Todos sabemos que o princípio básico do veganismo é o boicote aos frutos da exploração animal. Também sabemos que todos os medicamentos disponibilizados no nosso país são testados em animais. Veganos, aspirantes a veganos e onívoros, portanto, fatalmente colocam esta pergunta, com objetivos diferentes: um vegano deve usar remédios?
Veganos e aspirantes muitas vezes as colocam por se sentir diante de um dilema moral. Onívoros, com o objetivo de apontar outro tipo de dilema: entre a hipocrisia do vegano que se permite usar medicamentos e o radicalismo suicida daquele que se recusa a fazê-lo.
Tal questão não pode, porém, ser enfrentada de maneira simplória, nem determinista. Os princípios da filosofia vegana efetivamente entram em choque quando se trata de responder qual a posição eticamente aceitável para o uso de medicamentos testados. Porém, este dilema não é tão generalizado nem tão dramático quanto veganos e onívoros parecem simultaneamente pensar.
Dois fatores iniciais e determinantes ajudam a tirar esse debate do terreno maniqueísta do “ou tudo, ou nada”. O primeiro deles diz respeito ao próprio estilo de vida do indivíduo, e como este influi na sua saúde. Embora a medicina muitas vezes dedique-se exclusivamente a combater ou mitigar males de saúde já estabelecidos, e boa parte da pesquisa medicinal orientar-se nesse sentido, o fato de que a saúde depende muito mais do estilo de vida e da prevenção de doenças já é cientificamente fundamentado. Os hábitos de higiene, os exercícios físicos regulares, as boas condições sanitárias e ambientais (incluindo fatores como a poluição atmosférica e exposição a produtos tóxicos) e a boa alimentação são fatores determinantes para a saúde de um indivíduo.
Nesse sentido, a própria dieta vegana já contribui em grande medida para a preservação da saúde – e, conseqüentemente, a dispensa de medicamentos alopáticos. Contribui, mas não é suficiente. A dieta ideal deve ser não apenas vegana, mas prescindir ao máximo de alimentos industrializados, que contêm produtos potencialmente tóxicos, e alimentos criados com agrotóxicos. Mais fácil dizer que praticar, mas essa dieta o mais natural possível contribui enormemente para a manutenção da saúde daqueles que a seguem. Além disso, é importante observar os exercícios físicos e manter-se tanto quanto possível longe dos fatores ambientais potencialmente perigosos para a saúde. Na nossa sociedade urbana e industrializada, porém, um estilo de vida saudável nem sempre depende de nossas ações isoladas.
O segundo fator que contribui para desmitificar o dilema entre veganismo e medicamentos é a existência de terapias medicinais não alopáticas, cujos medicamentos não são testados em animais. Tenho em mente, principalmente, a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura. Essas são duas soluções plausíveis para aqueles de nós que vivem exatamente na situação descrita acima: vivem expostos a um ambiente lotado de ameaças reais e potenciais à saúde, as quais não se pode evitar apenas por meio de ações individuais. Sei bem do que estou falando, sendo alérgico praticamente desde o nascimento (muito antes de veganizar, portanto). Além de a adoção do veganismo ter reduzido sensivelmente minhas crises alérgicas (e minha dependência de medicamentos contra alergia, que não curam, apenas atuam sobre os sintomas), desde que busquei tratamento fitoterápico eu tive uma melhora gigantesca. Minhas crises alérgicas praticamente acabaram, acabando também com meu dilema sobre o uso de medicamentos para controlá-las. É público e notório, porém, que tais terapias não são aceitas ou acreditadas por todos. Eu mesmo não tive sucesso nas minhas tentativas com a homeopatia. Porém, cabe ressaltar que a fitoterapia e a homeopatia são terapias holísticas, ou seja, tratam do organismo como um conjunto integrado, e fazer uso delas sem tentar tratar dos demais aspectos insalubres de nossa vida reduz a chance de um tratamento bem-sucedido.
Há, porém, aqueles casos emergenciais que são brandidos pelos críticos do veganismo e das terapias “alternativas”. E se você sofre um acidente de trânsito? E se, apesar de todos os cuidados possíveis, é acometido de uma doença grave? É sabido que a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura são tratamentos de médio e longo prazos. Seria eticamente condenável e contraditório um vegano recusar tratamento médico? Ou seria hipocrisia, como dizem os onívoros?
A minha opinião é um convicto “não”. Conheço caso de veganos que sofreram acidentes que requereram internação hospitalar – inclusive uma pessoa que considero uma das mais dedicadas e coerentes no que se refere ao veganismo. Conheço casos de veganos que necessitaram de cirurgia. E tenho um caso familiar de doença crônica em pessoa não-vegana, que depende de medicamentos para levar uma vida minimamente suportável. Eu não diria a nenhuma dessas pessoas que lutar para preservar suas próprias vidas é eticamente condenável. Não esqueçamos que o veganismo não defende o sacrifício pessoal, mas sim a abstenção de explorar. Todos os veganos que conheço que precisaram de apoio da medicina tradicional ocidental-moderna fazem suas partes: praticam o boicote, não consomem produtos testados e não tomam remédios em função de qualquer dor de cabeça banal. Porém, ao serem confrontados com a necessidade de preservar suas próprias vidas e sua integridade física e psíquica, não podem se curvar à chantagem dos onívoros. Não é incoerente aceitar tratamento médico se este for irremediavelmente necessário para salvar suas vidas ou manter sua integridade (não esqueçamos que a questão da integridade é fundamental, caso contrário seria eticamente aceitável explorar e não matar).
Não é culpa dos veganos se a ética médica especista faz testes em animais não-humanos, os quais são desnecessários e até perigosos para a saúde humana, pois induzem a conclusões enganosas. O fato é: os veganos não lutam (necessariamente) contra a medicina ocidental-moderna. Embora falha e limitada, ela pode, tanto quanto as demais, contribuir para prolongar o tempo de vida do ser humano e sua qualidade. Pessoalmente, acredito que a medicina ideal não está numa vertente exclusiva, mas no melhor que cada uma das vertentes tem a oferecer.
A posição eticamente coerente e correta é, portanto, denunciar os testes em animais não-humanos, lutar pela sua abolição e pelo emprego dos métodos substitutivos já existentes, boicotar totalmente o uso de produtos testados em situações que não sejam emergenciais. O sacrifício em favor de uma causa (dependendo de qual ela seja) é belo e louvável, mas nem sempre é a opção mais inteligente – pois um ativista vivo sempre pode contribuir mais pela causa do que um morto. Tampouco, o sacrifício pessoal pode ser exigido como regra de conduta, e qualquer estudioso da ética concordará quanto a este ponto. Assim, nem o vegano disposto a este sacrifício, nem o onívoro vigilante das contradições veganas podem exigi-lo daquele vegano que, por quaisquer razões que sejam, se veja diante do dilema de usar tratamentos e medicamentos testados para preservar sua vida e sua integridade. Um dilema que, como afirmei acima, é bem menos comum e dramático como o senso comum sugere.