As tradições culturais entre primatas, cetáceos e outros animais precisam ser levadas em conta na hora de formular estratégias de proteção para essas espécies, de acordo com pesquisadores brasileiros. Identificadas com frequência cada vez maior, tais culturas não humanas estão em risco por conta dos impactos causados por seres humanos e podem servir como argumento importante em favor da proteção dos hábitats dessas espécies.
“Muito da diversidade comportamental que observamos em primatas como os macacos-prego, com seu uso de ferramentas, vem da transmissão social”, explica a bióloga Patrícia Izar, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). “Ou seja, depende de condições peculiares de desenvolvimento dos organismos, as quais, por sua vez, estão ligadas a características do hábitat, ao contato com alimentos, a possibilidades de forrageamento e a materiais que podem desaparecer dependendo do impacto sofrido pelo ambiente desses animais.”
Izar assina um dos artigos publicados em maio em uma edição especial do periódico científico Philosophical Transactions of the Royal Society B sobre o tema. A bióloga brasileira e suas colegas Erica van de Waal, da Universidade de Lausanne, na Suíça, e Martha Robbins, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, abordaram a questão com base no que se sabe sobre os primatas não humanos. Outros trabalhos na mesma edição, com participação de brasileiros, traçam um panorama dos dois grandes grupos de cetáceos, os odontocetos (como golfinhos, orcas e cachalotes) e os misticetos (o grupo das baleias-azuis e jubartes).
No caso dos primatas, é comum que as tradições culturais, transmitidas de uma geração a outra, envolvam a fabricação e o uso de ferramentas. Tanto chimpanzés (Pan troglodytes), residentes na parte central da África, quanto macacos-prego da espécie Sapajus libidinosus, presentes em áreas de Cerrado e Caatinga, usam uma combinação de instrumentos que os cientistas classificam como martelos e bigornas. São, respectivamente, uma pedra segurada pelo animal e outra maior, ou uma raiz grande e dura, no chão, combinadas como kit para quebrar coquinhos ou outros frutos duros. A prática é apreendida pelos mais novos ao observarem os mais velhos.
Sem poder contar com mãos e polegares, os cetáceos não são tão hábeis na manipulação de instrumentos, mas há casos desse tipo entre eles – certos golfinhos-nariz-de-garrafa (Tursiops aduncus) seguram esponjas no focinho para cutucar com mais segurança o leito marinho, em busca de presas. Tradições culturais que não envolvem necessariamente ferramentas físicas, porém, também estão sendo documentadas em diferentes espécies do grupo.
Há técnicas especializadas de caça, como a combinação entre batidas da cauda na superfície da água e uma “rede de bolhas” produzida por baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae) na costa do estado norte-americano do Maine para desorientar suas presas. Já no litoral de Santa Catarina, movimentos vigorosos de cabeça e saltos de golfinhos-nariz-de-garrafa (localmente chamados de botos-da-tainha) indicam aos pescadores o melhor momento para capturar peixes como tainhas. Os mamíferos marinhos se beneficiam com o duplo ataque à presa – uma tradição cultural que, nesse caso, parece ter evoluído de forma cooperativa entre humanos e cetáceos.
Segundo o biólogo brasileiro Mauricio Cantor, do Instituto de Mamíferos Marinhos da Universidade Estadual do Oregon (OSU), nos Estados Unidos, ainda não está claro como os botos aprendem a colaborar com os pescadores catarinenses. Em estudos no município de Laguna, liderados por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), alguns dados sugerem que o aprendizado da técnica ocorre de forma vertical, ou seja, de mães para filhotes.
“Mas suspeitamos que a transmissão horizontal, ou seja, o aprendizado entre indivíduos da mesma geração, também tenha um papel importante. E nos parece que existe ainda o papel da competição, que limita o acesso ao comportamento”, diz ele. Isso porque não há espaço para que todos os botos de Laguna sejam “parceiros” dos pescadores. “Temos visto que alguns indivíduos monopolizam os locais e oportunidades de interação, restringindo a difusão da técnica para a população toda”, explica Cantor, que assina um dos artigos na Philosophical Transactions.
Por fim, os complexos sistemas de comunicação sonora entre cetáceos também contam com um componente de transmissão cultural, como o surgimento de “dialetos” de jubartes nas diferentes subdivisões do oceano. As canções dessas baleias podem até sofrer mudanças abruptas, que lembram o espalhamento de novos estilos musicais humanos, com grandes alterações na sequência e no ritmo de notas, como mostrou artigo da bióloga marinha Maria Isabel Gonçalves, da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), e colaboradores, publicado em 2024 na Marine Mammal Science.
“Detectamos esse tipo de transição na população brasileira de baleias-jubarte em 2017 e 2018”, conta Gonçalves, coordenadora do Projeto Baleias na Serra e autora de um dos artigos da edição especial, em parceria com colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Todos os anos esse canto vai evoluir, às vezes mais rápido, outras vezes mais devagar, mas uma mudança abrupta assim ainda não tinha sido registrada aqui. Ainda não conseguimos identificar se é algo que vem do contato com outras populações da espécie na Antártida, o que possibilita intercâmbios culturais e mudanças de dialetos.”
Erosão cultural
Enquanto a parceria entre botos e pescadores é uma interação com benefícios mútuos que vem de uma tradição centenária no litoral brasileiro, há mudanças em tradições culturais dessas espécies que estão ligadas a processos recentes de degradação ambiental.
Estudos com bugios (gênero Alouatta) feitos há cerca de uma década pela primatóloga mexicana Ariadna Rangel Negrín, da Universidade de Veracruz, revelaram, por exemplo, que o repertório comportamental desses macacos perde metade de sua diversidade quando as populações ficam restritas a áreas pequenas de mata. Os bugios, embora sejam exclusivamente herbívoros em condições normais, diante do desmatamento podem apelar para o consumo de ovos de aves ou até de carne descartada por humanos, com consequências potencialmente graves para seu sistema digestivo. Um caso parecido, com o consumo de sobras de churrasco, foi registrado nos últimos anos com bugios do Rio Grande do Sul (ver Pesquisa FAPESP nº 334).
No caso dos macacos-prego S. libidinosus estudados por Izar e seus colegas da USP, as áreas onde eles vivem estão sendo reduzidas pelo uso agrícola, que aumentou 300% entre 1987 e 2017, enquanto alterações climáticas em um dos locais acompanhados pela equipe têm levado a uma diminuição da produção dos frutos duros de palmeiras, que estão entre os principais alvos da tradição dos martelos e bigornas.
O ambiente mais homogêneo e, portanto, menos complexo limita o repertório comportamental dos macacos e gera competição pelos recursos disponíveis. “Os indivíduos imaturos também passam a ter menos oportunidades para o processo de aprendizado longo que vai permitir que eles dominem as tradições locais”, explica Izar. Além disso, aumenta o risco do contato direto com pessoas, que podem não resistir à tentação de oferecer comida a macacos aparentemente dóceis. “Se eles passam a enxergar o ser humano como fonte de alimentos, isso pode levar a conflitos e interações agressivas.”
Evitando o pior
Para a pesquisadora da USP, evitar que esse processo de deterioração progrida exige o reconhecimento de que é preciso proteger o nexo entre características culturais, condições ambientais e cada uma das espécies.
“Sapajus libidinosus, por exemplo, não é uma espécie ameaçada – ainda”, diz ela. “Ou seja, não é simples obter recursos para proteger seu hábitat segundo a lógica atual. Mas, quando mostramos que a espécie apresenta transmissão cultural, práticas culturais únicas podem se transformar em bandeira para a preservação daquela área, com argumentos que vão além da proteção da diversidade genética da espécie.”
Por outro lado, a compreensão dos padrões de transmissão cultural também ajuda a enxergar recursos estratégicos para a saúde das populações de animais. “Ao compreender a evolução do canto das jubartes, por exemplo, conseguimos entender como ocorrem intercâmbios entre populações, se elas usam outras áreas de alimentação e reprodução que não as tradicionais, e quais são as suas rotas migratórias”, diz Maria Isabel Gonçalves. No caso dos cetáceos, o inverso é verdadeiro: há indícios de que a perda de tradições culturais sobre rotas migratórias, provavelmente causada pela redução populacional durante a atividade baleeira predatória no século XX, fez com que algumas espécies de baleias “esquecessem” que determinada região seria favorável para a busca de alimento ou a reprodução.
Entender melhor como esses padrões estão relacionados com a viabilidade de longo prazo de populações e espécies inteiras depende, em parte, de estudos sobre os processos de transmissão cultural, como os que estão sendo feitos sobre os botos de Santa Catarina. Diferentes espécies podem acabar adotando padrões bastante distintos – entre os cetáceos, certas comunidades de orcas parecem seguir um sistema bastante rígido de transmissão cultural pela via materna, com sociedades estáveis e relativamente fechadas, enquanto tendências circulam de forma mais fluida entre grupos de golfinhos.
Mesmo no que diz respeito a animais considerados tão carismáticos quanto macacos e baleias, o que se sabe sobre essa diversidade ainda é muito pouco. Izar e suas coautoras estimam que menos de 3% das espécies de primatas identificadas até agora já foram objeto de estudos sobre suas tradições culturais. Já o levantamento feito por Mauricio Cantor e seus colaboradores indica que, na literatura científica, 70% dos estudos sobre táticas de forrageamento de odontocetos estão ligados a apenas três espécies (orcas e dois tipos de golfinhos-nariz-de-garrafa). “A concentração de estudos se dá, parcialmente, pela logística – são espécies cosmopolitas, carismáticas, abundantes e vivem relativamente próximo da costa”, diz ele sobre os cetáceos.
“O desequilíbrio tem a ver, em parte, com tradições de pesquisa”, analisa Izar. “No caso dos macacos neotropicais [das Américas], existe uma tradição de estudos de ecologia e de proteção, e um certo abandono dos estudos de comportamento.” Segundo a pesquisadora, culturas como o uso de ferramentas foram observadas no Cerrado e na Caatinga, biomas que começaram a ser estudados mais tardiamente pela primatologia. “Tudo está sendo destruído e mudando muito rápido”, lamenta.
Fonte: Nexo Jornal