Por Paula Brugger
Vivemos tempos difíceis. Embora estejamos em pleno século XXI, nossa cultura e nossos costumes continuam fortemente impregnados de traços sexistas e especistas, entre outras formas de exercício da tirania e da opressão.
Há cerca de uma semana, em uma votação histórica, o STF – Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da lei cearense 15.299/2013 que regulamentava as vaquejadas no estado. Com o entendimento da Corte Máxima do país, a vaquejada passa a ser considerada uma prática ilegal, relacionada a maus-tratos a animais e, portanto, proibida (1).
A Constituição Federal é clara em sua redação no que diz respeito à proteção aos animais. No parágrafo primeiro, inciso VII, do artigo 225, afirma-se ser dever do Estado “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade (grifos nossos).
Os ministros que votaram pela inconstitucionalidade da vaquejada – uma prática na qual a possibilidade de não haver crueldade é nula – cumpriram, por conseguinte, com muito zelo, o que determina a Carta Magna de 1988. Há ainda outros diplomas legais que coíbem a crueldade com os animais, como a lei a Lei Federal nº. 9.605, de 1998, mais conhecida como Lei de Crimes Ambientais.
Entretanto, apesar de a decisão do Supremo ter efeito vinculante aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (2), observam-se reações contrárias à acertada decisão da Corte Suprema em alguns lugares do país.
Isso acontece porque enquanto existir a pecuária haverá tentativas de cometer esses e outros tipos de crimes contra tais animais, uma vez que a pecuária fornece a “matéria-prima” para esses abusos. A pecuária no Brasil, e no resto do mundo, é um dos setores que mais lesa o meio ambiente (3) e, nesse sentido, fere mais uma vez a CF no mesmo artigo que salvaguarda os animais da crueldade. Assim é a redação: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Mas, além da crueldade para com os animais, da destruição do meio ambiente e da associação desse setor com formas de trabalho análogas à escravidão, há o poder arrebatador do império político da carne (4) que, juntamente com outros setores retrógrados, formam a chamada bancada BBB: Boi, Bíblia e Bala.
Eis que, seis dias após a decisão do STF, o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria, com um conteúdo bastante tendencioso (5), que termina com uma referência ao apoio de Renan Filho – filho do “Rei do gado” em Alagoas (6) – à abjeta prática da vaquejada. Segundo a reportagem, Renan Filho, que criticou a decisão do Supremo, “chamou os praticantes das vaquejadas de ´heróis’ e disse que o esporte é ´patrimônio cultural´ do Nordeste” (sic).
É triste aquilatar que, enquanto faltam saúde e educação no país – o que provavelmente está no cerne da ausência de questionamento público massivo do conteúdo de medidas como a PEC 241, por exemplo – sobram manifestações a favor da execrável vaquejada.
Isso nos faz pensar que ainda é muito forte a idéia de que “Gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata”. Mas, ao contrário do que pretendia a letra da música em questão (7), de Geraldo Vandré, com gente continua não sendo muito diferente. E isso, em plena era da chamada sociedade da informação e do conhecimento (serão pertinentes esses termos?).
Há cerca de também uma semana foi notícia em todo o mundo o vazamento de um vídeo sexista no qual o candidato à presidência nos EUA, Donald Trump, entre outras ofensas, declarou em alto e bom som que toda mulher tem um preço (8), nivelando todas as mulheres à categoria de – belo trocadilho! – tramps (ou seja, vagabundas).
Políticos poderosos e truculentos, como Trump, precisam aprender que a grande maioria das mulheres não está à venda. Nem todas negociam suas existências em troca de uma vida de privilégios, luxo e riqueza. Nem todas são como as que eles compram, feito “gado valioso”, com os soldos maculados com o sangue e o suor da exploração dos humanos e não humanos que são vítimas de suas sanhas destruidoras. Esses seres repugnantes, que não vêem que suas tramps não passam de arremedos do que seja uma mulher, são os mesmos que promovem a matança de animais indefesos (9) e que advogam a política do “pão e circo”, a fim de perpetuarem suas canalhices ad aeternum.
A letra especista (ainda que tenha se prestado a fins revolucionários) do protesto político de Vandré é um exemplo de como diferentes formas de opressão estão interligadas. Sua leitura crítica também aponta de forma clara os limites dos velhos paradigmas antropocêntricos no que toca à tecitura de um novo modelo de civilização. Enquanto permitirmos o exercício da tirania sobre os outros animais, haverá violência contra as mulheres, contra as minorias étnicas e contra todos os que são vulneráveis nessa engrenagem que alimenta a ignorância e a morte.
Nesse sentido, a Suprema Corte brasileira deu um passo gigantesco nesse mês de outubro de 2016. E é por essa razão que reiteramos o nosso irrestrito e incondicional apoio à decisão do STF, sobretudo àqueles ministros que honraram e ratificaram o que prega a Constituição Brasileira.
Notas:
(1):Veja aqui.
(2): Veja aqui.
(3): Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). (2006). Livestock’s long shadow: environmental issues and options. Disponível aqui >; Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). (2013). Tackling climate change through livestock: a global assessment of emissions and mitigation opportunities. Disponível nesse link.
(4): Entre as empresas do setor, destaca-se a brasileira JBS, maior produtora mundial de carne. Veja Heinrich Böll Foundation & Friends of the Earth Europe. (2014). Meat Atlas: Facts and figures about the animals we eat. Disponível aqui.
(5): Folha de São Paulo de 12/10/2016; “Nove estados têm protestos pela vaquejada” (B.10)
(6): Veja aqui; acesse o link.
(7): Referência à letra da música “Disparada” de Geraldo.
(8): Acesse a matéria.
(9): Acesse a matéria.