Há um bilhão de animais domésticos no mundo. Um a cada três animais vive nas ruas ou em abrigos. A informação é indigesta e a sensação de impotência gera ansiedade. Em uma mão temos o abandono e na outra o medo de que ele cresça ainda mais.
O que fazer? Promover a adoção e frear a natalidade. Sim, essas são as duas únicas alternativas. A Holanda fez isso. Segundo, reportagem do site Dutchreview os holandeses alcançaram essa conquista através do programa CNVR (Collect, Neuter, Vaccinate and Return) que retirava o cachorro da rua, castrava e vacinava. Paralela à campanha de esterilização em massa, os impostos para comprar um cachorro de raça aumentaram consideravelmente.
Nas palavras da ativista holandesa, deputada e fundadora do Partido pelos Animais (PvdD) Marianne Louise Thieme: “Existe uma ligação direta entre a violência contra os animais e a violência contra os humanos”. Então, fica o questionamento: como os nossos governantes no Brasil tratam seu povo?
Se formos comparar a Holanda com o Brasil, rapidamente chegaremos a contrastes gigantescos, não apenas econômicos e sociais, mas também em termos geográficos. “A Holanda tem cidades pequenas com governos que funcionam. Uma cidade organizada, tem política animal. Uma cidade desorganizada não tem nada. Se a gente conseguisse fazer o número de animais abandonados parar de crescer, seria ótimo. Sem o manejo adequado ele vai aumentar”, analisa a gerente de política pública Kátia Souza, da Mars Petcare.
Alguns caminhos são claros e iguais em qualquer parte do mundo: a castração e adoção se fazem necessários para combater o abandono animal no planeta.
A Mars Petcare, líder mundial em comida de animais que produz a ração Pedigree, realizou recentemente uma extensa pesquisa em 20 países, que resultou no Índice de Abandono Animal e revelou que no Brasil há 30 milhões de cães e gatos sem um lar.
Ensinar a fazer a gestão
O Governo Federal publicou um dado no mínimo alarmante e extremamente triste, pois ao buscar saber quais dos 5.500 municípios brasileiros oferecem serviços públicos voltados aos animais teve a resposta de apenas 400 e metade destes não tem nada implementado.
A Mars entendeu que os municípios precisam de ajuda e através do projeto Better Cities for Pets, para quem damos assessoria no pilar pet friendly desde 2021, lançou um curso de políticas públicas com o objetivo de ajudar a combater o abandono. “Este material foi feito a muitas mãos e levou meses para ficar pronto. Tivemos a preocupação de conversar com as cidades e ter a certeza de que o que estava sendo escrito fazia sentido”, explica Souza.
O primeiro curso aconteceu em Holambra, em agosto de 2024 e teve a presença de 40 gestores de 14 cidades do interior de São Paulo. Souza explica que a ideia é levar o curso para cidades de todo o Brasil: “Estamos conversando com os governos federais e estaduais e buscando entender como podemos replicar para um número maior de cidades. Nosso sonho é que antes de um município receber um recurso, ele seja capacitado.”
Ela também salienta a importância das ações de política pública serem feitas de forma coletiva, com as cidades ao redor: “Têm casos de pessoas que saem da sua cidade e abandonam na vizinha, por isso, precisa ser uma abordagem integrada.”
Há quatro pilares básicos que deveriam estar no orçamento de todas as cidades do país: censo, castração contínua, microchipagem e campanhas educacionais. E, claro, pessoas engajadas e dispostas a fazerem mudança: “Para um projeto ir para a frente, precisa ter um apaixonado pela causa, que envolva a comunidade, promova uma audiência pública, abra um canal de comunicação e incorpore a política pública no plano da cidade”, acrescenta Souza.
Censo
O censo serve para entender a quantidade de animais em situação de risco. Além de mapear onde eles estão localizados. Nas regiões de maior vulnerabilidade, onde as pessoas não têm acesso a um serviço de saúde para o animal e condições de alimentá-lo, o risco de abandono aumenta.
No curso, as cidades têm acesso a um modelo de questionário e formas de como montar um censo. A mais tradicional é contratar uma empresa especializada na coleta de dados feita de porta em porta para descobrir se há animais na casa e suas idades. Outra forma eficaz é fazer parceria com equipes que já vão a campo, como a da dengue; por exemplo; que pode incluir na pesquisa perguntas sobre os animais da residência. Assim como em uma campanha de vacinação contra a raiva e para quem usa os benefícios oferecidos pelo governo como a Bolsa Família.
A cidade de Jaguariúna, em 2013, fez o recadastro do “cartão cidadão”, que dá direito à saúde pública com qualidade, e neste momento atualizou o seu censo. “Se o município não sabe o tamanho da sua população carente, como vai pensar no recurso necessário para cuidar dela? É um tiro no escuro quando você não tem essa informação.” opina Souza.
Castração
Quando a prefeitura fala em combate do abandono animal, ela pensa em castração. As cidades precisam criar programas contínuos, pois essa é a melhor forma de evitar o futuro abandono. Um cão ou gato reproduzindo na rua leva a um nascimento desenfreado de animais em situação de rua. A conta é de multiplicar de forma exponencial: uma fêmea não castrada pode gerar em um ano, considerando filhotes que também venham a reproduzir, 500 novos animais.
Souza comenta sobre os distintos modelos de programas de castração e finaliza sendo categórica: “Cada cidade tem a receita que se adequa com a disponibilidade de recursos, mas todas precisam oferecer a castração como serviço público”. As castrações podem acontecer nos centros de bem-estar animal, castramóvel e convênios com clínicas veterinárias.
Em Jaguariúna a castração faz parte do orçamento previsto pela sua prefeitura. “Em 2018, o município criou uma rede de saúde animal, com posto de atendimento veterinário. Todo cidadão de Jaguariúna, que tem o cartão cidadão pode levar seu animal para ser castrado”, explica o médico veterinário e responsável pela Gestão do Direito à Saúde Animal, José Eduardo Chaib de Moraes.
As demais cidades no Brasil deveriam fazer o mesmo, caso contrário torna-se “enxugar gelo”, portanto, os mutirões não alcançam um bom resultado a longo prazo. Muitas cidades apelam para os vereadores e deputados, que entram com emendas parlamentares para a compra de um castramóvel. O problema é que falta dinheiro para contratar o médico veterinário, motorista e fazer a manutenção do carro no ano seguinte.
No mundo ideal, que devemos buscar alcançar, as cidades precisam ter um PPA (programa para a gestão de 4 anos), LOA (Metas para o ano) e LDO (recursos para o ano) com o intuito de garantir uma política pública permanente e contínua, independente do governo.
Microchipagem
Outro índice alarmante indicado pelo Índice de Abandono Animal é referente aos animais perdidos. Das pessoas entrevistadas, 39% perderam seus pets e apenas 1/3 os recuperou. O caso da cachorrinha SRD Esmeralda de 9 anos, que teve um final feliz, poderia ter sido trágico. Ela escapou de casa pelo vão do portão e foi atropelada em uma avenida próxima. Um homem viu o acidente e prestou socorro. Infelizmente, ela não tinha placa de identificação, nem era microchipada. Ainda assim, teve sorte, pois foi levada para uma clínica veterinária, atendida e encaminhada para a ONG APATA. Sua foto foi vista pelo Instagram e os tutores encontrados. “Procuramos por 5 dias, mobilizamos vizinhos, grupos de WhatsApp, redes sociais e colamos mais de 200 cartazes”, revela Vanessa Schio, tutora da Esmeralda.
A microchipagem é outro ponto levantado no curso. Se um animal tem uma identificação, o tutor pode ser localizado. Resolve o problema do pet que se perdeu e também penaliza um caso de abandono.
Fizemos uma pesquisa com um grupo de seguidores do Guia Pet Friendly e 50% dos cães dos entrevistados não são microchipados. No Índice de Abandono este número é de ínfimos 8%.
A médica veterinária Thessa Petersen Dattelkremer considera importante o chip, usa em seus cães, mas questiona a sua eficiência: “Existem mais de 20 marcas e cada uma tem seu próprio leitor.” Sabendo disso, Jaguariúna teve o cuidado de escolher um chip universal, que fosse lido por qualquer leitor, e optou pelo Animaltag.
Eleições
Há uma quantidade expressiva de candidatos ganhando eleições com a bandeira da causa animal. A sociedade colocou os ani ais na posição de família e clama por melhorias. Quem abraçar essa causa tem votos garantidos, o que é comprovado com o número de projetos de leis protocolados no Congresso Nacional no mês seguinte à morte do cão Joca no bagageiro da GolLog.
Em 2023, o orçamento público participativo do governo federal tinha uma plataforma onde você escolhia a ação que considerava mais importante. A castração foi a mais votada dentro dos serviços de políticas públicas em prol dos animais. Souza comemora essa vitória e analisa: “A diretora do departamento de Proteção Animal do Ministério do Meio Ambiente, Vanessa Negrini, deu publicidade ao orçamento participativo. Dê voz à população que o governo não tem como não responder.”
Na gestão do prefeito de Jaguariúna, Gustavo Reis, que termina em 2024, o plano plurianual, a lei diretriz orçamentária e a anual, que são ferramentas financeiras do município, reservou recursos para o combate ao abandono animal. Para 2025 estão previstos oitocentos e quarenta mil reais para o programa Saúde Animal.
A cidade de Jundiaí, que gasta quinhentos mil reais por ano com castração, também é um bom exemplo de como é possível cuidar dignamente dos animais. Entre suas diretrizes estão a obrigação da microchipagem pela Lei Municipal 9.918/2023. “É importante identificar um animal, facilitando a localização de seus tutores quando um animal perdido é encontrado. E também nos casos de abandono, possibilitando identificar o tutor.”, comenta Talita Odara, diretora do departamento de Bem-Estar Animal de Jundiaí.
No Brasil, desde 1998, abandonar um animal é crime previsto na lei 9.605/98. Em 2020, a lei 14.064/20 deixou a pena ainda mais rigorosa e aumentou o tempo de reclusão para até 5 anos.
No final das contas, tudo passa pela velha e boa educação. E nessa hora consigo trazer este debate para a importância da educação dos cães em locais pet friendly. Temos que incutir na cabeça das pessoas o quanto é necessário respeitarmos o próximo e, consequentemente, conduzir bem nossos cachorros para terem mais inclusão em todos os locais: de hotéis e restaurantes à cabine do avião e hospitais.
Até poucas décadas atrás, não aprendíamos na escola sobre reciclagem. Nem éramos obrigados a usar o cinto de segurança. O mundo mudou e chegou a vez dos pets serem vistos e tratados com dignidade.
“Educação é a chave. Temos que trabalhar a criança na escola. Enquanto a geração não cresce, temos que nos basear na penalização e pensar em meios de fiscalizar”, conclui Souza.
Fonte: Estadão