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EXTRATIVISMO

Tem um jumento na sala da COP 30

Como é possível o Brasil proferir um discurso de bioeconomia se permite atividades insustentáveis como o abate de jumentos?

12 de novembro de 2025
Patricia Tatemoto
3 min. de leitura
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Foto: The Donkey Sanctuary/Divulgação

A COP 30 em Belém será uma oportunidade ímpar para o Brasil se projetar como liderança global nas discussões sobre a crise climática. No entanto, permanecem abertas algumas contradições capazes de fragilizar qualquer narrativa ambiental do país, como o abate de jumentos. Visando a exportação de peles para a China, trata-se de uma atividade extrativista, sem relevância econômica, mesmo diante do iminente risco de extinção da espécie nos próximos anos.

Jumentos são o símbolo da resistência nordestina, com um patrimônio cultural imensurável para o Brasil. Foram eles que moldaram o desenvolvimento do país, carregando água, colheitas e pessoas, sem contar o valioso recurso genético, com evidências científicas no seu papel ecológico positivo em ecossistemas nativos – algo relevante na atual crise climática. Como é possível o Brasil proferir um discurso de bioeconomia se permite atividades insustentáveis como o abate de jumentos?

Enquanto o governo federal autoriza essa prática, mais de 248 mil jumentos foram abatidos entre 2018 e 2024, apenas na Bahia, onde três frigoríficos operam com anuência do Serviço de Inspeção Federal. De cada 100 animais existentes na década de 1990, restam hoje apenas seis. Sua pele contém o colágeno usado pela indústria de países asiáticos, principalmente na China, para fazer o ejiao – substância que supostamente traz mais vitalidade para quem a usa.

Apesar de a demanda global ser de 5,9 milhões de peles por ano, o lucro das exportações brasileiras não fica aqui. Resta ao Brasil apenas o passivo ambiental e o risco reputacional ao agronegócio brasileiro, em função da ausência de rastreabilidade e práticas que desrespeitam diretrizes internacionais.

Segundo o pesquisador Roberto Arruda Souza Lima, da Esalq/USP, a contribuição do setor para as exportações brasileiras é insignificante (menos de 0,000003% do total) e os municípios em que os abatedouros estão alocados, como Amargosa, na Bahia, não registraram crescimento econômico ou aumento na arrecadação de impostos durante as operações de abate.

A indústria de abate depende da captura de jumentos, e não de criação em fazendas. Como a taxa de reposição é lenta e as características biológicas do animal não permitem sua produção em escala no curto prazo, a oferta tende a se esgotar totalmente em uma dinâmica clássica da “tragédia dos comuns”. Sua criação economicamente inviável diferencia a exportação de peles dos jumentos de outras do agronegócio, tornando-a predatória e extrativista. Soma-se a isso o fato de não haver uma cadeia estruturada nem controles sanitários rígidos nessa atividade, além de impactos ambientais e culturais e o risco incontroverso à saúde pública.

Há, no entanto, uma alternativa para abastecer o mercado internacional e atender a essa demanda crescente, promovendo arrecadação de impostos, empregos formais e avanço biotecnológico no Brasil. O Laboratório de Zootecnia Celular da Universidade Federal do Paraná desenvolve um protocolo para produzir o couro do jumento por “fermentação de precisão”, a mesma tecnologia que produz insulina. Para avançar, a inovação depende de recursos e tempo — dois ativos escassos para os jumentos, mas que o governo federal poderia garantir.

Em fevereiro de 2024, os 55 chefes de Estado da União Africana determinaram a suspensão imediata do abate de jumentos. Enquanto o continente avança e reconhece que preservar a espécie é proteger a saúde e economias locais, o Brasil ainda se mantém preso a um modelo extrativista que ameaça sua credibilidade ambiental.

A contradição, portanto, é evidente. O jumento – que poderia ser fonte de estudos para a capacidade de adaptação climática, um dos temas centrais da COP 30 – caminha para a extinção. Como justificar o seu abate indiscriminado num país cuja agenda defendida em Belém é exaltada pela inovação de propostas por um planeta mais sustentável? Longe de ser periférico, o debate sobre os jumentos é um teste de coerência entre discurso e prática na COP do Brasil.

Fonte: Diplomatique

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