O Rio Grande do Sul já registrou, em 2022, 1.697 resgates de animais silvestres, conforme dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF). O estado é rota e destino de um mercado que movimenta bilhões de reais. O quadro JA Repórter, exibido no Jornal do Almoço, da RBS TV, nesta sexta-feira (27), revela como agem os negociantes de animais.
“Tenho jiboia. Iguana, eu tenho também. Tenho jabuti. Dá para parcelar no cartão em até 12 vezes”, diz um dos envolvidos.
O número de resgates de 2022 é três vezes maior que todo o ano passado e segue a tendência de 2020. No começo da pandemia de Covid-19, traficantes de animais aproveitaram a menor movimentação nas estradas para avançar com os negócios.
Ameaças e violência
Comprar animais silvestres não é difícil. Os traficantes usam as redes sociais como vitrine e, ao mesmo tempo, se aproveitam do anonimato.
A reportagem conversou com alguns deles. Um, de Caxias do Sul, na Serra, oferecia jacarés-do-papo-amarelo, animal na lista de extinção do Ibama, em grupos. Assim que foi procurado, quis saber quem havia indicado seu contato.
“Quero saber quem mandou o contato. Caso contrário, busca no Ibama, que até onde eu vi tu não está em nenhum grupo. Ou tu quer tomar tiro, ou tu quer conversar”, ameaça.
Outro, de Porto Alegre, anuncia vários tipos de animais, como macaco-prego, jiboia e lagarto. Entre eles, saguis, um macaco que não é nativo do Rio Grande do Sul e que pode transmitir raiva e outras doenças a humanos. Em um áudio, ofereceu condições para facilitar o negócio. No vídeo enviado para mostrar os animais, o som alto deixa os animais perturbados.
Fascínio e irresponsabilidade
Eles são da natureza e vivem livres. Contudo, a beleza exótica desses animais custa a própria liberdade em um mercado cada vez mais lucrativo, que se alimenta do fascínio com a vida selvagem e irresponsabilidade de gente comum.
“Em termos de valores envolvidos hoje, o tráfico de animais é o terceiro no mundo. Circulam, em torno deste delito, cerca de 20 bilhões de dólares por ano, perdendo apenas para tráfico de drogas e tráfico de armas”, afirma o comandante interino do Comando Ambiental da Brigada Militar, major Samaroni Teixeira Zappe.
Na avaliação do veterinário e analista ambiental do Ibama Paulo Guilherme Carniel Wagner, o mercado só existe porque há compradores, cidadãos comuns que não se enxergam como parte da rede de tráfico de animais.
“Só há traficante porque há comprador. E o comprador é um cidadão como nós, que se vê de fora da cadeia do tráfico”, alerta.
Segundo o inspetor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Felipe Barth, muitos animais são encontrados com sinais de maus-tratos ou até mortos. “É bem comum achar animais mortos, ou feridos, ou quase morrendo. Já encontramos pássaros em caixa de leite, já encontramos tartarugas escondidas em fundos falsos de veículos”, comenta.
Pássaros
O canto que parece música é o principal incentivo para quem aprisiona pássaros. Quanto mais bonito, mais cobiçado é o animal. O trinca-ferro, por exemplo, pode ser encontrado por R$ 100 mil.
“As aves elas são capturadas para fins de cativeiro, comércio e, inclusive, competição por serem muito apreciadas pelo seu canto e pela sua beleza”, afirma a delegada titular da Delegacia do Meio Ambiente, Marina Goltz.
Criar pássaros não é crime, mas, para isso, é necessário seguir uma série de regras, entretanto, facilmente burladas.
Ações policiais
No estado, é comum a Polícia Civil fazer apreensões de aves em casas e apartamentos após receber denúncias de vizinhos. Há, ainda, uma rede de pessoas atentas ao que acontece com esses animais.
Boa parte das investigações acontece graças ao ambientalista Vladimir da Silva e seus colegas da ONG Reprass, em Teutônia, a 108 km de Porto Alegre.
“A Reprass atua no trabalho de inteligência ambiental, recebendo denúncias da comunidade em geral e pessoas que residem próximos a traficantes de animais silvestres. Após isso, são feitos relatórios ambientais e encaminhados para a Polícia Civil e o Ministério Público”, conta.
Um desses relatórios resultou em uma operação em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no final de abril. A polícia foi atrás de pessoas que mantêm irregularmente animais em casa. Alguns se dizem criadores, mas nem todos os pássaros estão registrados no Ibama.
“Por causa de dois, três animais vão levar todos os meus animais”, diz um dos investigados ao ser abordado pela polícia.
Nessa operação, foram cumpridos 15 mandados de busca e resgate. Além disso, os agentes localizaram quase uma centena de pássaros em situação irregular. Ninguém foi preso.
O delegado Ivair Matos Santos explica que a pena para a maioria dos delitos ambientais, considerados de menor potencial ofensivo, são baixas.
“Geram apenas um termo circunstanciado. Normalmente, as pessoas assumem o compromisso de comparecer ao juizado especial criminal e, consequentemente, não são presas em flagrante”, lamenta.
‘Maior traficante do RS’
Um homem de 61 anos já foi flagrado ao menos 15 vezes por policiais civis por crimes contra a fauna. A primeira abordagem ocorreu em 1995. Segundo a delegada Raquel Peixoto, Altair Fraga Maciel é considerado o maior traficante de animais silvestres do RS.
O advogado de Altair, Renato Lima, afirma que os animais são criados pelo cliente como hobby e que não tem conhecimento dos elementos da investigação.
No site do Ibama, é possível encontrar multas não pagas que somam mais de R$ 1 milhão no nome do indivíduo. A maior delas é uma multa de R$ 564 mil de 2021. Nessa ocasião, o homem foi preso com o filho de 19 anos carregando 153 pássaros silvestres no carro.
Os policiais já conhecem o homem, que também já é se considera íntimo dos agentes. “Teve ocorrência dele chamar o policial pelo nome porque já conhecia”, diz Felipe Barth, da PRF.
Em certa ocasião, o homem foi flagrado carregando 18 cisnes no porta-malas de um carro popular. Aproximadamente a metade morreu. O lucro na venda dos animais poderia chegar a R$ 400 mil.
“Ele vai ter prejuízo? Não está interessado nisso. Se ele captura 500 e chega 100, ele já está com esse lucro de 100. Ele não está interessado na vida, ele está interessado no lucro”, diz Paulo Wagner.
De acordo com a delegada Raquel Peixoto, familiares do homem também são investigados por suspeita de envolvimento no negócio.
Recentemente, a Polícia Civil cumpriu seis mandados de busca e teve como alvo a família do suspeito. Além de endereços ligados a ele, os agentes foram atrás da esposa e dos dois filhos. Todos foram encontrados, menos o indivíduo. A filha, que já foi presa transportando animais, agora nega envolvimento.
Cuidados e resgate
O tráfico de animais vai muito além do dano à vida de pássaros, macacos e outros animais retirados da natureza. O biólogo Carlos Augusto Norman destaca que a captura e manutenção irregular de aves silvestres prejudica o meio ambiente, reduzindo a biodiversidade e impactando na fauna e na flora.
“Muitas aves disseminam sementes, muitas aves fazem esse biotrabalho para a gente, para a natureza”, explica.
O Centro de Triagem de Animais do Ibama, em Porto Alegre, reúne milhares de animais resgatados para tratá-los. Em todo o país, entre 150 mil e 200 mil animais são atendidos por ano.
Apesar dos esforços, parte dos animais chega tão debilitada que acaba sacrificada. Os que se recuperam são soltos na natureza.
Local abriga mais de 400 animais silvestres em Santa Maria
Do outro lado desta guerra contra criminosos, há pessoas que querem o bem dos animais. Uma clínica veterinária de Porto Alegre recebe, de forma totalmente gratuita, há 35 anos, aqueles resgatados por órgãos ambientais.
“Não sei se é um dom, um carma. Acho que, quando a gente estava lá, Deus disse ‘desce e vai cuidar dos animais'”, diz a veterinária Gleide Mariscano.
As autoridades ouvidas pela reportagem dizem que, para resolver o problema, é necessário mais rigor nas leis.
Fonte: G1