Quatro anos de batalha judicial separaram a engenheira florestal Fabiana Ferreira, de 37 anos, de seu amigo fiel, o cachorro caramelo Pitoco. A disputa pelo animal, que começou em 2020 entre Fabiana e uma colega de trabalho, chegou ao fim em outubro deste ano, quando a engenheira conseguiu a guarda definitiva dele no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“Eu tive a notícia que ele ia voltar e eu fiquei muito feliz porque realmente assim foi um momento único, né? Agradecer a Deus porque é uma bênção. A gente sabe que quando o cachorro ele é fiel, ele é fiel contigo até o último dia e ele inclusive está aqui do meu lado ouvindo de orelha atenta”, disse a tutora.
Fabiana recuperou a guarda de Pitoco no último dia 11 de outubro, quando foi cumprido o mandado de busca e apreensão na casa da ex-colega de trabalho dela. Desde então, o caramelo voltou a ser seu fiel escudeiro.
Para Gustavo Hugo de Andrade, advogado da engenheira que atuou na ação, o sentimento é de “satisfação”. Amante dos animais, ele afirma que se colocou no lugar dos tutores e se inspirou até em casos estrangeiros para argumentar na Justiça.
“Eu me envolvi emocionalmente nessa ação, para mim foi espelhar uma uma vivência minha ali, como se eu tivesse realmente sentido muito empatia, me transportado para aquelas pessoas que estava buscando trazer de volta o animalzinho”.
‘Guarda-costas’
A história entre os dois começou em 2019. À época, Fabiana namorava um policial militar e viu dois cachorros no quartel em que ele trabalhava, em São João da Baliza, Sul de Roraima. Um deles era Pitoco e o outro Pitoquinho, nome dado pela guarnição. Pitoquinho morreu no decorrer do processo judicial.
Os policiais não tinham informações sobre os possíveis tutores e por isso eles recebiam os cuidados dos agentes no quartel. Como Fabiana ia buscar o namorado lá, ela passou a ter contato com os animais e criar afeto por eles.
A engenheira relembrou que os cachorros começaram a segui-la e às vezes fugiam do quartel só para acompanhá-la. Porém, Pitoco virou o guarda-costas de Fabiana. A tutora relembra que ele a seguia no dentista, academia e até na igreja.
“O pessoal até brincava, né? ‘Nossa, tu tem um guarda-costa’, porque era 24 horas […] Ele não me largou e aquilo foi criando um amor e eu criei um amor por ele e foi recíproco”.
Ainda em 2019, após alguns meses, os cães foram adotados pelo então namorado de Fabiana. Ele os levou para morar em São Luiz, município distante 15 minutos de São João da Baliza. Depois, retornou para Baliza com os animais.
Eles sempre levavam os caramelos para onde fossem, para que não ficassem sozinhos ou fugissem. Quase um ano depois que eles foram adotados pelo policial e a engenheira, a colega de trabalho da mulher a procurou para dizer que os cachorros pertenciam a ela e que iria buscá-los.
Nos autos do processo, consta que as duas discutiram e, no dia seguinte, a mulher tentou entrar na casa de Fabiana sem permissão, sendo impedida pelo pai da engenheira. Os documentos também detalham que, semanas depois, Pitoco desapareceu e Fabiana descobriu que ele estava na casa da colega de trabalho.
Batalha na Justiça
A batalha na Justiça começou em junho de 2020, quando Fabiana e seu ex-namorado decidiram entrar com um pedido de busca e apreensão. Ela foi incentivada pelo então companheiro a continuar a luta pela guarda dos animais.
“No começo eu fiquei receosa porque a gente mora em um município pequeno e todo mundo mundo se conhece, pessoas vão te criticar. Nossa, foi uma confusão, pessoas muito próximas a mim me criticaram, só que a gente conversou bastante e decidiu entrar [na Justiça] porque a gente fazia todo o aparato de cuidador, tutor, de uma pessoas que dizia ser dela, mas que não tinha o mesmo cuidado, eu não via”
À época, Fabiana estava apenas com Pitoquinho, que também era alvo da ação, mas ele faleceu ainda em 2020. O processo seguiu e em agosto de 2020, eles venceram na primeira instância. O juiz Pedro Machado Gueiros determinou a reintegração de guarda de Pitoco, que era chamado de “Simba” pela colega de trabalho da engenheira.
“Uma pessoa que se diz tão apegada ao animal doméstico e estabelece com o cão uma relação de companhia, conforme narrado, não pode permitir que o animal fique tanto tempo afastado, sem adotar qualquer medida para reavê-lo – sequer houve campanha na busca de encontrá-lo”, cita trecho da decisão do magistrado.
Ainda na decisão, o juiz considerou o cuidado que o, à época, casal tinha com os animais. Destacou que levavam os animais ao veterinário e “dispensando zelo, tempo e recursos na mantença dos cães, atos indispensáveis a todo animal doméstico”.
“Além disso, o fato da parte autora ter ajuizado uma ação para reaver o animal demonstra o apego e cuidado dedicados àquele devendo permanecer com o animal”
A audiência durou cerca de quatro horas e ouviu cinco testemunhas. Na primeira instância, o juiz também condenou a colega de trabalho de Fabiana ao pagamento das custas processuais e honorários de 20% sobre o valor da causa. Em caso de não cumprimento, ela deveria pagar R$ 2 mil ao casal.
Processo no STJ
A mulher recorreu da decisão por considerar que a sentença era injusta. Ela argumentou ainda que o casal agiu de má-fé. Na ação, ela cita que estava com os dois cachorros desde 2017, quando eram filhotes e que por morar em uma cidade pequena sempre deixou os deixou soltos.
“Frisa que a autora [Fabiana] tinha conhecimento que os cachorros era, tutelados pela requerida [colega de trabalho] que chegou a pedi que um deles lhe fosse doado, sendo prontamente negado o pedido, haja vista que o mesmo era tutelado pelo seu filho. Contudo, a autora continuou a ofereceu alimento ao cão”, menciona o relatório do recurso.
Ao chegar na segunda instância, o juiz Luiz Fernando Mallet negou o recurso e manteve a decisão. Ele votou com base nas provas apresentadas nos autos, como depoimentos de testemunhas.
“Pude perceber uma maior demonstração de interesse por parte dos apelados, que passaram a nítida impressão de que possuem maior afeto em relação ao cachorro “Pitoco”, fato este que também pode ser verificado na audiência de instrução e julgamento realizada pelo juízo de primeiro grau”.
Nos anos de 2021 e 2022 o processo ainda tramitou no Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) com os recursos ingressados pela mulher. Em agosto de 2022, o processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça, mas o o recurso especial foi considerado intempestivo pelo STJ em agosto de 2024, pois foi ingressado após o prazo de 15 dias previsto no Código de Processo Civil.
Volta para casa
Fabiana, que não está mais com o policial desde 2021, conta que foi ele quem a informou que Pitoco voltaria para casa. O oficial de Justiça cumpriu o mandado de busca e apreensão no dia 11 de outubro na casa da ex-colega de trabalho da engenheira.
“Eu fiquei muito sem saber o que fazer e ele [ex-namorado] me auxiliou […] A gente decidiu que vai ficar comigo, mas quando eu for a Boa Vista eu levo, de vez em quando mando foto para ele [do Pitoco]”.
No momento do reencontro, a engenheira temeu que Pitoco não lembrasse mais dela, mas que ele voltou a acompanhá-la e ser seu “guarda-costas” em todo lugar. Nas contas de Fabiana, Pitoco está com sete anos.
“Eu não sabia qual seria a reação dele, se ele ia lembrar de mim, se ele não ia, mas ele lembrou. Demorou assimilar. Ele tá um pouquinho mais idoso, ele teve uma reação depois, mas não sai do meu pé até agora, sabe? Parece que está querendo viver tudo que não viveu antes”.
“Não sei quanto tempo de vida ele tem ainda porque ele é um pouquinho velhinho, mas espero que ele passe esses dias comigo e o resto da vida dele”, disse, emocionada a tutora.
Fonte: G1