Em uma expedição liderada pelo naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff, entre os anos de 1825 e 1829, o francês Hercules Florence, um dos pioneiros da fotografia no mundo, percorreu o interior do Brasil. Desenhista refinado, a missão de Florence era fazer o registro iconográfico da aventura científica. Além de reproduzir elementos da natureza e os índios, ele também registrou os cantos dos pássaros por meio de transcrições musicais. À partir de então, ele iniciou os estudos de bioacústica tanto por estas regiões quanto no mundo.
Atualmente, os cientistas ocupados em investigar a comunicação sonora animal dispõem de recursos mais refinados, como gravadores digitais e softwares. “Trata-se de uma área de investigação relativamente nova. Avançamos bem em termos de conhecimento, mas ainda é preciso progredir muito mais”, afirma o biólogo Carlos Barros de Araújo, que pesquisa a comunicação sonora dos psitacídeos (araras, papagaios, periquitos, calopsitas etc), especificamente os que vivem no Cerrado brasileiro.
Uma tese de doutorado sobre o tema, no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, acaba de ser concluída por Araújo. O trabalho, que aprofundou a abordagem feita por ele no mestrado, analisou o padrão da comunicação e a relação deste com a alimentação de 15 espécies de psitacídeos. O biólogo identificou, via modelo matemático e por meio de medidas realizadas do solo, que o “diálogo” entre algumas espécies pode ocorrer a distâncias de até 1,5 quilômetros.
“Normalmente, os animais dormem em bandos únicos. De dia, eles se espalham, provavelmente para tornar a busca por alimentação mais eficiente. Assim, a comunicação a grande distância serve basicamente para agregá-los durante o dia e principalmente ao final da tarde, uma vez que as espécies pernoitam em grandes dormitórios comuns”, explica.
Um aspecto importante também detectado pelo biólogo é a interferência da perturbação ambiental (ruídos urbanos) na comunicação sonora dessas aves. Por conta do problema, adverte o especialista, essa comunicação vem sendo brutalmente reduzida. “Nossos modelos preveem uma redução de 1.500% na distância de comunicação de algumas espécies!”. Quando não, os animais são forçados a mudar seu canto. “Muitas espécies passam a cantar frequências mais agudas e com uma maior intensidade quando submetidas a ruídos de grande intensidade”, relata.
No Brasil, de acordo com Araújo, não há leis específicas que protejam os psitacídeos ou outras espécies desse tipo de interferência, ao contrário do que ocorre na Europa. Lá, é comum a colocação de barreiras acústicas em rodovias ou avenidas que cortam ou passam ao lado de áreas habitadas ou onde há fauna representativa. Desse modo, o som dos veículos é refletido e retorna ao ponto da emissão, sem afetar o bioma. O pesquisador acredita que é necessária a criação desse tipo de legislação por aqui, afinal, o ruído pode ter grande impacto na biologia das espécies.
Em relação ao comportamento alimentar das espécies investigadas, Araújo diz ter encontrado um gradiente. Assim, há desde aves especialistas que comem somente o fruto do buriti (um tipo de palmeira) tal como o maracanã-do-buriti (ao lado), até aquelas generalistas que ingerem uma ampla gama de itens alimentares, tal como a maritaca ou periquitos, que conseguem se adaptar com certa facilidade aos ambientes antrópicos.
Ao pesquisar o padrão de alimentação dos psitacídeos, o biólogo aproveitou os dados para tentar melhorar os modelos de previsão da distribuição geográfica das espécies. Ao cruzar informações alimentares com as características físicas dos ambientes, ele percebeu que o modelo se tornava mais refinado. “Entretanto, há alguns aspectos que ainda precisam ser aperfeiçoados. Estou neste momento discutindo essa questão com meu coorientador, Gabriel Costa”, observa o autor da tese.
Corrida contra o tempo
E qual a relevância de se investigar a comunicação sonora e o comportamento alimentar dos psitacídeos? De acordo com Araújo, quanto mais a ciência sabe sobre eles, mais condições tem de estudar e propor ações que possam contribuir para preservá-los. O biólogo lembra que araras e papagaios estão entre as espécies mais ameaçadas de extinção no mundo. Além do que, no Brasil, estão entre os alvos preferenciais dos contrabandistas de animais, como a mídia mostra de forma recorrente. Contudo, ele reconhece que os conhecimentos gerados pela bioacústica ainda têm sido pouco utilizados, principalmente no País, para a formulação de políticas públicas ou mesmo para a definição de manejos que objetivem preservar essas ou outras espécies.
“Isso pode estar relacionado, de certa forma, à dificuldade em se estudar o grupo. Até 2005, nós tínhamos muito pouca informação sobre os psitacídeos. Atualmente, temos alguns grupos dedicados ao estudo das espécies, como o da Unicamp, liderado pelo agora aposentado professor Luiz Octavio Marcondes Machado. Há também pesquisadores do Mato Grosso e do Pará que estão realizando trabalhos importantes na área. Esse esforço tem sido recompensado, pois hoje temos mais informações sobrecomunicação, alimentação e reprodução das aves. Descobrimos muitas coisas, mas temos muito mais a descobrir”, analisa o autor da tese.
No que toca especificamente à comunicação sonora dos psitacídeos, Araújo destaca que já foi possível identificar que cada nota emitida pelas espécies tem um contexto específico, como sinal de agregação ou sinalização de sentinela. “No segundo caso, um indivíduo normalmente fica na copa da árvore observando a presença de predadores e emitindo um som de intensidade baixa, possivelmente para avisar aos demais membros do bando da presença de um sentinela. Quando um predador de fato se aproxima, é o sentinela que emite uma nota de alarme, de alta intensidade, para avisar aos demais”.
Portanto, de acordo com Araújo, os grandes desafios a serem superados dentro desse campo de investigação são a escassez de tempo e a falta infraestrutura, principalmente a humana. O biólogo assinala que o Brasil já perdeu algumas espécies de aves por causa da degradação da natureza e de outras ações do homem. Um exemplo disso é a ararinha-azul-de-spix, ela ocorria na caatinga nordestina, mas atualmente não é mais encontrada na natureza. Hoje, existem pouquíssimos espécimes vivendo em cativeiro.
Em relação ao Cerrado, existem previsões de que em 2030 a vegetação seria restrita a reservas, que hoje representam somente 2% da distribuição original. “Estamos correndo contra o tempo. O Brasil conta com mais de 1.800 espécies de aves. Essa diversidade demandaria o trabalho de um grande número de ornitólogos. A Inglaterra, que soma apenas 400 espécies, tem um número de profissionais muito maior do que o nosso”, compara o especialista, que contou com bolsas de estudos concedidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação, e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
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Fonte: EPTV