Na Ásia, a demanda por remédios tradicionais, animais exóticos e iguarias culinárias impulsiona um negócio de bilhões de dólares que está esvaziando as selvas, os campos e os mares.
Em 14 de setembro de 1998, Wong Keng Liang, um esguio malaio de óculos, desembarcou do voo 12 da Japan Airlines, no aeroporto internacional da Cidade do México. Poucos segundos após ser detido, Anson (nome pelo qual Wong é conhecido entre os traficantes de animais e os policiais encarregados de combatê-los) foi levado algemado pela polícia federal mexicana à maior prisão do país.
A prisão de Anson Wong foi uma vitória contra o mais procurado contrabandista de espécies ameaçadas em todo o mundo. Não foi fácil realizar essa façanha, que mobilizou autoridades da Austrália, do Canadá, do México, da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, e foi o ponto culminante de uma operação sigilosa que se arrastou por meia década – e ainda é considerada a mais bem-sucedida investigação internacional sobre tráfico de espécies silvestres.
Durante dois anos, Anson lutou para evitar sua extradição para os Estados Unidos, mas acabou por fazer um acordo, confessando crimes que poderiam lhe render uma pena máxima de 250 anos de prisão e multa de até 12,5 milhões de dólares. Em 7 de junho de 2001, foi condenado a 71 meses de prisão em uma penitenciária federal (reconhecendo-se, porém, que Anson já cumprira 34 meses), multado em 60.000 dólares e proibido de vender animais nos Estados Unidos durante três anos após sair da prisão.
Se imaginava que tal pena seria eficaz para coibir as atividades de Anson Wong, o juiz estava equivocado. Logo após Anson ter sido detido, Cheah Bing Shee, sua mulher e parceira de negócios, abriu uma nova empresa, a CBS Wildlife, que passou a exportar animais para a América enquanto o marido estava na prisão. Além disso, a principal empresa de Anson, a Sungai Rusa Wildlife, prosseguiu com suas remessas de animais mesmo após a proibição judicial. E agora que está livre, Anson lançou um novo empreendimento, um zoológico que promete ser a mais audaciosa de todas as suas iniciativas.
O jogo dos números
É quase impossível nomear uma espécie animal ou vegetal, de qualquer parte do planeta, que ainda não tenha sido comercializada – legal ou ilegalmente – em virtude de sua carne, pelo, pele, canto ou valor ornamental, como animal de estimação ou ingrediente de perfumes ou remédios. A cada ano, a China, os Estados Unidos, a Europa e o Japão gastam bilhões de dólares em espécies oriundas das regiões biologicamente mais ricas do mundo, como o Sudeste Asiático.
O caminho até o mercado mundial começa quando caçadores ou lavradores pobres capturam os bichos para mercadores locais que fazem parte de uma cadeia de intermediários. Na Ásia, os animais silvestres acabam nas mesas de banquetes ou em lojas de medicamentos; nos países ocidentais, nas casas de gente que aprecia exibir troféus de animais exóticos. A lógica econômica é tão simples quanto a de um leilão de obras de arte: quanto mais raro o item, mais alto é seu preço. E, como a natureza está acabando, os preços das criaturas mais raras só fazem subir.
Para evitar apreensões, os contrabandistas escondem a fauna ilegal em meio a carregamentos autorizados, subornam funcionários de órgãos de controle e da alfândega e falsificam documentos de exportação. Poucos chegam a ser capturados, e, mesmo nesses casos, as penas costumam ser brandas. É bem possível que o tráfico de espécies silvestres seja hoje a forma mais lucrativa de comércio ilegal.
Os contrabandistas também se aproveitam de uma brecha na Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagens em Perigo de Extinção (Cites, na sigla em inglês). Com 175 países signatários, a Cites é o principal tratado mundial para a proteção da fauna selvagem, classificada em três grupos segundo o perigo que corre cada espécie. Os animais incluídos no Anexo I, como os tigres e os orangotangos, são considerados tão vulneráveis à extinção que não podem ser comercializados. Já as espécies do Anexo II não estão assim periclitantes e podem ser negociadas sob um sistema de licenças. Aquelas que constam do Anexo III estão protegidas pela legislação nacional do país que as incluiu na lista. Mas o tratado da Cites tem uma brecha enorme: os espécimes criados em cativeiro não desfrutam da mesma proteção daqueles que vivem em condições naturais.
Os defensores da criação em cativeiro argumentam que essa norma alivia a pressão sobre as populações selvagens, reduz a criminalidade e atende à demanda internacional. Na prática, os contrabandistas montam falsas instalações de criação e depois alegam que animais e plantas recolhidos da natureza foram criados em cativeiro. Essa é apenas uma das técnicas usadas por Anson Wong para criar um negócio de fachada que encobria uma das maiores organizações de contrabando de espécies do mundo.
Agora, o famoso traficante de animais está se preparando para atuar em nova frente, com consequências catastróficas a um dos animais mais carismáticos e ameaçados do planeta: o tigre.
A fênix malaia
Há um valioso mercado negro para tigres.
Os tibetanos usam túnicas de pele de tigre; ricos colecionadores exibem sua cabeça como troféu; restaurantes de comida exótica vendem carne de tigre; seu pênis é tido como afrodisíaco; e os chineses usam seus ossos em tratamentos médicos, entre os quais vinho de osso de tigre, a “canja de galinha” da medicina chinesa. O valor no mercado negro de um macho adulto morto gira em torno de 10.000 dólares. Em alguns países asiáticos, atrações turísticas conhecidas como “parques de tigres” funcionam como fachada para o manejo de tigres – os animais em cativeiro são abatidos e retalhados, e, além disso, também constituem um mercado em potencial para os caçadores clandestinos de tigres selvagens.
Anson agora está construindo outro zoo, intitulado “Aldeia de Flora e Fauna”. O projeto já foi aprovado. Durante anos o casal Wong haviam mantido um zoo em Penang, o Jardim de Orquídeas, Hibiscos e Répteis Bukit Jambul.
Em dezembro de 2007, a coletiva de imprensa que marcou o lançamento do Aldeia de Flora e Fauna contou com a presença de duas das principais autoridades encarregadas da proteção da fauna na Malásia: o diretor da divisão de fiscalização do Perhilitan, Sivananthan Elagupillay, e sua chefe, a vice-diretora-geral do órgão, Misliah Mohamad Basir. O zoo, um empreendimento conjunto do departamento florestal de Penang e da empresa controlada por Anson Wong, será montado em uma área de 2 hectares na Reserva Florestal de Teluk Bahang e, para sua viabilização financeira, o governo estadual de Penang contribuíra com o equivalente a 200 000 dólares. No jornal malaio The Star, uma foto mostrava as autoridades inspecionando a área onde ficaria o novo tigre. “O valor da entrada será bem acessível, pois nosso objetivo é contribuir para a preservação de espécies ameaçadas”, declarou Michael Ooi, sócio de Anson Wong, aos jornalistas.
Anson sempre havia se vangloriado de seus contatos no governo. Agora contava com o apoio explícito tanto do governo de Penang como do departamento de fauna da Malásia, o Perhilitan. Em agosto de 2009, Misliah respondeu às alegações de que havia um relacionamento impróprio entre seu departamento e Anson Wong: “No que se refere à Malásia, ele respeita as leis e tem as licenças necessárias”, afirmou. “O que ele faz em outros países não é da nossa conta.”
Os zoológicos são ótimos disfarces. Os contrabandistas que controlam um zoo podem movimentar espécies ameaçadas com a papelada da Cites, e os programas de criação locais explicam o aparecimento de um espécime. Em geral, a Cites não se preocupa com o que acontece com um animal depois que ele é importado por um zoo: assim, um gorila pode ser vendido a um particular ou, se morrer (ou for morto), pode ser retalhado, sendo a carne ou as partes vendidas ou consumidas, ou então acabar empalhado.
Precisa-se de xerife
As ONGs, seus doadores e a imprensa tendem a se concentrar nos crimes contra os bichos de maior visibilidade, ao passo que as organizações criminosas multinacionais atuam invisíveis por trás de massas de registros corporativos, licenças da Cites e dados comerciais.
Além disso, os funcionários das ONGs contam com pouco tempo para cumprir tudo o que precisam fazer: levantamento de recursos financeiros, produção de relatórios sobre as espécies, divulgação na imprensa, encontros com doadores e tarefas administrativas. As ONGs não podem fazer o trabalho da polícia. Elas não têm autoridade para aplicar a lei, e seus funcionários precisam de vistos que podem ser cancelados dependendo de seu relacionamento com as autoridades. Se as ONGs vão longe demais, podem virar alvo de represálias.
Em 2008, o Traffic – departamento de investigação das organizações não-governamentais Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCF), com sede em Cambridge, na Inglaterra, e escritórios por todo o mundo, monitora atividades criminosas e transmite o que descobre aos órgãos encarregados de aplicar a lei nos países – divulgou um relatório sobre o comércio de órgãos de tigre em Sumatra e solicitou que as autoridades indonésias aumentassem sua vigilância. O resultado foi que a Indonésia congelou as atividades do Traffic, uma iniciativa que equivale à expulsão. Tonny Soehartono, o ministro de Recursos Florestais e responsável pela decisão, assim justificou a medida: “O Traffic atacou o meu país”.
O secretariado da Cites conta com um só funcionário – uma única pessoa – para a fiscalização do acordo. A Interpol também conta com apenas uma pessoa para cuidar de seu programa de combate aos crimes contra a fauna. Outros países dispõem de instrumentos úteis, como autorização para gravar conversas telefônicas, mas não desfrutam da amplitude do Lacey Act.
Um motivo de esperança pode ser uma nova organização regional, a Rede de Fiscalização da Fauna Selvagem da Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean-WEN, na sigla em inglês). Criada há quatro anos, a Asean-WEN reúne agentes alfandegários, promotores públicos e policiais de todos os dez países integrantes da aliança. Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos participam, e grande parte dos recursos vem da Usaid, o órgão federal americano voltado para a promoção do desenvolvimento internacional. Uma prova do potencial da Asean-WEN é o fato de que o próprio Anson Wong assina o boletim publicado pelo novo órgão.
Com informações de National Geographic