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MEDIDA DE PROTEÇÃO

Trocar postes evitaria 80% das mortes por choque de ave ameaçada do Brasil, diz estudo

Arara-azul-de-lear, espécie do sertão baiano ameaçada de extinção, teve pelo menos 35 indivíduos mortos por eletrocussão em 2025

27 de setembro de 2025
André Julião
9 min. de leitura
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Foto: Tathiana Andrade

A arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie endêmica do norte da Bahia, quase foi extinta nos anos 1990. Graças a ações de conservação, sua população se expandiu para 2.500 indivíduos atualmente. A expansão das araras, porém, coincidiu com outra bem mais rápida, a da rede elétrica da região, que cresceu cerca de 30% entre 2018 e 2023. Como resultado, apenas entre janeiro e agosto de 2025, 35 araras foram encontradas mortas com sinais de eletroplessão, como se denomina a morte ou lesão acidental causada por energia elétrica.

Para mitigar o problema, um estudo apoiado pela FAPESP apontou os locais mais propícios para esse tipo de acidente nos municípios onde a espécie ocorre, 90% da população na região conhecida como Raso da Catarina. Entre outros fatores, o mapeamento levou em conta 78 eletroplessões relatadas entre 2005 e 2022, a composição da malha elétrica da região e a área de atividade da espécie.

No trabalho, publicado no Journal of Applied Ecology, os autores apontam que mudanças em 10% dos postes com maior risco levariam a uma redução de cerca de 80% dos acidentes conhecidos.

“O principal objetivo é apontar áreas prioritárias para mitigação, onde podem ser feitas alterações nos postes e evitar novas mortes e potenciais interrupções no fornecimento de energia. Nossas estimativas apontam um bom custo-benefício tanto para a empresa fornecedora quanto para a conservação da espécie”, afirma a brasileira radicada no Reino Unido Larissa Biasotto, senior science officer na BirdLife International e primeira autora do estudo.

Ainda no doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Biasotto conseguiu os dados de toda a rede elétrica nacional, fornecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) por meio da Lei de Acesso à Informação. Sua ideia era entender as principais espécies de aves e biomas afetados pela rede elétrica.

Um dos primeiros resultados foi publicado em 2021. Aquele mapeamento já indicava a arara-azul-de-lear como uma das espécies prioritárias em relação ao risco de eletroplessão e desenvolvimento de medidas de mitigação.

Quando Biasotto publicou o artigo, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Cemave-ICMBio), e a pesquisadora Erica Pacífico estavam justamente observando um aumento significativo de eletroplessões da espécie em municípios como Canudos e Euclides da Cunha, na Bahia, onde Pacífico realiza suas pesquisas desde 2008. Apenas pela contagem de carcaças recolhidas próximas aos postes de energia elétrica por moradores, eram mais de 70 aves mortas desde então.

“Este é um número conservador, porque não considera todas que podem ter morrido em áreas pouco habitadas ou cujas carcaças foram consumidas por cachorros ou aves carniceiras. Há estimativas de que, na Caatinga, uma carcaça de animal dure no máximo três dias”, explica Pacífico, coautora do trabalho, coordenadora do grupo Pesquisa e Conservação Arara-azul-de-lear e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp).

O trabalho integra o projeto “Uso de novas ferramentas de biorrastreamento e analíticas para o estudo da ecologia do movimento e conservação de aves na Caatinga”, apoiado pela FAPESP e coordenado por Francisco Voeroes Dénes, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

O estudo tem ainda entre os autores Fernanda Paschotto, que realizou mestrado no IB-USP sobre a área de vida e seleção de hábitat da arara-azul-de-lear com bolsa da FAPESP.

Custo-benefício

Pacífico realiza o monitoramento contínuo da espécie desde 2008, catalogando ninhos e contando a população. Em 2017 passou a aplicar biologgers, coleiras que fornecem a localização por GPS, para coletar informações inéditas sobre o potencial de deslocamento diário de algumas das araras-azuis-de-lear e definir melhor sua área de atividade, composta em grande parte pelos locais de alimentação onde ocorre o licuri (Syagrus coronata). Os frutos da palmeira são a principal fonte de alimento da arara-azul-de-lear. Não por acaso, áreas de ocorrência do licuri são onde ocorre a maior parte das eletroplessões relatadas.

“Uma das inovações do trabalho é que não usamos a área de distribuição da espécie como um todo, como se costuma fazer em mapeamentos do tipo, mas a área de atividade, onde a probabilidade de eletroplessão é maior. É nesses locais que elas passam a maior parte do dia, se alimentando, interagindo entre si e se empoleirando em postes e fios de média tensão. Por serem mais altos do que a vegetação nativa, esses pontos oferecem uma visão privilegiada do território”, conta Biasotto.

A eletroplessão ocorre quando os animais tocam ao mesmo tempo um fio em que passa a corrente de energia e em outro em que ela não passa ou a voltagem é mais baixa. Por isso, uma solução proposta pelo Ministério Público da Bahia, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), é aumentar a distância entre os fios, o que demanda a troca dos postes iniciada pela empresa.

Segundo a análise de custo-benefício realizada pelos pesquisadores, ao mitigar os possíveis efeitos em 1% dos postes da área de risco mais alto de eletroplessão, 35% dos acidentes poderiam ser prevenidos, o que requereria intervenção em pelo menos 5.668 postes.

Uma vez que essa redução poderia ser insuficiente para a viabilidade populacional da espécie, os autores realizaram os cálculos considerando também 5% da área de maior risco (22.037 postes), o que preveniria 60% das eletroplessões.

Ao ampliar a modelagem para 10% e 20% das áreas de maior risco (o que requereria alterações em 37.412 e 63.966 postes, respectivamente), a redução de acidentes seria superior a 80% e 90% em cada cenário.

Proteção

A arara-azul-de-lear atualmente é definida como “ameaçada” tanto na lista brasileira de espécies em extinção quanto na da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Sua população é estimada em menos de 2.600 indivíduos, segundo o Plano de Ação Nacional para Conservação das Aves da Caatinga, do ICMBio. Por isso, os autores argumentam que reduzir as fatalidades em 60% pode não ser suficiente para garantir que a população seja viável em longo prazo.

“Até termos um estudo de viabilidade populacional da espécie, uma redução mais próxima de 90% seria mais cautelosa, realizando mudanças em 10% a 20% dos postes”, argumenta Pacífico.

Segundo Biasotto, além da troca dos postes, que provavelmente teria um custo elevado, outra solução seria o desenvolvimento de dispositivos que isolassem as estruturas elétricas e fornecessem um pouso seguro para as aves. Uma das tentativas foi isolar os fios com estruturas tubulares plásticas e, portanto, não condutoras. É uma solução em países europeus para proteger as aves de rapina, principais vítimas das eletrocussões naquela parte do planeta.

“No entanto, nos locais onde foram instaladas para testes na Bahia, as estruturas foram danificadas, provavelmente pela ação das condições climáticas e da instalação inadequada”, afirma a pesquisadora.

Diferentemente dos solitários rapinantes, as araras se congregam em grupos de até 50 indivíduos, exploram bastante o ambiente em que vivem e destroem com facilidade o material com seus bicos poderosos. Por isso, seria necessário desenvolver um dispositivo adequado à realidade do sertão e das aves que lá ocorrem.

Além de guiar futuras ações de mitigação de acidentes e proteger a arara-azul-de-lear, os pesquisadores argumentam que o modelo usado para o mapeamento pode, no futuro, incluir outras espécies de aves que ocorrem na região. O exemplo mais emblemático seria a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), extinta na natureza e atualmente parte de um programa de reintrodução. Por ter hábitos similares aos da arara-azul-de-lear, a ararinha-azul também poderia se beneficiar de um projeto de mitigação de eletrocussões.

No seu livro de 2002 sobre a saga para salvar a ararinha-azul, o autor Tony Juniper sugere que o último indivíduo da espécie teria morrido, justamente, eletrocutado.

O artigo Mapping priority areas to mitigate the risk of electrocution of range-restricted bird species pode ser lido em: https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1365-2664.70133.

Fonte: Um só Planeta

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