feito. Nos debates, os defensores do egoísmo psicológico primeiro assumem sua validade para depois adequarem os casos práticos à teoria. Assim, a teoria é simplesmente assumida, e não testada – o que é desonesto.
Por que o egoísmo psicológico não é ameaça ao valor moral de uma decisão ética
Os argumentos acima colocam um grande ponto de interrogação na teoria do egoísmo psicológico. Temos boas razões para supor que o egoísmo psicológico é falso, apesar de sua aparente plausibilidade. Mas, supondo, para efeito de argumentação, que o egoísmo psicológico fosse verdadeiro. Se assim o fosse, então um comportamento egoísta tem o mesmo valor moral de um comportamento altruísta? Ora, essa conclusão é um erro porque ela supõe que todo o valor moral de uma decisão se encontra na sua motivação. Já vimos, em outras colunas , que toda teoria moral minimamente adequada deve admitir que as conseqüências possuem, senão a importância principal, pelo menos alguma importância no valor das decisões morais. Portanto, é falso que uma ação egoísta é tão boa quanto uma altruísta, mesmo se fosse verdade que toda ação altruísta possuísse uma motivação egoísta por trás – já que a ação altruísta visa trazer (e geralmente traz) melhores conseqüências para os atingidos por ela, do que a ação egoísta.
É importante lembrar também que soa um tanto descabida a acusação de que aquele que age eticamente está buscando o seu próprio prazer, quando lembramos que vivemos em um mundo onde a maioria das pessoas é egoísta ao extremo e reprova o agir eticamente (principalmente no que diz respeito a animais humanos). Se a meta de alguém é buscar a própria satisfação, o último caminho que iria querer fazer é tentar ajudar os que estão numa situação terrível, ainda mais animais não-humanos. Escolher respeitar e defender animais não-humanos é, além de ter que se deparar com o horror do sofrimento extremo que eles passam em todos os momentos (seja por mãos humanas, seja por forças naturais), ter que comprar briga com todo o resto do mundo (estranhos, amigos, família, etc.). Se todas as pessoas que agem eticamente buscassem unicamente o seu próprio prazer, provavelmente escolheriam fomentar outro interesse que são fontes muito mais confiáveis de satisfação egoísta, do que se preocupar com os outros, Qualquer um que já se propôs a defender a igualdade para os animais, ou qualquer outra causa com uma fundamentação ética, ou qualquer outra coisa que envolva desafiar tradições fortemente enraizadas, sabe das grandes dificuldades que isso implica e da coragem e esforço necessários – que, muito de longe, superam o prazer auto-interessado que alguém obtém com isso. Muitas pessoas que usam o argumento do egoísmo psicológico com vistas a dizer que a ação ética tem o mesmo valor que a ação egoísta provavelmente não conhecem, na prática, o que é lutar por algo assim.
Algumas pessoas acreditam no egoísmo psicológico porque a teoria lhes parece plausível à primeira vista e talvez não a tenham testado frente aos argumentos contrários. Contudo, talvez nem sempre o que esteja por trás da crença no egoísmo psicológico seja ingenuidade. Como estamos no terreno das motivações, tudo o que posso fazer aqui são especulações, mas, é bem possível que outras pessoas defendam o egoísmo psicológico por um motivo um pouco mais desonesto. Se alguém não quer admitir que possui uma obrigação moral e pretende continuar a agir de maneira egoísta, a teoria do egoísmo psicológico lhe cai como uma luva: ao fazer os outros acreditarem que a ação altruísta tem o mesmo valor que a ação egoísta , ele desmotiva os outros a agirem eticamente e, com isso, faz com que ninguém repare que suas ações são condenáveis. Assim, ninguém lhe cobrará que ajude os outros (por todos terem tornado-se egoístas, ou, ainda que isso não tenha acontecido, pelos outros passarem acreditar que as ações egoístas possuem o mesmo valor moral das ações altruístas).
É por esse motivo que, em um mundo cheio de ações egoístas, a ação ética é condenada. Se alguém age com base numa preocupação imparcial com os outros, fica muito claro que tal prática é possível para outras pessoas também. Assim, os egoístas se sentem obrigados a agirem da mesma forma (principalmente quando fazer a coisa certa custa muito pouco para si próprio), mas não querem . Então, passam a condenar aquele que se preocupa com a ética, na tentativa de conseguir que este se torne egoísta, e assim, todos possam continuar a praticar sua tirania.
É impressionante quantas teorias sofisticadas somos capazes de inventar com vistas a não admitirmos que, às vezes, escolhemos fazer a coisa errada. O apelo a tais teorias aparece freqüentemente na defesa de posições especistas.
¹ RACHELS, J. Os Elementos da Filosofia da Moral. 4a ed. Trad. Roberto Cavallari Filho. Barueri: Manole, 2006, cap. 5
² https://www.anda.jor.br/2010/07/06/sobre-o-raciocinio-etico-os-conteudos-parte-5/