Com base em uma tecnologia semelhante à utilizada nos serviços de pagamento automatizado de pedágios e estacionamentos, uma empresa paulista está desenvolvendo um novo sistema de telemetria que oferecerá uma alternativa útil para o monitoramento da vida silvestre.
O novo sistema está sendo desenvolvido pela startup Trapa-Câmera, da capital paulista, com apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP. O objetivo da empresa é que ele seja uma ferramenta de pesquisa para biólogos em estudos científicos, em trabalhos de organizações não governamentais (ONGs) que acompanham espécies em risco de extinção ou empresas de consultoria ambiental.
A radiotelemetria já é amplamente utilizada por pesquisadores das áreas de biologia e ecologia, especialmente em estudos voltados para biologia da conservação e manejo de espécies selvagens. Acoplando um radiotransmissor ao corpo do animal, os cientistas podem rastreá-lo e obter informações sobre a história natural deles. A depender do desenho do estudo e da espécie-alvo, porém, a bateria desse radiotransmissor pode se tornar um problema.
A ausência de bateria é justamente o principal diferencial da nova ferramenta desenvolvida por pesquisadores da Trapa, que não utiliza radiotransmissores, de acordo com o pesquisador responsável pelo projeto, o biólogo Sérgio Marques de Souza.
“Um dos problemas da bateria é o peso, que é desconfortável para o animal e pode alterar seu comportamento, comprometendo o resultado dos estudos”, diz Souza, que é um dos sócios da empresa.
Outro problema importante das baterias, segundo o pesquisador, é a durabilidade. “Quando a bateria acaba é preciso localizar o animal para trocá-la, o que implica mais estresse para ele. Para aumentar essa durabilidade, é preciso aumentar o tamanho e, consequentemente, o peso do dispositivo. Além disso, as baterias eventualmente vazam, liberando componentes tóxicos para o animal e para o ambiente”, explica Souza.
Para eliminar a bateria dos transmissores, os pesquisadores da Trapa se inspiraram na tecnologia RFID (Identificação por Radiofrequência, em inglês), que se popularizou nos sistemas de cobrança automática de pedágios.
“Em vez do radiotransmissor, usaremos como transmissor uma pequena etiqueta, semelhante à dos sistemas de passe livre em pedágios. Isso abre muito o leque de possibilidades de monitoramento, pois é possível fazer a telemetria de animais muito pequenos, como abelhas”, explica Souza.
“A eletricidade fica armazenada exclusivamente nos receptores, que ficam dispostos de acordo com os critérios definidos no estudo. Quando o animal passa nas proximidades, o receptor ativa o transmissor no animal, que emite o sinal de sua passagem”, diz o pesquisador.
Possibilidades científicas
Segundo Marco Antonio Marques de Souza, pai de Sérgio e também sócio da empresa, ao contrário dos sistemas de radiotelemetria convencionais, que funcionam a grandes distâncias, o novo dispositivo será utilizado apenas para distâncias bastante curtas, de 10 a 20 metros, para que os receptores possam fazer a leitura da etiqueta aplicada ao animal. Portanto, o sistema não é projetado para substituir os métodos convencionais em quaisquer circunstâncias, mas para oferecer uma nova alternativa para casos específicos.
“A bateria representa cerca de 80% do peso dos colares com radiotransmissores que são utilizados hoje, mas eles têm a vantagem de transmitir os dados a distâncias muito grandes, de até dois quilômetros. A etiqueta só é eficiente a poucos metros, mas pesa menos de um grama, o que facilita a vida do animal, além de ser feita de um material totalmente inerte. Outra vantagem é que ela permite monitorar o animal até o fim da vida dele”, afirmou Marco, que tem formação na área de computação.
Segundo Souza, apesar da limitação da distância, o novo sistema permitirá desenhar estudos que hoje não podem ser feitos.
“Em vários casos essa tecnologia será muito útil. Por exemplo, quando o estudo é feito em hábitats lineares, situação recorrente na Mata Atlântica, em estudos que têm foco na conexão entre fragmentos florestais. Esses fragmentos são ligados por corredores de florestas. Se queremos entender como os animais usam esses corredores, por exemplo, podemos posicionar os receptores ali”, afirma.
Outros exemplos incluem avaliações de como os animais utilizam passagens projetadas para a fauna em estradas, estudos voltados para a observação de ninhos de aves, de peixes em igarapés ou monitoramento de animais que vivem em tocas.
“É possível monitorar animais como morcegos, por exemplo, posicionando um receptor na entrada de suas cavernas”, diz Marco.
Também seria factível cobrir uma área com receptores para estudar animais que têm uma área de vida muito restrita. “Isso pode ser muito útil para monitoramento pós-soltura, por exemplo, pois o pesquisador sabe com razoável precisão qual é a área onde o animal está circulando”, indica Souza.
Baixo custo e mercado amplo
Na avaliação dos pesquisadores da empresa, a tecnologia RFID permitirá a abertura de um mercado que a tecnologia de radiotelemetria convencional não permite.
“Como a bateria acaba em determinado momento, não há como fazer um monitoramento permanente de uma área. A nova metodologia permite essa possibilidade e, para ampliá-la, nossa proposta é reduzir o tamanho dos receptores também, com funcionamento por energia solar”, explica Marco.
Segundo ele, o novo recurso deverá também reduzir o orçamento das pesquisas, em comparação às que são feitas com sistemas de radiotelemetria. Ele afirma que os radiotransmissores para animais grandes ou médios, assim como as baterias e os dispositivos de fixação no animal, não são fabricados no Brasil. Por isso, quando o dólar está em alta, o custo do equipamento ultrapassa R$ 800.
“Com o novo sistema, o pesquisador pagará de R$ 0,10 a R$ 0,20 por etiqueta. Isso fará o custo da pesquisa despencar, especialmente se conseguirmos reduzir o custo do leitor. Como o custo dos transmissores é muito baixo, será possível aumentar consideravelmente também o número de animais monitorados”, estima Marco.
Apesar da inovação na aplicação da tecnologia, pela legislação brasileira o novo produto não é patenteável. Porém, a ferramenta poderá ser protegida como modelo de utilidade. “Há dois tipos de patente: uma delas é o modelo de invenção. Quem inventou o RFID, por exemplo, teve o direito de patentear o produto com esse estatuto. Mas há também o modelo de utilidade, que é aplicável ao nosso caso, já que o sistema será inédito, com um leitor protegido contra água, pequeno, barato e movido a energia solar”, explica Marco.
Colar de radiotelemetria
Fundada em 2004, a Trapa fabrica e vende equipamentos eletrônicos voltados para a preservação da fauna. Segundo Marco, a empresa atualmente tem dois produtos: armadilhas fotográficas e colares com radiotransmissores para monitoramento de animais.
“Fabricamos armadilhas fotográficas desde 2004 e já temos mais de 3,5 mil sendo utilizadas pelo país. Também fazemos a manutenção delas”, afirma.
O colar para monitoramento de animais da Trapa possui uma inovação em seu radiotransmissor, que foi desenvolvida pela empresa entre 2006 e 2010, também com apoio do PIPE-FAPESP. Segundo Marco, os radiotransmissores convencionais emitem um único sinal sonoro e, para monitorar dois animais diferentes, é preciso atribuir uma frequência de rádio distinta para cada animal.
Quando o pesquisador sai a campo, precisa decidir qual animal quer localizar e sintonizar naquela estação. Mas um outro animal que esteja a seu lado, também com um colar de monitoramento, não será detectado, explica Marco.
“O apoio da FAPESP permitiu que desenvolvêssemos um sistema em que todos os radiotransmissores dos diferentes animais monitorados transmitem os sinais na mesma frequência, cada um com um código diferente. Com uma antena omnidirecional, o pesquisador tem condições de localizar todos eles e escolher qual seguir, o que facilita muito o trabalho de campo”, afirma.
Segundo Souza, por princípio, a Trapa fornece equipamentos exclusivamente para pesquisadores e organizações interessados na preservação da fauna, com objetivos científicos e de conservação ambiental. O mesmo acontecerá com a nova tecnologia que está sendo desenvolvida, apelidada pelo biólogo de “Sem-Parar Animal”.
“Fornecemos nossos equipamentos para pesquisadores de instituições de pesquisas, para ONGs, empresas de consultoria ambiental, mas nunca para caçadores, por exemplo”, pondera Souza.
Fonte: Gizmodo | Via Agência FAPESP