“Pode o animal falar? Um estudo sobre o especismo no jornalismo brasileiro contemporâneo” é o título da tese de doutorado da jornalista Daniela Caniçali, que acaba de ser publicada e já está disponível no acervo on-line da biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O trabalho mostra como a imprensa brasileira aborda temas envolvendo outras espécies, representando uma importante contribuição para se refletir sobre a atuação de jornalistas e empresas de comunicação no debate sobre ética e direitos animais.
A pesquisa parte de uma perspectiva teórica não antropocêntrica, não especista e decolonial, procurando desconstruir visões de mundo dualistas e estereotipadas. Antes de analisar as coberturas jornalísticas em si, a autora apresenta, no primeiro capítulo, um panorama histórico com os principais argumentos desenvolvidos em defesa dos animais no Ocidente. A pesquisa expõe vozes que mutias vezes são ignoradas mesmo por quem já está envolvido com o debate sobre direitos animais, e também textos de indivíduos que se tornaram célebres em suas respectivas áreas de atuação, mas cujo envolvimento com a causa animal permaneceu praticamente desconhecido. O capítulo começa descrevendo o pensamento de Pitágoras, Plutarco, Porfíro, passa por Leonardo da Vinci, Montaigne, Voltaire, Schopenhauer, Tolstói, Gandhi, e conclui com autores contemporâneos como Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione. Ao todo, são apresentadas as ideias de cerca de 30 acadêmicos, cientistas, escritores, artistas, ativistas.
A pesquisadora reconhece que o especismo – isto é, a discriminação e consequente exploração de outras espécies – ainda é “invisível” para os jornalistas, assim como para a maior parte da população. A seleção de matérias para o estudo priorizou aquelas que teriam maior probabilidade de dedicar espaço a esse debate. “Minha pergunta de partida foi: ‘Em que medida a perspectiva dos direitos animais está presente em notícias e reportagens que abordam os direitos animais?’ Sabemos que ainda vivemos em uma sociedade antropocêntrica e especista e o jornalismo tende a expressar somente as perspectivas de mundo hegemônicas. Decidi então analisar apenas as matérias em que os não humanos eram os personagens principais e a ideia de direitos animais já estava em pauta”, explica.
Seu estudo concluiu que, mesmo nos casos em que os animais eram centrais nos assuntos reportados, seus interesses e pontos de vista foram recorrentemente ignorados e negligenciados. “De forma geral, os textos jornalísticos são enviesados, parciais, imprecisos, insensíveis e cegos à realidade do outro. Um dos preceitos básicos do jornalismo é ‘ouvir todos os lados’, ‘dar voz ao outro’. No caso das outras espécies, ficou claro que isso não se aplica. Suas ‘vozes’ foram desconsideradas nas coberturas que analisei”, escreveu nas considerações finais do trabalho.
Rodeios
No segundo capítulo, a tese faz um estudo crítico da cobertura midiática envolvendo o uso de animais para “entretenimento” e “esporte”. A autora analisa um período de 10 anos da cobertura da Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos (SP), realizada pela Folha de S. Paulo. Entre as 423 notícias que o jornal publicou entre 2010 e 2019, foram examinadas as 63 em que o tema dos direitos animais esteve em pauta. Dessas, sua pesquisa verificou que apenas 15 apresentaram o ponto de vista contra a realização de rodeios. “Esse número representa 3,5% de todas as matérias que a Folha publicou sobre o rodeio de Barretos. É uma porcentagem muito baixa, sobretudo considerando que já existe um debate em curso na sociedade civil e no campo jurídico sobre a inconstitucionalidade do uso de animais para o que chamam de ‘entretenimento’ e ‘esporte'”, observou. Ela ressalta ainda que, mesmo nas ocasiões em que os defensores dos animais eram entrevistados, seus argumentos eram quase sempre preteridos em favorecimento dos apoiadores dos rodeios.
Ao analisar um período de 10 anos, o estudo revelou também que, apesar dos avanços no debate sobre o tema ao longo da última década, a cobertura do jornal não mudou de forma significativa. Isso se deve, em grande parte, ao modelo de negócio que ainda sustenta o jornalismo brasileiro, conforme a autora afirma no trabalho: “A dependência da publicidade influencia e por vezes distorce a cobertura da imprensa sobre os mais diversos temas. Mesmo que os repórteres não sejam expressamente impedidos de dar mais visibilidade a determinada perspectiva, eles muitas vezes não se sentem à vontade para fazer isso. A maioria sequer considera essa possibilidade. Nesse contexto, o ponto de vista dos animais simplesmente não é levado em conta.”
A pesquisa destaca que o desconhecimento sobre o tema também contribui para que as coberturas sejam enviesadas: “Muitos jornalistas não conseguem mesmo ver o sofrimento animal porque, para eles, não humanos não são ‘indivíduos’, não são seres ‘dignos’ de nosso respeito e consideração. O contexto que envolve cada cobertura também pode reforçar essa incapacidade de ver além do status quo e de desenvolver um senso crítico aguçado sobre temáticas não hegemônicas. O trabalho diário de um repórter envolve muitas variáveis que podem facilmente distanciá-lo de um jornalismo que pretende ser ‘isento’ e ‘equilibrado’.”
Exportação de bois vivos
O terceiro capítulo da tese dedica-se à cobertura da decisão judicial que proibiu temporariamente a exportação de gado vivo em todo o país. O fato ocorreu em fevereiro de 2018 e levantou intensos debates sobre maus-tratos a animais no transporte marítimo intercontinental. Dessa vez, a pesquisadora examinou um conjunto de 171 matérias publicadas por 17 veículos diferentes em um período de três anos – 2017, 2018, 2019. “Decidi verificar tudo que saiu na imprensa sobre o tema antes e depois do ‘caso do Porto de Santos’, como esse episódio ficou conhecido. Meu objetivo era observar se houve alguma mudança significativa na cobertura jornalística depois que uma decisão judicial inédita deu visibilidade a uma prática que existe há anos no Brasil, mas segue desconhecida pela maioria dos brasileiros”, explica.
A pesquisa constatou que apenas 18% dos textos – 31 das 171 matérias – apresentaram a perspectiva dos animais: “Mesmo as matérias que consideraram o ponto de vista dos animais eram, frequentemente, bastante limitadas e inconsistentes. Na maioria das vezes em que ativistas foram ouvidos, suas ideias eram imediatamente desacreditadas por representantes do agronegócio, que geralmente tinham muito mais espaço para se manifestar. Informações claramente falsas, apresentadas pelos ruralistas, eram reproduzidas como se fossem verdadeiras. E se por um lado essas fontes sempre podiam responder às críticas e acusações que recebiam das ONGs, os ativistas não tinham a mesma oportunidade.”.
Segundo a autora, a exportação de animais vivos raramente é pautada pela imprensa brasileira. De todas as matérias publicadas ao longo desses três anos, praticamente a metade delas – 47% – saiu em fevereiro de 2018, durante a cobertura do “caso do Porto de Santos”. Antes e depois desse acontecimento, uma quantidade ínfima de notícias abordou o tema. E mesmo nesse período em que houve uma abundância de matérias, os textos eram em geral inconsistentes, conforme relata na tese: “Nos anos de 2017 e 2019, a atividade esteve praticamente ausente do noticiário. E mesmo no período em que a cobertura foi intensa, a maioria dos textos eram incompletos e cheios de informações equivocadas. Os repórteres, em geral, recorriam a pouquíssimas fontes e muitas vezes citavam uma única fonte no texto. A quantidade de entrevistados que representavam cada uma das perspectivas em disputa – a favor e contra a exportação de animais vivos – era claramente desproporcional. A imprensa atuou majoritariamente em consonância com os poderes econômicos e políticos – isto é, favorecendo os já favorecidos.”
A pesquisa de Daniela Caniçali evidencia a influência do agronegócio nesse tipo de cobertura, sobretudo por seu enorme poder econômico, infinitamente maior daqueles que lutam pelos animais. “Esse poder é amplificado com o apoio explícito dos veículos jornalísticos. A proibição das exportações sequer era uma possibilidade para a imprensa, que sempre reiterava discursos que ‘garantiam’ que as empresas respeitavam a legislação vigente. Além de omitir e negligenciar muitas informações importantes que contradiziam os discursos dos pecuaristas, os veículos tampouco acompanharam os desdobramentos dos fatos”, destaca a autora no trabalho.
Para além do sofrimento animal, diversas outras questões relevantes foram igualmente negligenciadas pelos veículos jornalísticos: “Absolutamente nenhum veículo questionou sobre os inevitáveis danos ambientais que o transporte marítimo de animais causaria nos oceanos. Tampouco houve qualquer esclarecimento sobre os problemas gerados pela grande quantidade de dejetos que foram lançados em espaço urbano, contaminando a rede de drenagem do município de Santos (SP) e causando diversos transtornos aos moradores, sobretudo relacionados aos fortes odores oriundos dos excrementos dos animais. A possibilidade de propagação de zoonoses decorrentes do confinamento de milhares de animais em espaços exíguos e durante longos períodos foi igualmente ignorada.”
A autora constata que, em relação ao debate sobre direitos animais, a imprensa brasileira mostra-se bastante parcial e por vezes irresponsável, por fornecer informações não apenas inconsistentes, como equivocadas: “Ao manterem-se permanentemente comprometidos com seus vínculos comerciais, os veículos produzem matérias repetitivas, homogêneas, previsíveis. De forma geral, os textos reforçam a única perspectiva de mundo concebida como ‘verdadeira’ e ‘legítima'”, afirma, concluindo, ao final do trabalho, que as ‘vozes’ dos animais, como a de muitos outros grupos marginalizados na sociedade, não têm espaço no jornalismo brasileiro contemporâneo.
O texto completo da tese “Pode o animal falar? Um estudo sobre o especismo no jornalismo brasileiro contemporâneo” está disponível aqui.
Mais informações sobre a pesquisa podem ser solicitadas pelo e-mail [email protected].
ANDA move ações contra exportação de animais
A Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) entrou com duas ações contra a exportação de animais. A primeira, feita em conjunto com a Associação de Proteção Animal de Itanhaém (AIPA), solicitou a interrupção das operações no porto de Santos com base nas implicações ambientais e nos crimes de maus-tratos registrados durante o embarque feito pelo porto em dezembro de 2017.
O pedido das entidades foi aceito pelo desembargador Luis Fernando Nishi, que determinou a suspensão imediata das operações no porto no final de janeiro deste ano. Dias depois, entretanto, a liminar foi derrubada por um recurso impetrado pela Advocacia Geral da União (AGU) e o navio seguiu viagem.
A segunda ação, movida exclusivamente pela ANDA, foi contra os embarques de animais vivos no porto de São Sebastião. Devido à existência de outras duas ações contra tais operações no porto que tinham como foco os maus-tratos contra os animais, a ANDA optou por usar o enfoque ambiental como fundamento para se opor à exportação de animais vivos em São Sebastião.
Após a ação ter extraviado, a ONG impetrou um mandado de segurança solicitando o julgamento da liminar. O mandado foi deferido pelo juiz Dr. Guilherme Kischner que, em abril, suspendeu temporariamente os embarques no porto.