Ao se olhar de cima a praia do Atalaia, em Salinópolis (PA), a imagem desperta curiosidade. Os guarda-sóis coloridos, que cobrem as mesas dos restaurantes, ficam lado a lado com um cenário incomum: carros de todos os tipos e tamanhos espalhados por pelo menos 2 km de extensão da areia branca e fina. Todos podem acessar a praia com seus carros, estacionar em cima da areia, ligar o som automotivo e ali mesmo sentar para admirar o mar. Ou, então, simplesmente passear pela praia a quatro rodas.
É um atrativo para os turistas. “Fica mais aconchegante. A praia do Atalaia não tem uma boa estrutura de estacionamento, então se fosse deixar o carro fora, seria longe e ficaria perigoso. É uma facilidade poder entrar com o veículo na praia e ficar ali mesmo com família e amigos”, diz a estudante universitária Gabriella Carvalho, de 24 anos. Desde criança, ela viaja para esse destino com a família, a partir do município de Castanhal, a 141 km de distância. Ela representa uma parcela dos visitantes que vêm de todas as partes do Pará passar feriados e férias escolares em Salinas, como o município é conhecido no estado.
Porém, na praia do Atalaia nem sempre é fácil encontrar espaço para as crianças brincarem ou para quem quiser deitar em uma toalha na areia tranquilamente. Isso porque os veículos trafegam e estacionam ao lado das barracas dos restaurantes. Eles podem ser dos mais econômicos aos mais luxuosos e até mesmo ônibus de passeios coletivos são comuns de serem vistos na faixa de areia.
A faixa de areia do Atalaia é considerada uma via pública, com todas as regras de trânsito cabíveis. Por isso, o Departamento de Trânsito (Detran) precisa estar presente para fiscalizar irregularidades, como o não uso do cinto de segurança, direção sob influência de álcool e excesso de passageiros. Somente em julho de 2021, por exemplo, quando o turismo ainda estava se recuperando da pandemia, foram registradas mais de 120 infrações por direção sob a influência de álcool em 21 dias, conforme notícia divulgada pelo departamento.
A praia do Atalaia é o principal ponto turístico da cidade, que recebe cerca de 300 mil turistas no mês de julho, uma população sete vezes maior que seus 40 mil habitantes. A quantidade de visitantes é muito além do que deveria comportar, de acordo com um estudo da Universidade do Estado do Pará (UEPA). A pesquisa avaliou a capacidade de carga recreacional de praias do litoral paraense, de acordo com uma série de parâmetros, como a qualidade da água e de serviços. Assim, concluiu-se que a praia do Atalaia deveria receber idealmente 4,8 mil pessoas simultaneamente, quase a metade da média diária de julho, que é de aproximadamente 10 mil veranistas.
No entanto, o que às vezes parece ser esquecido é que ali é também um berçário de tartarugas e refúgio de aves migratórias. “No litoral paraense, nós temos ocorrências de todas as cinco espécies de tartarugas marinhas presentes no Brasil. E em Salinas temos desafios que não vemos em outros lugares”, destaca a bióloga Josie Barbosa, que lidera o projeto Suruanã, dedicado à conservação de tartarugas marinhas no litoral do estado. A iniciativa, que começou dentro da Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2017, e hoje está se tornando um instituto para ampliar as ações.
Cercado por boates e resorts, estão os ovos de tartarugas
A Ponta da Sofia, trecho do final da praia que se liga ao Monumento Natural (MoNa) Atalaia, é onde os integrantes do Suruanã deixam os ovos de tartarugas, protegidos entre as dunas. Das cinco espécies presentes, quatro estão em algum grau de ameaça de extinção.
Por isso, os voluntários não medem esforços para defender cada ninhada. A jornada em Salinas começa em fevereiro e segue até setembro. Em julho, no pico do turismo local, há centenas de ovos que devem ser protegidos. As tartarugas fêmeas buscam a praia para desovar, e enterram de 3 a 7 ovos na areia, para proteger os filhotes até seu nascimento.
Ao saírem dos ovos, eles devem caminhar até o mar para seguir sua vida. No entanto, na praia do Atalaia, os desafios dessa etapa são redobrados. “Em Salinas, nós precisamos fazer a transferência do local do ninho, por causa do trânsito de carros e também porque a praia toda enche, então só temos as dunas como berçário para proteger os ovos”, explica Josie Barbosa.
No município, as tartarugas só saem da água para a areia durante a maré cheia. Em outros lugares, normalmente elas transitam em qualquer hora da noite, independente da maré. Por isso, os voluntários precisam atentar para essa característica também. Se a maré enche em um horário de pico turístico, as tartarugas enfrentam mais obstáculos até conseguir desovar: o Suruanã já encontrou casos isolados de filhotes atropelados. Em 2023, o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio), responsável pela unidade de conservação, constatou um roubo de 60 ovos, do qual não se descobriram os culpados ou causas.
O número de nascimentos de tartarugas varia ano a ano, de acordo com vários fatores. Um deles é que não são as mesmas fêmeas que voltam a cada ano, pois elas têm um intervalo de tempo entre uma desova e a outra. “Em 2023, houve um número maior e em 2024 foi menor, mas acreditamos que em 2025 vai crescer novamente”, contextualiza Josie Barbosa.
As tartarugas desovam à noite e a incidência de luzes na alta temporada pode afastá-las, de acordo com a bióloga. “Atalaia teve muitas construções, não sabemos se elas não vieram também por conta da luz. Precisaríamos de um estudo mais prolongado para entender realmente essa influência”, explica.
A reportagem solicitou a Barbosa as estatísticas, mas, em resposta, a bióloga informou que esse controle é desenvolvido no âmbito do Projeto de Monitoramento de Desovas de Tartarugas Marinhas (PMDTM) da Petrobras e que essas informações estão em sigilo no momento. Também foi feito o mesmo requerimento a Petrobras, mas não teve retorno.
A reportagem ainda requisitou os dados de nascimento de 2023 e 2024 das tartarugas ao Ideflor-Bio, que em resposta, via Lei de Acesso à Informação (LAI), informou que “não tem atividade relacionada a monitoramento e contagem de tartarugas marinhas na praia do Atalaia”. Também foram feitas sucessivas tentativas de entrevista, para entender melhor sobre os mecanismos de proteção pelo Ideflor, mas não houve retorno. Porém, sabe-se que 500 tartarugas nasceram em 2023 e pelo menos 50 em 2024, de acordo com notícias divulgadas anteriormente pelo Governo do Pará.
Carros só não podem transitar em 3 km da faixa de areia
Somente 3 km da faixa de areia, na Ponta da Sofia, são bloqueados para carros durante a reprodução das tartarugas. Para a bióloga, a medida consegue reduzir os prejuízos, mas não resolve completamente o problema. “De dia, tem fiscalização e funciona, mas de noite, fica uma bagunça e os carros acabam passando por lá. O ideal seria ficar vigiando 24h, para não passar”, recomenda.
Outra estratégia que, na sua opinião, tem ajudado a limitar os danos às tartarugas é o decreto municipal que, desde novembro de 2023, proíbe garrafas de vidro na praia. Gabriella Carvalho também relata que notou diferença no ano passado, especialmente no Réveillon. “De 2023 para 2024, eu também passei em Salinas e quando fomos pular as ondas tinha muito lixo mesmo. Neste ano já foi diferente. Eu não percebi tantas garrafas de vidro quebradas, que geralmente são um perigo de cortar os pés”, relata.
Além disso, desde julho do ano passado e novamente no último Réveillon, foram proibidos os paredões de som e as carretinhas, que são veículos com potentes sons automotivos. Eles costumavam se espalhar pela praia em uma espécie de competição sonora, na qual cada som tocava sua própria música em volumes altíssimos até o amanhecer. A decisão partiu do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, com o descumprimento da determinação prevendo multa de R$ 50 mil aos organizadores das festas e proprietários das estruturas sonoras.
“Eles [quem frequentava os eventos de carretinhas] também deixavam uma quantidade de vidro muito grande na praia e quando a tartaruga ia cavar para preparar o ninho, acabava se machucando”, relata Barbosa.
A decisão dividiu opiniões na cidade, pois os encontros das carretinhas reuniam muitas pessoas e movimentavam o comércio informal de bebidas. “Muitos dos que trabalhavam à noite acharam ruim, porque caíram as vendas, mas para a praia foi bom mesmo, diminui bastante [os resíduos na praia]. O certo é arranjarem um outro local para fazer esses eventos, porque conseguiríamos continuar vendendo sem poluir a praia”, avalia Adevaldo da Cruz Barros, vice-presidente da Associação dos Comerciantes Ambulantes da praia do Atalaia, que representa 160 trabalhadores que vendem todos os tipos de produtos na praia, do churrasco às boias infláveis.
De qualquer forma, a quantidade de lixo aumenta na alta temporada. E o volume de resíduos gerado é um problema que afeta até praias vizinhas, conforme alerta o engenheiro de pesca Vando Gomes, professor da UFPA em Salinópolis. “Muitos veranistas acabam levando suas bebidas e outras embalagens, que deixam na praia. A maré vem, lava esse material e redistribui ao longo do município, até mandando a outros adjacentes. É comum encontrarmos em praias adjacentes a Salinópolis uma grande quantidade de lixo, garrafas PET etc”, acrescenta.
Lixo de descartáveis e carros na praia do Atalaia. Foto: Matheus Melo
Vando Gomes faz parte do Laboratório de Pesquisa em Hidráulica Ambiental (Hidrolab), que monitora há três anos alguns sistemas costeiros em Salinópolis: praias, marés, canais, rios, estuários e manguezais. De acordo com ele, na época de alta temporada perceberam fatores preocupantes: aumento do pH, redução da salinidade, mudanças na temperatura e o aumento de poluentes.
O esgoto também é uma das questões que chamam sua atenção. Com mais pessoas na cidade, mais uso de descargas tem nas casas, que vão parar nesses sistemas costeiros. “Se tem muito esgoto sendo lançado nesse sistema, aumenta a quantidade de matéria orgânica lançada e, com isso, diminui a concentração de oxigênio”, informa.
Outra questão que aflige o professor é que o MoNa Atalaia, colado à praia de mesmo nome, é cercado por boates, ruas pavimentadas e resorts. Essa é uma área de proteção integral, criada em 2018 para preservar as dunas brancas, vegetação formada por restingas, manguezais e pequenos igarapés.
Especialmente em julho e dezembro, são realizadas diversas festas e festivais bem próximos ao MoNa, que duram a noite toda, com iluminação e sons que podem perturbar as tartarugas justamente no horário da desova.
A secretária de Meio Ambiente de Salinópolis, Jéssica Matos, admite que a questão dos resíduos é difícil de contornar. “Neste mês [em julho de 2024] nós focamos muito nessa problemática do vidro mesmo, porque é um tipo de resíduo que gera riscos e também que, na região Norte, não há reciclagem”, explica.
De acordo com ela, a Secretaria age em conjunto com os órgãos de Trânsito e Segurança para conscientizar os turistas e barraqueiros a evitar o uso de vidro e autuar os infratores. Além disso, a Prefeitura recebeu pelo menos cinco trituradores de vidro, doados por um festival de música que leva shows de artistas nacionais até a praia do Atalaia. “Isso partiu de uma compensação ambiental. Aos empreendimentos que buscam licenciamento para atuarem dentro do município, nós enxergamos a necessidade de colocar compensações, porque vemos que eventos grandes como esse geram um impacto na praia”, informa.
Nem sinal de proibição de entrada de carros em Salinas
A secretária revela que não há planos de proibir a entrada de carros na praia do Atalaia, mesmo que ela, pessoalmente, seja contra esse costume. “Não concordo com os carros na praia e é uma polêmica aqui. Já se tornou algo cultural, as pessoas gostam de entrar com o carro. Se fosse criar algum tipo de proibição, com certeza iria gerar um conflito muito grande”, acredita.
Já Adevaldo Barros se preocupa com uma possível queda no turismo caso haja uma proibição. “Como não tem estacionamento o suficiente perto da praia, acho que as pessoas iam vir e ficar só dentro dos resorts. Seria um baque para a economia local”, declara.
Atualmente, a proximidade dos carros com o oceano é tamanha que já se tornou comum, na alta temporada, que os veículos fiquem atolados e acabem sendo submersos na maré alta. As ocorrências incluem carros de maior porte, como picapes, e o resgate somente é feito por reboque ou pelo Corpo de Bombeiros Militar (CBM). Em alguns casos, é preciso usar retroescavadeira.
Em resposta via Lei de Acesso à Informação, o CBM informa que não possui estatísticas sobre esse tipo de ocorrência e que muitos casos de veículos submersos ocorrem no período noturno, o que dificulta o monitoramento, dado que, segundo a organização, essas ocorrências sequer chegam ao conhecimento dos bombeiros. “Regularmente, orientamos os banhistas acerca dos riscos existentes, em especial sobre o movimento das marés, alertando para o potencial risco de submersão de veículos em áreas de alagamento (…) Infelizmente, muitos proprietários não observam as orientações de segurança, levando ao aumento de ocorrências”, acrescenta o documento.
Josie Barbosa, do Suruanã, reforça que são necessários mais estudos para poder confirmar as suspeitas dos efeitos da pressão dos automóveis sobre as tartarugas, como a poluição sonora e as vibrações no solo. No entanto, alguns fatores já podem ser levados em consideração. Um deles é a possibilidade de contaminação de óleo liberado pelo veículo e de microplásticos que saem dos pneus, conforme aponta a oceanógrafa Raqueline Monteiro. “O pneu vai se desgastando e pode ser uma fonte de microplásticos também para a faixa de areia. Esse material em alta concentração pode aumentar a temperatura da praia e impactar no desenvolvimento e na sexagem das tartarugas”, descreve.
Danos já são comprovados para outros animais da praia
A presença dos carros na praia provoca danos comprovados a outros animais, os bentônicos, organismos que vivem junto ao fundo do mar ou na areia, onde boa parte dos impactos ambientais se concentram. São exemplos os caranguejos, camarões e poliquetas. Essa conclusão vem de uma pesquisa da UFPA que analisou três praias – Atalaia, Farol Velho e Corvina – nos meses de junho, julho, agosto e setembro de 2017. Os resultados assustaram o oceanógrafo Thuareag Santos, um dos autores do trabalho. “Determinadas faixas na praia do Atalaia ficaram completamente sem organismos bentônicos no mês de julho, justamente quando se concentra a maior quantidade de carros. Foi muito chocante ver isso”, declara Santos. “Muitos são esmagados, mortos, enquanto outros tentam migrar para outros locais. Por isso, somem”, complementa.
Por outro lado, na praia da Corvina, onde não é permitida a entrada de carros, a fauna se manteve constante. Essa foi tida como praia de controle, por proibir a entrada de carros e receber muito menos turistas. Ali, há sistemas de dunas e manguezais considerados preservados e o acesso é feito a pé por uma pequena ponte de madeira. “Com isso, conseguimos constatar que não é um problema temporal [relacionado à época do ano], mas isolado, devido ao turismo”, conclui.
De acordo com Santos, os danos no Atalaia podem ser considerados crônicos, pois apesar do pico se concentrar nas férias escolares e feriados, há movimentação o ano todo, com o crescimento do turismo na cidade nas últimas décadas.
Ele faz parte do Grupo de Estudos de Nematoda Aquáticos, do Laboratório de Pesquisa em Monitoramento Ambiental Marinho da UFPA e já trabalhava há anos com organismos bentônicos. Decidiu seguir com eles, considerando também que são ferramentas de monitoramento ambiental, porque estão na base da cadeia alimentar. “Vários outros organismos alimentam-se dos bentônicos e podem ter valor comercial, como peixes”, cita.
A decisão de fazer as coletas em meses seguidos é para observar o local antes, durante e depois da alta temporada do turismo, para notar não apenas o impacto naquele momento, como também se a fauna consegue se recuperar depois. Nos meses seguintes, a fauna voltou a crescer. “Mas a longo prazo, a fauna pode perder essa capacidade de recuperação, com esse impacto recorrente. Já são décadas com carros no Atalaia e cada vez mais aumenta o número de gente”, adverte.
Santos ressalta que, além do desaparecimento e morte dos organismos bentônicos, a própria areia da praia fica mais compacta com a presença dos carros, mais dura, alterando o habitat desses animais e aumentando a erosão no local.
Com base nesse estudo, o oceanógrafo recomenda, além da educação ambiental, que se aumente a estrutura de praia com gerenciamento costeiro. “Diminuir ou realmente proibir a entrada de veículos e também limitar o número de pessoas dentro da praia”, sinaliza.
Fonte: O Eco